BUSETTO, Áureo*
https://orcid.org/0000-0002-0145-4544
RESUMO: Enfoque e análise de produções
cinematográficas exibidas no Brasil que,
notadamente produzidas por Hollywood e
muitas definidas como Filmes B, incorporam
como elementos de seus roteiros tecnologias
televisivas ou a TV aberta. Filmes dotados de
projeções acerca da operação, dos usos e
possíveis impactos de tais tecnologias e do
meio de comunicação na sociedade, refletindo
avanços destes no correr dos anos 1920 e
1930. Projeções remontadas e analisadas
historicamente à luz de intricadas interseções
entre dimensões da tecnologia, comunicação
social, cinematográfica e política. Perspectiva
investida ao filme
S.O.S. tidal wave
(1939), cuja
trama aborda a produção do surgente
telejornalismo, contemplando alerta sobre
riscos deste em transmitir o que hoje tem sido
chamado de
fake news
, bem como seus
nocivos efeitos à sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: cinema; Filme B;
televisão; telejornalismo; fake news.
ABSTRACT: Focus and analysis of
cinematographic productions shown in Brazil
that is notably produced by Hollywood and
many defined as B Films, incorporate
television technologies or open TV as elements
of their scripts. Films be endowed with
projections about the operation, uses and
possible impacts of such technologies and the
means of communication on society that is
reflecting their advances during the 1920s and
1930s. Projections reassembled and analyzed
historically in the light of intricate
intersections between dimensions of
technology, communication, cinematographic
and politics. Perspective invested in the film
S.O.S. t
idal wave
(1939) whose plot addresses
the production of the emerging telejournalism,
contemplating a warning about its risks in
transmitting what now has been called fake
news, as well as its harmful effects on society.
KEYWORDS: cinema; B-movie; television;
telejournalism;
fake news
.
Recebido em: 16/02/2022
Aprovado em: 10/04/2022
* Docente do Departamento de História da FCL-UNESP, campus Assis, e do Programa de Pós-Graduação
em História da UNESP, desenvolvendo pesquisa da história da TV no Brasil. E-mail: a.busetto@unesp.br
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Entre telas do cinema e páginas da imprensa tecnologia televisiva e a TV aberta
Em parte da década de 1920 e em toda a de 1930, o público brasileiro de cinema
em geral tinha a experiência de vislumbrar (ou sonhar) o que pudesse vir a ser a televisão
e entrar em contato com diversas especulações/projeções quanto ao emprego do meio
na vida cotidiana. Isso era possível devido à distribuição de conjunto de filmes a
incorporar em seus roteiros a tecnologia televisiva ou a TV aberta, cuja ciência e
operação eram incompreensíveis à população em geral quanto despertava nessa enorme
curiosidade.
Mormente, os filmes o produções de Hollywood, os quais eram distribuídos de
maneira preponderante no Brasil, inclusive, o país se tornara o seu terceiro maior
mercado no correr dos anos 1930 e 1940 (MENEGUELLO, 1996, p. 33). Seus roteiros se
ancoram, sobremaneira, em gêneros como aventura e/ou ficção científica, muitos
protagonizados por heróis ou super-heróis, por vezes, formatados como filmes seriados,
alcançando, inclusive, filmes de desenho animado. Ainda que não sejam poucos os casos
de filmes inscritos nos gêneros romances, comédias, terror,
1
musicais e, mesmo,
westerns
, quando não na interseção de vários gêneros. Primeiramente, a tecnologia
televisiva era acoplada a telefones, telescópios e rádios ou a funcionar como circuito
fechado de TV. Elementos que guardavam proximidade à realidade científica e cnica da
época, dado que protótipos de telefone com imagens e de aparelhos de televisão
mecânica eram buscados nos dois âmbitos; sem, contudo, prosperarem industrialmente.
Na tela eram exibidos, em regra, dispositivos cenograficamente montados com materiais
precários e/ou reciclados de filme para filme, além de pouco conformes ao alcançado
nível técnico e ao existente
design
da aparelhagem televisiva; logo, à mercê de
“invencionices” da parte de escritores, roteiristas, cenógrafos e diretores. Com o avanço
da tecnologia televisiva obtido em meados da década de 1930, algumas equipes de
produção buscavam reproduzir cenograficamente a aparelhagem televisiva o mais
próximo à realidade em curso ou alugar parte desta. Ademais, crescia o número de filmes
a integrar a TV aberta em seus roteiros, portanto, a operação do meio para a
comunicação social (KOSZARKI, 1988, p.128-130).
A maioria desses filmes era produzida por modestas companhias hollywoodianas,
a funcionarem com apertados orçamentos, como a
Mascot
,
Monogram
,
Liberty Films
,
Studio City
,
Chesterfield Pictures
e
Invincible Pictures
, as quais se uniram formando, em
1935, a
Republic Pictures Corporation
, dinamizando a produção e distribuição dos
1
Para perspectiva analítica da interseção entre camadas temporais e estéticas nos gêneros cômicos e
vamps
na filmografia clássica, ver: Zanatto (2022).
chamados Filmes B ou “caça-níqueis” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 196). Estes
produzidos literalmente em série, chegando algumas companhias a lançarem perto de
centenas deles por ano. Em regra, filmes assim definidos contemplam roteiros confusos
e incoerentes, cenas descuidadamente editadas, cenografia restrita a ambientes
fechados e de precária montagem, textos/diálogos rasos e truncados, intepretações
dramatúrgicas pouco elaboradas. Dirigidos à grande demanda de estabelecimentos de
cinema menos exigentes, mas, comumente, a colherem muito boa bilheteria, a compensar
em muito os restritos montantes investido às suas produções. Grandes companhias
cinematográficas - como
Metro
,
Fox
,
Warner
,
Paramount
e
RKO
(Idem, p. 196)
mantinham-se ao máximo afastadas de filmes com roteiros a incorporar a tecnologia
televisiva, posto grandes incertezas que envolviam o desenvolvimento e aplicação dela.
Ao contrário, as operadas com modestos orçamentos não temiam o ridículo em abordar
de maneira pouco ou nada crível a tecnologia televisiva. E, provavelmente, o típico
público de seus filmes não esperasse convencionalidade ao enfoque de tais tecnologias,
até porque experimentos e avanços relativos a elas se dessem distante do conhecimento
geral da população. Por fim, tal produção fílmica ganhava verniz de atualidade, pois
ligada à onda noticiosa e à crescente curiosidade geral sobre a televisão (KOSZARSKI,
1988, p.137). Deve-se atentar, porém, que a tecnologia televisiva e a operação da TV
aberta são incorporadas, também, a roteiros/tramas de alguns filmes elaborados por
companhias cinematográficas de outras nacionalidades, notadamente europeias, bem
como rodados por vezes pelas três, então, pequenas hollywoodianas -
Universal
,
Columbia
e
United Artists
(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p.195). Parte do conjunto
desses filmes contempla qualificados roteiros, apuros técnicos e estéticos, inclusive,
alguns se tornaram clássicos do cinema mundial.
De qualquer forma, seja o pequeno número de filmes mais elaborados técnica e
esteticamente sejam os muitos Filmes B a incorporarem a tecnologia televisiva ou a TV
aberta em suas tramas, tais produções fílmicas constituem um fértil manancial de fontes
históricas a permitir ao pesquisador conhecer projeções sobre os possíveis usos e
operação daquela tecnologia e do meio antes mesmo do início de sua operação no
território brasileiro.
2
E no caso da pesquisa em História do Brasil permite o conhecer e
analisar tais projeções que, veiculadas em tempos de início da expansão da cultura dos
EUA no país, via política externa da Boa Vizinhança, eram relativas à operação e ao uso
da TV bastante próprios à organização social estadunidense, mas a influírem quando da
2
Formulação da temática deste artigo, pesquisa documental desenvolvida para a sua consecução e análises
apresentadas no texto se pautam na perspectiva de dotar de historicidade relações entre o cinema e a
televisão, tendo como base em Koszarski (1988); Wagner, Maclean (2008); Koszarski, Galili (2016).
implantação do meio no Brasil, a partir da década de 1950. Isso em total detrimento do
modelo estabelecido em países europeus, como demarcados por alguns filmes de tal
origem exibidos no país. Projeções por certo calcadas e atravessadas por fantasias,
porém, ressonantes ou a espelharem fatos/acontecimentos da vida política, social,
econômica e cultural do período, bem como do quadro comunicacional existente, fossem
relativos a âmbitos nacionais fossem internacionalmente. Muitas vezes meandradas por
projeções acerca das possibilidades e dos impactos da tecnologia televisiva na sociedade,
assim como o regramento legal da operação da TV aberta, emanadas de diversos e
distintos rculos sociais, como o científico-tecnológico, empresarial, educacional, da
política e do Estado, quer dos EUA quer de países da Europa.
que se considerar que aquelas projeções ao uso e à operação das tecnologias
televisivas, expressadas nos filmes, tendessem a ser mais facilmente percebidas pelo
espectador estadunidense ou seus congêneres europeus cujos países registravam
notáveis avanços no âmbito televisual. Coisa, talvez, mais difícil ao espectador brasileiro
em média, uma vez que o Brasil, em termos de comunicação social, ainda se via às voltas
como os primeiros passos da expansão do rádio. Embora ele pudesse ler em jornais e
revistas brasileiras notícias/matérias que, publicadas entre meados da década de 1920 e
o correr dos anos de 1930, informavam sobre avanços e inventos no setor televisivo nos
EUA, Grã-Bretanha, Alemanha, França e, por vezes, na antiga URSS. Além de tomar
conhecimento de tais informações, como tantas outras, quando elas deixavam as páginas
dos periódicos e alcançavam conversas cotidianas. E não se deve esquecer que o
espectador de cinema pudesse, também, ouvir aquelas informações no recém-criados
radiojornais, dado que, à época, eram literalmente lidos muitos noticiários de jornais e
revistas.
3
E, por fim, a frequência aos cinemas lhe proporcionasse contato com
informações sobre o assunto nas edições de cinejornais, fossem os importados fossem
os produzidos no Brasil, esses a iniciarem certa expansão nos anos 1930.
4
Assim, a pesquisa aos conteúdos sobre a operação e uso da radiodifusão (rádio e
TV) veiculados pela imprensa brasileira do período se constitui em exercício fértil em
termos de se conhecer o manancial de noticiário/informações disponíveis acerca do
assunto que pudessem ser acessados pelo espectador de cinema em geral e/ou
reverberados em outros meios ou espaços sociais. Material e informações de grande
valia, uma vez que as produções cinematográficas, a incorporarem a tecnologia televisiva
e a TV aberta em seus roteiros, não traziam, mesmo de maneira breve, elementos
3
Para relação rádio e imprensa no Brasil dos anos de 1930, ver: Teixeira (2015).
4
Para historicidade da produção e papel de cinejornais no Brasil, ver: Archangelo (2015).
explicativos sobre modelos de operação, usos e regramentos legais investidos ao
funcionamento do meio. Até porque sua lógica de produção era o entretenimento,
portanto, sem nenhuma ancoragem em finalidades didáticas, pelo menos não pensada
diretamente. Ausência a começar pela não menção de que o uso e a operação da
radiodifusão eram equacionados, como ainda o são, com base nas relações entre
sociedade e Estado, mediadas pela ação política.
Algumas soluções de tal equação por diferentes nações, sempre a pautar-se pela
fórmula anteriormente aplicada à operação do rádio, eram noticiadas pela imprensa
brasileira, ainda que de maneira esparsa e fragmentária. Com o Estado Novo, o noticiar e
comentar sobre modelos de operação da radiodifusão de países estrangeiros era o que
restava à mídia impressa brasileira, uma vez que, sob censura, ela se via impedida de
analisar/criticar o uso político do rádio pela ditadura de Vargas; como, de resto, fazia
sobre tantos outros assuntos, sobremodo os da política nacional. No entanto, era
possível encontrar, por vezes, nas suas páginas, desde os anos 1920, a informação que,
por convenção internacional, o Estado detinha a propriedade do espaço eletromagnético;
esse necessário ao tráfego das ondas hertzianas (BUSETTO, 2017, p.134).
De igual maneira, a imprensa brasileira informava que Alemanha e Grã-Bretanha
operavam a radiodifusão (rádio e TV) como serviço público estatal e os EUA como
serviço explorado pela iniciativa privada mediante concessão do Estado. Em relação ao
uso/emprego da surgente televisão, divulgava dados e informações sobre o caso alemão,
britânico e estadunidense. No caso da Alemanha, a partir da ascensão de Hitler ao poder,
era indicado que - não exatamente com igual termo - se tratar de televisão de governo,
uma vez que funcionava a serviço da difusão de opinião única; tal qual se dava com o
rádio, então, amplamente expandido. Em relação à Grã-Bretanha, era destacado se tratar
de uma televisão pública - muitas vezes, em meio ao embaralhar dos termos público e
estatal -, posta a funcionar sob o princípio de prestação de serviço estatal de
radiodifusão na observância restrita dos interesses da sociedade como todo, sendo
operada sob garantias institucionais e estatutárias que a mantinha a salvo de pressões de
governos/governantes; igualmente acontecia com o rádio britânico. No caso dos EUA,
jornais e revistas brasileiros informavam sobre o modelo de televisão comercial que fora
estabelecido naquele país pela Lei de Comunicação de 1934, no primeiro Governo
Roosevelt, ou seja, a transmissão de conteúdos televisivos a cargo da iniciativa privada,
sob outorga de concessão de serviço público pelo Estado, a incorporar o estabelecido
anteriormente ao rádio, via Lei do Rádio, de 1927. Essa a servir de inspiração à legislação
para o setor radiofônico brasileiro estabelecida por Vargas em 1931 e 1932, ainda no seu
governo provisório. Mas aquela legislação de Roosevelt instituíra o Conselho Federal de
Comunicação (FCC na sigla em inglês), o qual era incumbido, e ainda hoje o é, de
fiscalizar o funcionamento legal e o acompanhar da veiculação dos conteúdos de rádio e
TV, sem, contudo, censura prévia, sendo constituído por certa representatividade social.
E, por fim, nas páginas dos periódicos brasileiros era possível, também, tomar
conhecimento da contraposição entre a missão/finalidade investidas à televisão britânica
e à dos EUA, geralmente, quando do noticiar/reportar pontualmente alguns de seus
programas exibidos. Sobre a britânica, era informado que a sua finalidade de produção e
transmissão de conteúdos firma-se em três pilares: o cultural-educativo, a informação e
o entretenimento; esse sem perder de vista o caráter do primeiro pilar. Da
estadunidense, era destacado a sua primazia em produzir/transmitir programação de
entretenimento.
Experienciado num misto de entretenimento e vislumbrar “coisas do estrangeiro”,
notadamente “o modo de vida americano”, atributos potencializados com a sonorização
dos filmes, o cinema provavelmente impactava muito mais à população brasileira, quando
comparado ao conteúdo da imprensa nacional, em termos de adesão a noções sobre o
que era ou projeções do que pudesse vir a ser a tecnologia televisiva e a TV aberta. E as
tramas fílmicas projetavam possíveis usos e implicações daquela tecnologia e do meio em
grande gama de dimensões da vida social, desde a esfera da vida privada, passando pelo
mundo do crime e de o seu combate, bem como o das relações entre organização social e
mando político, até o universo comunicacional.
Projeções na tela do cinema - usos e operação da tecnologia e do meio televisivos
O impacto da tecnologia televisiva na vida privada/íntima das pessoas, então,
cada vez mais tocada por costumes e comportamentos próprios à urbanidade e invadida
pelo consumo dos bens industrializados, é focalizado em dois filmes hollywoodianos. O
primeiro é
Up to ladder
(1923, direção de E. Sloman, produzido pela
Universal
no Brasil
distribuído sob o título
Quando a felicidade sorri
, lançado em junho 1925), drama
romântico em que o inventor do
Televisionscope
(telefone com imagens) tem sua
infidelidade conjugal revelada quando sua esposa faz uma chamada via vídeo-telefone a
uma amiga, vislumbrando, na tela do aparelho, a presença do marido no quarto dessa.
5
Koszarski (1988, p.130-131) considera que o filme talvez possa ter sido o primeiro a
demarcar nitidamente a tecnologia televisiva como elemento a influir na trama, além de
5
Sobre exibições no Brasil:
Leitura Para Todos
, Rio de Janeiro, abr.1923, p.87;
Pelo Mundo
, Rio de Janeiro
out. 1923, p.07;
Scena Muda
, Rio de Janeiro, 04 dez.1924, p.17;
Ilustração Moderna
, Rio de Janeiro, 21
fev.1925, p.36;
Fon-Fon
, Rio de Janeiro, 11 jun.1925, p.67;
Folha da Manhã
, São Paulo, 11 jun. 1925, p.12;
Para
Todos
, Rio de Janeiro, 13 jun.1925, p.55.
salientar que o roteiro do filme é incomum à época, uma vez que tal tecnologia é
posicionada “fora de uma estrutura fantasiosa ou de ficção científica”. E o segundo
trata-se de
Once a sinner
(1931, G. McClintic,
Fox
-
Escrava do passado
, agosto 1931),
também, um drama romântico com triângulo amoroso, envolvendo inventor de rádio
dotado de tecnologia televisiva, com o qual capta imagens da intimidade de outros
personagens, gerando confusões à vida de todos (KOSZARKI; GALILI, 2016, p.12).
6
A tecnologia televisiva posicionada a serviço do crime ou no combate desse é um
mote constante de muitos filmes, a refletir o aumento da criminalidade e violência,
notadamente via máfias, decorrentes da Lei Seca nos EUA (1920/1933) e depressão
econômica aberta com a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Primeiramente
vieram:
The thirteenth hour
(de 1927, C. Franklin,
Metro
-
O abutre noturno
, março de
1928), trama detetivesca com protagonista a utilizar sistema fechado de TV em sua casa;
The third eye
(1929, M. Rogers,
Graham-Wilcox
), com ladrões de banco empregando
circuito fechado de TV para descobrir combinação secreta de cofre;
The lone wolf's
daughter
(1929, A.S. Rogell,
Columbia
Atração do alheio
, outubro 1929), ex-criminoso
frustra roubo de joias com auxílio de circuito fechado de TV (KOSZARKI; GALILI, 2016, p.06-
09).
7
Depois, mormente formatados como seriados, eram lançados:
Whispering shadow
(1933,
C. Clark e A. Herman,
Mascot
-
A visão fatal
, outubro de 1934), criminoso controla sua
gangue por meio de tecnologias sem fio e TV;
The miracle rider
(1935, B. R. Eason e A.
Schaefer,
Mascot
O cavaleiro alado
, março de 1937), com o herói Tom Mix na luta
contra a expulsão de nativos de suas terras por industriais munidos de aparelhagem
televisiva empregada para vigilância;
The fighting marines
(1935, B. R. Eason e J. Kane,
Mascot
-
Guerreiros da Marinha
, agosto de 1937), luta de fuzileiros navais dos EUA
contra cientista louco a se comunicar com seus comparsas via aparelho televisivo;
Werewolf of London
(1935, S. Walker,
Universal
O lobisomem de Londres
, dezembro de
1935), cientista/lobisomem dispõe de laboratório equipado com circuito fechado de tevê;
Shadow of Chinatown
(1936, R. Hill,
Victory Pictures
O mistério do bairro chinês
,
dezembro de 1937), cientista insano usa sistema de vigilância de TV para atemorizar
comerciantes chineses;
The amazing exploits of the clutching hand
(1936, A. Herman,
Weiss Productions
-
A mão que aperta
, outubro de 1936), vilão se comunica com seus
capangas e suas timas por televisão de mão dupla;
The phantom creeps
(1939, F. Beebe
e S. Goodkind,
Universal
- S
ombra destemida
, abril de 1940), cientista louco dispõe de
6
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas entre ago.1931-
nov.1932. Disponíveis no acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (HDBN)
7
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas nos períodos de
mar.1928/nov.1929 e out.1929/jan.1930. Disponíveis no acervo da HDBN.
aparelhagem de TV para alertar de ação policial (KOSZARKI; GALILI, 2016, p.25-48).
8
Chama a atenção nas tramas a significativa presença de personagens cientistas
mentalmente insanos a controlar a tecnologia televisual na prática de atos de vilania.
Coisa que pode ser compreendida pela vigência do Código Hays,
9
o qual, dentre outras
orientações, desaprovava a glamourização do mundo do crime.
No gênero ficção científica e/ou aventura filmes que projetam o uso da
tecnologia televisiva a civilizações extraterrestes ou lugares recônditos e isolados na
Terra. Na década de 1920, registro da exibição nos cinemas brasileiros de
Radio-
Mania
(1922, R. W. Neill,
Teleview e Hodkinson
Radiomania
, agosto de 1923), com
inventor de sistema de rádio que consegue se comunicar com Marte, cujos habitantes se
valem de tecnologia de comunicação televisual (KOSZARKI; GALILI, 2016, p. 09).
10
Tendência registrada em vários filmes da segunda metade dos anos de 1930, ainda que a
TV aberta estivesse prestes a se tornar possível ou se transformar em realidade a
poucos terráqueos em algumas metrópoles. Nessa direção, chegaram às telas:
The
phantom empire
(1935, O. Brower e B. R. Eason,
Mascot
O império dos fantasmas
,
fevereiro de 1937), híbrido entre
western
, musical e ficção científica exibindo império
subterrâneo que, localizado abaixo de um rancho, dispõe de comunicação televisual;
The
lost city
(1935, H. Revier,
Sherman S. Krellberg
-
Cidade infernal
, setembro de 1937),
civilização avançada perdida na selva e governada por cientista louco com sistema de
vigilância por TV;
Undersea kingdom
(1936, B. Reeves Eason e J. Kane,
Republic
-
O
império submarino
, fevereiro de 1937), líder tirano dos atlantes a se valer de dispositivo
televisivo também como sistema de vigilância
.
Pela
Universal
vieram os populares
seriados:
Flash Gordon
(1936, Frederick Stephani com mesmo título no Brasil, junho de
1936), aventuras espaciais do herói a combater inimigo que se vale de dispositivo
televisivo contra ataques aéreos;
Flash Gordon's trip to Mars
(1938, F. Beebe e R. Hill
Flash Gordon no planeta Marte
, setembro de 1938), o herói enfrenta trama marciana
contra a Terra e se valendo de tecnologia televisiva em comunicação interplanetária; e
Buck Rogers
(1939, F. Beebe e S. Goodkind com igual título no Brasil, agosto de 1939),
8
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas no período de
mar.1934-out.1940. Disponíveis no acervo HDBN.
9
Código de Produção do Cinema que, elaborado por Will H. Hays, se constituía num conjunto de
normas morais aplicadas aos filmes lançados nos Estados Unidos e aplicado à produção das companhias
cinematográficas, com vigência entre 1934 e 1968. Cf. Green, Karolides (2005, s/n).
10
Sobre exibições no Brasil:
Para Todos
, Rio de Janeiro, 29 ago.1923, p.25;
Folha da Manhã
, São Paulo, 11
out. 1924, p.08,
O Dia,
Curitiba, 13 mar.1925, p.05.
herói a combater, no século XXV, governante tirânico com sistema de TV a vigiar os
ilhéus (KOSZARKI; GALILI, 2016, p.27-43).
11
Apesar dos gêneros em que se inscrevem, os filmes na lista acima espelham as
apreensões mundiais com a ascensão do nazifascismo na Alemanha, cuja natureza
totalitária era noticiada pela imprensa internacional, inclusive, o emprego das mídias
para propaganda política do regime. Ademais, o país se posicionava dentre as nações na
dianteira de avanços tecnológicos com a TV aberta, operada regularmente, a partir de
1935, via Centro Nipkow, inclusive, a realizar o feito de televisionar os Jogos Olímpicos
de Berlim de 1936 a algumas cidades alemãs. Evidente, o caráter amplamente fantasioso
de tais filmes conseguia driblar possíveis barreiras censórias à sua distribuição em países
como em que o nazismo e o fascismo se apossavam do poder, assim como no Brasil, sob
a vigência da ditadura varguista de inspiração fascista.
Acompanhado de perto pelo Estado, o avanço da tecnologia televisiva era, assim,
dotado da noção que pudesse servir a fins bélicos. Não foi outra a expectativa explorada
pelo roteiro do filme
Television spy
(1939, E. Dmytryk,
Paramount
Espionagem por
televisão
, junho de 1940). A trama gira em torno de jovem inventor que cria sistema de
TV a transmitir seus sinais nacionalmente e objetiva entregá-lo ao governo dos EUA,
enfrentando risco de roubo do invento por espiões estrangeiros (KOSZARKI; GALILI,
2016, p.39).
12
Porém, em um mundo que testemunhara a Primeira Guerra Mundial e
receava pela sua repetição, o emprego de tecnologias televisas em um possível segundo
conflito bélico entre as nações constaria nos enredos de dois filmes. O primeiro, a
empregá-la em comunicação bélica, o segundo, a serviço da paz; contudo, ambos
emblemáticos por seus roteiros posicionarem o início daquele conflito no ano de 1940.
São eles:
High treason
(1929, M. Elvey,
Gaumont-British
- distribuído com igual título
apenas no carioca Serrador, fevereiro de 1930), com uso do telefone com imagem para
comunicação interpessoal e seu emprego pelo presidente do fictício Estados Unidos da
Europa para declarar guerra ao igualmente Império dos Estados Atlânticos;
Men must
fight
(1933, E. Selwyn,
Metro
Lição ao mundo
, junho de 1933), trama desenrolada sob
clima de declaração de guerra dos EUA a fictício país da Eurásia, com exibição de
transmissão de manifestação pacifista via televisão (KOSZARKI; GALILI,
2016, p.14-22).
13
11
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de rias localidades publicadas no período de
fev.1937/mar.1941. Disponíveis no acervo da HDBN.
12
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas no período
set.1940/mar.1940. Disponíveis no acervo da HDBN.
13
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas no período de
jun.1934/jan.1939. Disponíveis no acervo da HDBN.
E dois filmes cujos roteiros localizam o emprego da tecnologia televisiva em
sociedades distópicas em futuro bem longínquo; ambos grandiosos filmes europeus, um
deles tornado clássico do cinema mundial. O primeiro é o filme expressionista alemão
Metropolis
(1927, Fritz Lang,
UFA
com igual título no Brasil, outubro de 1928),
enfocando trama que, desenrolada no ano 3.000, tem-se o poderoso senhor do mundo
acima do solo a se comunicar via
Picturephone
com trabalhadores das oficinas
subterrâneas, além do televisionamento, em grande tela disposta em espaço público,
daquele líder a discursar (KOSZARKI; GALILI,
2016, p.12).
14
O filme britânico é
Things to
come
(1936, W. C. Menzies,
London Film
Daqui a cem anos
, fevereiro de 1937), cuja
trama, baseada no livro homônimo H. G. Wells, enfoca guerra mundial que, empreendida
nos anos de 1950, dividira o mundo em duas partes, as quais são encenadas na trama no
correr de meados do século XXI, sendo uma evoluída cientifica-culturalmente e
posicionada como pacifista, a outra retrocedida a estágio pré-industrial e belicosa.
Contempla cena de transmissão televisiva em fachadas de edifícios e a de televisor
doméstico (chamado "aparelho no qual as imagens aparecem"), com veiculação de
conteúdo educativo-cultural (KOSZARKI; GALILI, 2016, p.31-32).
15
Por conta da sua nacionalidade,
Daqui a cem anos
projeta a noção de que a
televisão devesse servir à transmissão de conteúdo educativo e/ou cultural, espelhando
o que ia sendo realizado pela emissora de televisão da BBC (
British Broadcasting
Corporation
). Com o posicionar da operação da TV aberta à parte evoluída da sociedade
encetada na trama, o filme conota outro elemento do roteiro a espelhar a emissora
britânica, qual seja: modelo de transmissão televisiva a serviço da sociedade como um
todo. De antemão, modelo contraposto ao uso da TV alemã e duplamente contrário ao
modelo da TV nos EUA, por essa ser comercial e veicular consideravelmente
entretenimento.
A intersecção entre avanços da tecnologia televisiva com os de outras áreas
técnicas não faltou às telas do cinema. Em 1921, do cinema italiano chegava o filme de
ficção científica
L’Uomo Meccanico
,
idealizado, dirigido e com atuação do francês Andre
Deed, produzido para a
Milano Filme
. Sua trama interconectava a tecnologia televisiva à
robótica, uma vez que exibia dois gigantescos autômatos teleguiados por espécie de
aparelhagem de TV (KOSZARKI, GALILI, 2016, p.08-09). Sob o tulo
O Homem
Mecânico
, o filme de Deed fora exibido apenas em cinemas paulistanos, em julho de 1929,
14
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas,
respectivamente, nos períodos mai.1928/fev.1931 e abr-mai1927. Disponíveis no acervo da HDBN.
15
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas no período
fev.1937/set.1939. Disponíveis no acervo da HDBN.
coincidentemente, quando eram apresentados ao mundo dois protótipos de robôs.
16
Outro é o caso do filme de ficção-científica
The tunnel
(1935, M. Elvey,
Gaumont British
-
Túnel transatlântico
, maio 1936), cuja trama, desenrolada na década de 1950, alia a
televisão a avançadíssimo estágio da engenharia civil e dos transportes. Ao enfocar a
construção de túnel submarino a ligar Europa e EUA, contempla cenas com tela, em
praça pública, a televisionar aquela construção, além de o uso de telefone com imagens
(KOSZARKI, GALILI, 2016, p. 29).
17
Sob enredos divertidos:
The last man on Earth
(1924,
J. G. Blystone,
Fox
-
O último varão da Terra
, março 1925), comédia/ficção científica
sobre o único homem adulto a sobreviver a uma epidemia a atingir a população
masculina, cuja trama se passa entre 1940 e 1954, com cena a exibir televisor de parede
transmitindo edições de jornais e revistas;
Just imagine
(1930, D. Butler,
Fox
-
Fantasias
de 1980
, maio de 1931), comédia musical de ficção científica, ambientada em uma Nova
Iorque futurista de 1980, exibindo cenas de jovens festivos a se comunicarem via
telefone com imagens; e
My lips betray
(1933, John Blystone,
Fox
-
Meus lábios revelam
,
outubro de 1933), romance musical ambientado em um país imaginário da Europa,
apresentando carro equipado com televisor portátil a transmitir desenho animado do
Mickey Mouse (KOSZARKI, GALILI, 2016, p. 08 e 22-24).
18
Em contraposição, Charles
Chaplin em seu clássico
Modern times
(1936,
United Artists
Tempos modernos
, maio
de 1936) posiciona a tecnologia televisual a serviço da vigilância do trabalho fabril, enfim,
a favorecer a extração do lucro privado pela alienante produção industrial em série.
Como se em cena que, integrada à sequência desenrolada na fábrica, mostra o
personagem a se refugiar no banheiro da veloz, repetitiva e extenuante linha de
montagem, sendo sua deliberada gazeta flagrada pelo patrão via circuito fechado de TV
(KOSZARKI, GALILI, 2016, p.32).
19
Embora sob uma realidade estadunidense desfavorável à instalação e operação da
TV aberta pela iniciativa privada, uma vez que para tanto era exigido grande monta de
capital, coisa impraticável em tempos de recessão econômica, algumas tramas de filmes
se desenrolam sob o enfoque da concorrência comercial por tecnologia a servir à
16
Sobre exibições no Brasil e notícias acerca de protótipos de robôs, respectivamente:
Diário Nacional,
02,
05,18/07, 21/12/1929; edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas no período jan.-jul.1929.
Disponíveis no acervo da HDBN. Destaque-se que o filme de Deed foi tido como totalmente perdido por
décadas, até que alguns rolos de cópia foram encontrados nos acervos da Cinemateca Brasileira, sendo
recuperados por projeto em conjunto entre essa e a Cinemateca de Bolonha, Itália.
17
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas no período
mai.1936/jun.1938. Disponíveis no acervo da HDBN.
18
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas entre
jan.1928/jun.1929. Disponíveis no acervo da HDBN.
19
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas no período
mai.1936/jun.1940. Disponíveis no acervo da HDBN.
transmissão televisiva aberta. São exemplos:
International house
(1933, E. Sutherland,
Paramount
-
Torre de Babel
, outubro de 1934), comédia em que inventor chinês do
“radioscópio” a transmitir filmes e programas televisivos promove demonstrações
em hotel de cidade na China para interessados em comprar o aparelho, com grande
interesse de empresário dos EUA na sua aquisição (KOSZARKI, GALILI, 2016, p.28);
20
e
Murder by television
(1935, Clifford Santforth
, Cameo Films
Assassinado pela
televisão
, outubro de 1936), filme de suspense em que disputa da parte de duas
emissoras televisivas e “governo estrangeiro”, com lances de ilicitudes, para obtenção de
inovadora tecnologia à operação da TV aberta, cujo roteiro exibe cenas com aparelhagem
real de transmissão do meio, ademais, a projetar à tevê função de arma letal (BUSETTO,
2020, p.114-115).
E, por fim, filmes cujos roteiros projetam noções sobre o que pudesse ser a
programação televisiva, ainda que essa existisse em número diminuto a servir de
inspiração a escritores e roteiristas. Situação vigente tanto na Grã-Bretanha e Alemanha,
as quais contavam com transmissões televisivas regulares, quanto nos EUA, onde, até
meados de 1939, funcionavam emissoras de TV em caráter experimental e quando, então,
fora instalada a primeira emissora a transmitir regularmente, isto é, a NBC (
National
Broadcasting Company
); sendo a pioneira no mundo a operar sob o modelo comercial.
Independente de nacionalidade e modelo de operação, emissoras de TV ofereciam
programação adaptadas à do rádio, daí, alcunhada, à época, de “rádio com imagens”.
Assim, do cinema britânico chegaram:
Elstree calling
(1930, A. Charlot, J. Hulbert,
P. Murray e Alfred Hitchcock,
British Intl.
), composto por telemusicais, inclusive com
cena de família a sintonizar o conteúdo no seu televisor; e
Radio parade of 1935
(1934, A.
B. Woods,
Associated British Pictures
exibido com igual título em mostra de filmes
europeus no Rio de Janeiro, maio de 1935), comédia musical sobre um recém-nomeado
diretor de emissora de TV que tenta recrutar talentos do rádio a programa televisivo. E
de Hollywood saíram:
Believe it or not
4
(1930, A. Hurley,
Warner
-
Parece incrível
,
outubro de 1932), com partes de programa televisivo de curiosidades realmente
transmitido em caráter experimental por emissora, alternando, na tela do cinema,
imagens do apresentador no estúdio e de família assistindo-o pelo televisor;
The big
broadcast of 1936
(1935, N. Taurog
, Paramount
-
Ondas sonoras de 1936
, maio de 1936),
comédia musical, com proprietário de emissora radiofônica às voltas com operação do
“rádio com imagem”; M
anhattan merry go-round
(1937, C. F. Riesner,
Republic
-
Artistas
20
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas no período
out.1934/jun.1936. Disponíveis no acervo da HDBN.
em folia,
maio de 1939), musical em que estúdio é tomado por gângsteres, aos quais é
apresentado "aparelho de televisão de curta distância";
Five of a kind
(1938, direção
desconhecida,
Fox
Cinco do mesmo naipe
, fevereiro de 1939), comédia em que dois
radialistas disputam empresariado de conjunto musical de gêmeas quíntuplas, cuja
apresentação é televisionada graças à "companhia elétrica americana e seu sistema de
televisão recentemente aperfeiçoado". A disciplina em termos da organização da grade
de programas televisivos é expressada no filme
The singing cowboy
(1936, M. Wright,
Republic
O Cowboy Cantor
, abril de 1938), musical western de banda musical
intitulada "Trovadores da Televisão" em turnê pelos EUA, a qual transmite, em grande
tela, programas televisivos de diferentes gêneros, sem, contudo, especificar a origem das
transmissões (KOSZARKI, GALILI, 2016, p.15-41).
21
Entretanto, ao exibir anúncio de
marca de café, patrocinadora da caravana, a trama explicitava a presença da publicidade
na TV aberta; tal qual o rádio nos EUA e no Brasil.
Mas o primeiro filme a trazer para a tela do cinema trama desenrolada no
ambiente do telejornalismo fora produzido pela
Republic Pictures
. Em tempos iniciais da
acirrada concorrência entre jornais/revistas e o rádio no serviço de noticiar, a história
do filme projetava uma sombra ao jornalismo realizado por aquelas duas mídias.
Intitulado
Exiled to Shangai
, dirigido por Nick Grinde, rodado com base na história
escrita por Wellyn Totman e lançado nos cinemas estadunidenses em dezembro de 1937 -
porém, sem distribuição no Brasil -, trata-se de drama romântico em que dois repórteres
cinegrafistas disputam o amor de uma mesma garota em meio à corrida para solucionar
problema na divulgação atrasada de notícias nos cinejornais da produtora que trabalham.
Da parte de um deles surge a ideia de associar a produtora a uma emissora de televisão,
para que conjuntamente produzissem e transmitissem telejornal exibidos, ao mesmo
tempo, em salas de cinemas. Em meio a reviravoltas na consecução da associação, o
repórter criador da ideia é transferido à China para cobrir a retomada do conflito sino-
nipônico, conseguindo transmitir, ao vivo, cenas do campo de batalha (KOSZARKI,
GALILI, 2016, p.39). O filme não deixa dúvida ao blico sobre o potencial do jornalismo
televisivo a transmitir notícias sobre fatos e acontecimentos ao vivo e conjugando
imagem e som, projetando, assim, as condições à superação do jornalismo impresso e
radiofônico e, fantasiosamente, inovando na forma de se produzir cinejornais. E tal
projeção ganhava luzes extras, dado que o filme, de maneira pensada, fora lançado uma
21
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas nos períodos
out.1932/dez.1940 e abr.1938/nov.1939. Disponíveis no acervo da HDBN.
semana depois do início do chamado Massacre de Nanquim, à época, capital chinesa e
novamente invadida pelas tropas japonesas.
Mas se
Exiled
... projetava uma sombra no universo da difusão da notícia da época,
dois anos depois, a
Republic
lançava outro filme cujo roteiro trazia alerta sobre o maior
perigo a rondar a produção de telenotícias.
Alerta ao risco de
fake news
no telejornalismo
Lançado nos cinemas estadunidenses em 2 de julho de 1939, dirigido por John A.
Hauer, com roteiro do trio Gordon Khan, Stanley Rauh e Mawell Shane, rodado em preto
e branco e com duração de 65 minutos, o filme
S.O.S. tidal wave
22
era exibido no Brasil a
partir de 24 de janeiro de 1941, sob o título
S.O.S na onda tidal.
Costumeiro longo atraso
na distribuição dos filmes da Republic, devido a companhia dispor de reduzida
quantidade de cópias para comercializar. A estreia do filme se dera, concomitantemente,
em cinemas da cidade do Rio de Janeiro e de São Paulo, com temporada de exibição até
meados de maio daquele ano, entre estabelecimentos do centro da cidade e os
localizados em subúrbios, embora pudesse ser encontrado em cartaz até meados de 1943
em cinemas de outras capitais estaduais,
23
dada a morosa distribuição pelo país.
A divulgação de
S.O.S na onda tidal
na imprensa diária da época o foi além das
costumeiras propagandas de estabelecimentos de cinemas a anunciarem estreias dos
filmes e/ou suas programações, seguidas de curtas matérias jornalísticas que, igualmente
aos anúncios comerciais, destacavam o maremoto anunciado no título e a destruição de
Nova Iorque pelo cataclisma. Com destaque às “impressionantes cenas” do maremoto a
devastar a metrópole, cujos clichês ilustravam onda marítima gigantesca a engolir
arranha-céus desmoronando; reprodução da arte do pôster de promoção do filme.
24
Tanto no material publicitário quanto no jornalístico dedicado ao filme, uma
exceção e uma constante chamam a atenção. Apenas duas matérias do carioca
Diário de
Notícias
informavam que, na trama encetada, o maremoto era televisionado e se tratava
de falsa ocorrência; ainda, assim, publicadas, respectivamente, na edição do dia do
lançamento do filme e na do dia seguinte. Tal exceção levanta pistas a possível existência
22
Para visualização e decupagem do filme se utilizou cópia integral disponível em:
https://m4uhd.tv/watch-movie-sos-tidal-wave-1939-230928.html. Acesso 10 mar. 2021.
23
Sobre exibições no Brasil: edições de jornais e revistas de várias localidades publicadas nos períodos
jan.1941/mar.1943. Disponíveis no acervo da HDBN. E as edições de:
Folha da Noite
, 24 a 27 jan. 1941, p.09;
O Globo
, 27 e 28 jan. 1941, p.06.
24
O Jornal
, Rio de Janeiro, 14 jan. a 24 jan. 1941,
Gazeta de Notícias
, Rio de Janeiro, 18 a 24 jan. 1941;
Diário
de Notícias
, Rio de Janeiro, 21 a 25 jan. 1941;
Correio da Manhã
, Rio de Janeiro, 23 jan. 1941;
Folha da Noite
,
São Paulo, 24 e 27 jan. 1941;
Jornal do Commercio
, Rio de Janeiro, 26 jan. 1941;
Diário da Noite
, Rio de
Janeiro, 27, 28 e 30 jan.1941.
de um esquema de divulgação do filme que, promovido pela sua distribuidora,
pretendesse manter ao provável espectador o suspense de que o maremoto transmitido
pela te se tratava de uma
fake news
; segredo desvelado somente nas cenas
derradeiras da trama. Deve-se destacar que a direção desse suposto esquema,
entretanto, diferisse dos rumos dados à divulgação de filmes que
incorporavam/enfocavam em seus roteiros a tecnologia televisiva e a TV aberta, uma vez
que tais elementos eram ampla e destacadamente anunciados. Recurso a funcionar como
chamariz de blico, ávido por ver o meio em ação; isso desde meados dos anos 1920. A
constante encontrada no material da imprensa se tratava da classificação do gênero
cinematográfico atribuída ao filme: “drama romântico”, apesar de nenhuma linha cuidar
em detalhar o romance encenado na trama. É interessante notar que o filme fora
classificado como “drama” quando de sua liberação, em dezembro de 1940, pelo
Departamento de Propaganda e Imprensa (DIP)
25
; órgão ocupado com o trabalho
censório, além da propaganda do Estado Novo e de Vargas.
Editado em três sequências,
S.O.S na onda tidal
é iniciado com cenas do cotidiano
de trabalho do repórter/protagonista Jeff Shamon (interpretado pelo ator Ralph Byrd)
ocupado com a produção de telejornal transmitido por emissora de TV de uma pequena
cidade, localizada no entorno de Nova Iorque, sem que o nome seja mencionado. Outrora
reconhecido repórter de um jornal da localidade, Jeff ganha notoriedade com seu
trabalho de telejornalista. Ele se ocupa quase sozinho de todo o processo de produção e
apresentação das telenotícias, desde o correr à cidade, durante o dia, atrás da
informação, a se locomover com viatura disposta de aparelhagem de filmagem,
manipulada pelo cinegrafista Peaches (Frank Jenks), passando pela edição, até
apresentação do telejornal.
Com a política local agitada pela aproximação da eleição a prefeito, chega a Jeff
denúncia anônima sobre esquema de corrupção a envolver o prefeito (Ferris Taylor) e
poderoso empresário (Marc Lawrence). Em disputa à reeleição, o prefeito, com a ajuda
de o empresário, se vale de espúrios expedientes na campanha eleitoral que se
desenrola. O telejornalista evita colocar a sua celebridade televisiva no combate aquela
vilania política. Posição mantida mesmo após seus dois grandes amigos o convocarem
para denunciá-la. São eles: Tio Dan (George Barbier) senhor bonachão a apresentar
programa infantil na mesma emissora de TV que Jeff trabalha e Mike (Oscar O’Shea)
proprietário do jornal em que o telejornalista outrora trabalhara como repórter.
25
Diário Oficial da União
, Seção 01, 20 dez. 1940, p. 25.
Inclusive, Mike faz notar a Jeff a ausência no jornalismo que ele leva à TV do seu ímpeto
e firme compromisso com a verdade quando militava no jornalismo impresso.
Após Tio Dan e Mike insinuarem, em matéria de jornal, a vilania política em curso
na cidade, o primeiro recebe ameaça anônima de morte, levando Jeff a tomar partido.
Assim, ele se coloca em ação para providenciar reportagem sobre a corrupção e vilania
do prefeito e empresário. No interim entre a edição e apresentação do telejornal, o
empresário-vilão procura o telejornalista, formulando a esse, tacitamente, ameaça de
morte à sua família, situação que faz Jeff desistir de seu intento telejornalístico, levando
ao ar outra telereportagem. Tio Dan e Mike se veem frustrados com a atitude dele.
Mesmo percebendo o motivo do recuo de Jeff, Tio Dan não se intimida e
prossegue com o seu propósito em denunciar o esquema de corrupção política, inclusive,
angariando provas contundentes sobre o esquema de corrupção do prefeito e
empresário. De maneira incauta, Tio Dan anuncia, via jornal, que exibira, na próxima
edição de seu televisivo infantil, provas de ilícitos a ocorrer na cidade. O que não ocorre.
Ele é morto em acidente automobilístico intencionalmente provocado por capangas do
empresário. Sinistro em que Buddy (Mickey Kuhn), filho de Jeff, é gravemente ferido,
posto o garoto e sua mãe, Laurel (Kay Sutton), terem pegado carona no automóvel de Tio
Dan. Num misto de raiva pelo sucedido e de enorme culpa por sua omissão, Jeff decide
colocar seu telejornal no combate à vilania e corrupção política. Agora, devidamente em
posse das provas colhidas por Tio Dan; encontradas em meio a material gravado do
infantil de TV.
Na manhã do dia do pleito, a televisão local passa a emitir alertas à população
sobre maremoto a tragar Nova Iorque e transmitir cenas da destruição da metrópole pelo
cataclisma. Pela telinha dos televisores - dispostos em lares, lanchonetes, vitrines de
lojas, escritórios de empresas, hospital e, mesmo, sala de aula de escola primária a
população se desespera ao ver imagens destruidoras que, continuamente transmitidas,
fornecem tomadas panorâmicas de enormes ondas tragando arranha-céus
novaiorquinos, assim como a engolirem a Estátua da Liberdade e inundarem as ruas da
metrópole, arrebatando violentamente multidões, carros e bondes; além de
transatlântico a sagrá-las em meios a destroços. Closes exibem, entre desabamentos e
inundações de casas e edifícios, pessoas feridas. Conjunto de cenas que na tela do
cinema são intercaladas por outras a exibirem o pânico e caos instalados entre a
população, temorosa da chegada da inundação à cidade - multidão aos gritos,
desesperadamente em fuga, deixando às pressas afazeres, crianças chorando, pessoas
pisoteadas, acidentes de trânsito.
Jeff ao tomar ciência da transmissão corre para o estúdio de seu telejornal, se
deparando com capangas do empresário que, após invadir a emissora de TV, trataram de
transmitir cenas editadas de um antigo filme em que a trama contempla cenas de um
maremoto sobre Nova Iorque. Cópia do filme alugada pelos vilões para compor a falsa
cobertura telejornalística de inexistente catástrofe, na tentativa de impedir a realização
do pleito que ocorreria naquele dia. Ao vencer a luta corpo-a-corpo contra os capangas,
Jeff consegue colocar no ar o seu telejornal e informar a população sobre a
fake news
que até então era transmitida, além de denunciar os mandates da falsa cobertura
telejornalística e apresentar as provas de esquema de corrupção deles, que são presos
pela polícia. A cidade volta à normalidade e prosseguimento ao ato cívico da votação.
Eleitores podem, agora, escolherem livremente, sem qualquer pressão e sob a verdade
revelada, o melhor candidato à prefeitura.
Não dificuldade em se perceber que o mote da história de
S.O.S.na onda tidal
fora inspirado na transmissão feita pela rádio CBS (
Columbia Broadcasting System
),
levada ao ar na noite de 30 de outubro de 1938, véspera de Halloween. Sob interrupção
de programa musical e chamada para “notícia em edição extraordinária”, era reportada
aos ouvintes a invasão de centenas de marcianos à pequena localidade do estado de New
Jersey. Contudo, tal irradiação era uma dramatização radiofônica do livro de ficção-
científica
A Guerra dos Mundos
, de autoria do escritor britânico H.G. Wells, publicado
em 1898. À frente da adaptação, produção e direção do livro para aquela irradiação
estava Orson Welles, então jovem e ainda pouco conhecido ator/diretor de Hollywood.
Durante a hora em que a peça foi transmitida, parte dos ouvintes tomara a irradiação do
drama como edição extraordinária de radiojornalismo e, assim, entram em pânico,
buscando em desespero por fuga, levando o caos a algumas cidades de New Jersey, além
de parte de Newark e de Nova Iorque. Fato reportado mundo afora (SCHWARTZ, 2015,
p.32-35).
Não é difícil imaginar que os escritores da história de
S.O.S na onda tidal
se
despertassem para a questão: o que aconteceria se uma notícia falsa de ameaça à vida
humana fosse televisionada, no formato de uma edição extraordinária de telejornal,
sendo que, ao contrário do rádio, a população além de ouvir pudesse ver a catástrofe no
seu desenrolar? Impossível saber em que fase de a pré-produção do filme
e qual o
motivo que levou à definição de que a falsa ameaça à vida a ser televisionada na trama
seria um maremoto. Mas o certo é que, como todo Filme B, à produção de
S.O.S....
se
impunha a parcimônia nos custos. No caso em tela, a equipe de produção da Republic
conseguiu economizar horas de trabalho e custos com salários simplesmente por
comprar os negativos de um filme que, anteriormente produzido, centrava a sua trama
em torno de maremoto a abater Nova Iorque. Tratava-se de
Deluge
, dirigido por Felix E.
Feist, lançado em 1933 pela
RKO
(UCLA LIBRARY, 2017, s/n); no Brasil distribuído sob o
título
Dilúvio
, com estreia iniciada em abril de 1934.
26
De posse dos negativos, o único
trabalho da equipe de produção foi recortar os cinco minutos de fotogramas do filme da
RKO
contendo cenas do cataclisma a devastar Nova Iorque e encaixá-los na edição de
S.O.S...
Enfim, o roteiro do filme imitava expediente utilizado no seu processo de
produção: uso de filme produzido anteriormente para compor/integrar um outro
conteúdo fílmico, no caso da trama, conteúdo televisivo. Ao espectador aficionado por
cinema não era difícil perceber a semelhança das cenas do maremoto exibidas pelo filme
da
RKO
e o da
Republic
. Ao contrário da transmissão radiofônica de Orson Welles, a se
constituir ela própria em experimento sobre o potencial de recepção via meio massivo do
velho hábito de narrar acontecimentos, a transmissão televisiva da
fake news
em
S.O.S...
e o seu motivo integravam à trama lmica, além de espelhar relações entre política e
mídia existentes.
Mas para a história de
S.O.S na onda tidal
funcionar fora necessário aplicar
grande dose de inverossímeis tecnologias e expedientes relativos à operação da TV e à
produção de seus conteúdos, além de forjar a abrangência do meio na vida social de
então, a começar pela fantasia da série de atividade desempenhadas quase unicamente
pelo protagonista na produção, edição e apresentação das telenotícias. Ainda que, à
época, o organograma a envolver o fazer do telejornalismo não fosse tão amplamente
conhecido que pudesse servir de inspiração a escritores/roteiristas, a atribuição das
multitarefas ao telejornalista obedecia à lógica da economia de custos, no caso, menos
cenários e atores.
Se, de um lado, aparelhagem para gravação de externas exibidas na trama de
S.O.S. na onda tidal
se ajustava à realidade, posto o uso em cena de câmera de filme 35
mm, igualmente às utilizadas pelo cinema, de outro, avançava-se bastante no tempo ao
exibir de algo parecido a equipamento portátil de sincronização de som. Notável é que o
enredo do filme projeta a organização da grade de programas segundo critério da faixa
etária dos telespectadores visados para o conteúdo. Assim, o telenoticiário, voltado ao
público adulto, é exibido na grade noturna, o programa infantil, cujo público-alvo vem
especificado no gênero, sendo veiculado vespertinamente. Curiosamente, a cena de
transmissão do infantil televisivo, como Tio Dan e seu boneco de ventríloquo, exibe um
grupo de crianças em total quietude e compenetração ao que ia pela telinha do televisor.
26
Jornal do Commercio
, Rio de Janeiro, 22 abr. 1934, p.35
; Correio de S. Paulo
, São Paulo, 07 jun.1934, p.06;
Diário de Pernambuco
, Recife, 23 nov. 1934, p.05.
Prenúncio de que a TV pudesse servir como babá-eletrônica; a lembrar epíteto atribuído
ao meio a partir de sua expansão na segunda metade do século XX.
As cenas da recepção da população da falsa cobertura telejornalística abusam na
abrangência do consumo da TV pelos habitantes da cidade de
S.O.S na onda tidal
.
Situação bastante distante tanto da realidade televisiva nos EUA quanto em países
europeus. No território dos EUA prevalecia, como mencionado mais acima, transmissões
experimentais de várias emissoras, as quais ainda se encontravam às voltas na busca de
investimentos que viessem a permitir sua operação de maneira regular. Apenas quando
do lançamento do filme, era instalada a primeira emissora com transmissão regular no
país, a NBC, como acima referida. Por sua vez, a Grã-Bretanha e Alemanha, a operarem
TV aberta regularmente, como acima destacado, cessariam as suas transmissões com a
decretação da Segunda Guerra Mundial. Ademais, reinava ainda nos EUA muitas
incertezas quanto o modelo de televisor mais viável à industrialização em série, decisão
retardada por oferta de diversos modelos de aparelhos, mantendo-se, assim, preços
proibitivos à maioria da população. E que se considerar o exagero da presença do
televisor em outros ambientes que não o doméstico; salvo as vitrines de lojas de
aparelhos eletrônicos e bares/restaurante, por vezes, possível para fins de atração da
clientela. No entanto, a disposição de tal aparelho em salas de aulas, escritórios e
hospitais guardava proximidade a perspectivas de diversos agentes sociais que o meio
pudesse vir a ser empregado nestes ambientes com finalidades, respectivamente,
didáticas, organizacional-administrativa e tratamento a enfermos, como, inclusive,
alguns filmes enfocaram em suas tramas; sem, contudo, serem distribuídos no Brasil.
Não deixa de chamar a atenção que na trama de
S.O.S na onda tidal
apenas um
meio de comunicação social seja destacado ao lado da televisão: o jornal. Embora outro
meio seja representado no roteiro via seu conteúdo: o filme cinematográfico. Entretanto,
a ausência completa do rádio, sequer com uma menção rápida, causa espécie. Afinal,
meio que, à época, tinha expandido suas irradiações e colhia cada vez mais público pelo
mundo afora. Assim, tal ausência acaba a projetar noção de que o rádio tivesse ou logo
fosse substituído totalmente pela TV. Mas, talvez, a falta de menção ao rádio na trama
possa ser compreendida pela intenção (vaidade?) dos autores da história de
S.O.S....
em
demarcar a originalidade da trama em relação ao experimento radiofônico de Orson
Welles. Porém, a mídia impressa dos EUA, quando do lançamento do filme, não deixou de
vincular o roteiro do filme àquele evento radiofônico, a brasileira se portaria igualmente,
embora definisse, geralmente, o acontecimento como “pilheria radiofônica”.
Em contrapartida, o jornalismo impresso não somente é enfocado em
S.O.S.na
onda tidal
como é bem-posicionado no embate contra a vilania e corrupção políticas
encetadas na trama. Ademais, o diálogo entre o telejornalista e o proprietário do jornal,
destacado na sinopse mais acima, fornece pista certeira da positiva noção que o filme
investia ao jornalismo impresso. No transcorrer da conversa, ainda que com base na
atuação profissional do protagonista, percebe-se a suspeição do personagem
proprietário de jornal quanto à possibilidade de autonomia no fazer jornalismo televisivo;
lembrando que, no caso em tela, trata-se da autonomia em relação ao poder político e do
capital, personificados nos personagens, respectivamente, do prefeito e empresário.
Diálogo que somados a outras cenas não deixam de performar um alerta à necessária
tomada de decisão do telejornalismo, por extensão à TV, em garantir a sua autonomia no
difundir da informação em defesa dos interesses da sociedade como um todo,
contrapondo-se a agentes sociais que se movimentam política e empresarialmente
apenas por interesses próprios, quando não de forma inescrupulosa. Âmbito da política e
do capital que, não custa reforçar, contavam, ou mesmo eram, como ainda o são, vitais
ao modelo comercial de TV. O primeiro, responsável pela distribuição de concessões
públicas para operação de emissoras; o segundo, manancial de verbas às finanças destas,
via publicidade.
É certo que o denotar do compromisso do jornalismo impresso com a verdade e
manutenção do bem da coletividade contra forças/agentes a se movem contrariamente a
tais princípios, não fosse novidade na tela do cinema. Ele era demarcado num conjunto
de filmes que, inscritos no gênero aventura ou policial, eram protagonizados por
personagem a atuarem como dublês de repórteres de jornais e detetives. Enfim, filmes a
performar que o bom jornalista se mune de expedientes próprios do
investigador/detetive, logo, o jornalismo verdadeiro e útil à sociedade é o investigativo.
Claro, tudo envolto em muita aventura, por vezes excessivamente fantasiosa,
desempenhada por protagonistas destemidos, além de o emprego por eles de alguns
recursos criativos. Logo, fica claro que a escolha do ator Ralph Byrd para protagonizar o
telejornalista não se prendera ao seu talento na arte de representar, antes, pesara o fato
de ele ser amplamente conhecido pela sua atuação do personagem detetive Dick
Trace, cujas aventuras contavam com três filmes até 1939; trio com distribuição no Brasil
e boa aceitação do público.
Se, de um lado, inicialmente, o protagonista de
S.O.S. na onda tidal
ao adentrar no
jornalismo televisivo se esquiva de pôr em causa o seu compromisso e destemor em
difundir a verdade, tal como fazia quando militava no jornalismo impresso, de outro, no
desenrolar da trama, lhe é cravado o peso da culpa pela consequência literalmente
mortal de sua omissão como telejornalista no combate à mentira e/ou vilania dos
poderosos. Culpa que o leva a recobrar consciência sobre o necessário e justo proceder
jornalístico, decidindo-se, inicialmente, em levar ao ar a reportagem-denúncia e, depois,
investir em ação pessoal - inclusive, em luta corporal para cessar o televisionamento
da
fake news
e revelar a verdade à população. Enfim, a metáfora está posta: o
compromisso com a verdade e sua necessária e justa divulgação pelo jornalismo se
coloca em causa nos bastidores da produção da notícia, não sendo diferente à surgente
TV.
Em termos da relação cinema e televisão, o roteiro de
S.O.S. na onda tidal
projeta
uma relação entre filmes e a programação televisiva, pouco ou nada antevista pelos
capitães/produtores de Hollywood. O televisionar de filme anteriormente produzido e
fora de cartaz, a exibir cenas do maremoto, via aluguel de uma cópia dele, sugeria que a
transmissão de filmes em igual condição poderiam integrar a grade de programas da TV.
Expediente, à época, impossibilitado, dada a inexistência de tecnologia para tanto; mas a
se tornar uma constante a partir da década de 1950, quer na TV nos EUA quer em vários
outros países, configurando um nicho de lucro extra às companhias cinematográficas.
Mas a trama de
S.O.S na onda tidal
não deixou de espelhar conjuntura midiática a
se desenrolar nos EUA quando da sua produção. A transmissão radiofônica de Orson
Wells colhera uma onda de repúdio, acompanhada de pedidos de controle mais rigoroso
do Estado sobre conteúdos radiodifundidos, causa encampada por vários políticos
(SCHWARTZ, 2015, p.37). Situação que gerara o receio generalizado entre agentes
envolvidos com a produção midiática que tal demanda pudesse despertar a sanha de
políticos em ver implementada mecanismo oficial de censura. Muito provavelmente tal
receio fosse nutrido pelos escritores e roteiristas da trama
S.O.S....
De qualquer forma, o
enredo do filme oferece uma solução aos riscos da transmissão de
fake news
via
televisão que não dependesse da ação do Estado. Sob tal direção é que deve ser vista a
cena em que o telejornalista, por atitude pessoal e de bravura, coloca fim ao
televisionamento da
fake news
, posto, assim, performar que para se evitar tal tipo de
coisa bastasse agentes do próprio meio convictos do compromisso e necessidade na
difusão da verdade. Perspectiva reforçada pelo fato de os únicos agentes do Estado que,
na trama, se ocuparam em repreender os responsáveis pelo criminoso televisionamento
são policiais, cuja ação se restringi a prender os vilões, ainda, assim, após o telejornalista
denunciá-los pelo deo da TV. Ademais, a trama performa a noção de que a consecução
daquela postura telejornalística exigisse distância e cuidados de ações voluntariosas
e/ou pueris sobre o fazer televisão/telejornalismo; cobiçados por forças/agentes
sociais a se movimentarem contra interesses coletivos. Não por acaso, o único
personagem da trama a morrer foi o bonachão apresentador de programa infantil,
nutrido de platitudes quando ao poder por si do meio. Se sua morte serve à trama
para evidenciar a nefasta consequência do temer ou se omitir na difusão da verdade, ela
performa o sepultar de qualquer inocência com relação ao operar da televisão.
O televisionar da
fake news
a mando do prefeito e de grande empresário encetado
na trama, como tentativa de ambos a evitar a eleição municipal e perpetrar esquema de
corrupção, espelhava a conjuntura política dos EUA. Em 1937, Roosevelt, em seu
segundo governo, se via premido do poder de ampliar medidas de direitos trabalhistas e
auxílio assistencial ao combate da recessão econômica, dado, sobremodo, à atuação da
Suprema Corte. Aliás, essa, integrada por magistrados conservadores, vetara, ainda no
primeiro mandato de Roosevelt, medidas de igual teor empreendidas pelo presidente
para impulsionar o seu New Deal, iniciado em 1933. Como solução, Roosevelt tentou
aprovar proposta de lei a aumentar o número de membros daquele alta corte, o que
criaria a possibilidade de ele indicar novos membros convergentes à sua política de
atendimento social. Movimentação presidencial repudiada por republicanos e o grande
empresariado, embora colhesse, também, oposição de democratas; fato que pesaria para
a não aprovação daquela propositura de lei no Congresso. Com o crescimento acentuado
dos índices recessivos em 1937 e 1938, além da eleição congressual a correr nesse último,
políticos republicanos, apoiados por
lobbies
do grande empresariado, colocariam em
ação campanha virulenta contra Roosevelt. Essa chegando a responsabilizá-lo pelo
quadro recessivo, definindo-o como “autoritário e fascista” e, mesmo, “ladrão”. Tudo
com amplo emprego de órgãos da imprensa e do rádio, colhendo facilmente significativa
adesão da população às falácias lançadas por aquela campanha. O presidente reagira, em
entrevista concedida ao rádio, imputando ao grande capital o perpetrar da recessão.
Contudo, o Partido Republicano obtivera 72 cadeiras no Congresso; o melhor resultado
eleitoral colhido pelo partido naquela década (NELSON, 1988, p.270-275).
Os escritores e/ou roteiristas de
S.O.S. na onda tidal
não baratearam em ilações
da trama do filme à conjuntura política nacional, como se percebe nos fatos/elementos
correspondente entre ficção e realidade: eleição municipal/eleição congressual;
televisionamento de
fake news
com vista a influir na escolha de prefeito/campanha
falaciosa contra Roosevelt que, veiculada amplamente em órgãos midiáticos, objetiva
diminuir maioria democrata no legislativo; reação irrefletida da população local quanto à
veracidade do maremoto/adesão pouco crítica de parte dos eleitores ao bombardeio de
mentiras contra o presidente em que se encontrava submetida; associação entre prefeito
e empresário para manutenção de esquema de corrupção a prejudicar a cidade/ Partido
Republicano associado ao grande empresariado contra a política de reparação social do
presidente democrata. Tais ilações talvez pudessem ser mais facilmente percebidas pelo
espectador estadunidense de cinema, pelo menos aos relativamente informados da
conjuntura política nacional, ou, mesmo, ao seu congênere de outras partes do mundo
que dispusesse, também, de relativas informações sobre aquele quadrante político dos
EUA, via noticiário internacional publicados em periódicos. Mas é possível que
espectadores do filme de outros países, fossem eles desafortunados submetidos à
política autoritária/totalitária fossem os que viviam sob o regime democrático,
procedessem a uma outra ilação entre a ficção assistida e a realidade política
internacional, qual seja: a sombra erguida no mundo contra as liberdades democráticas.
Desde o ano de 1938, tal sombra se mostrava portentosa, a começar pelas
movimentações de Hitler, ao renunciar ao pacto de não agregação da Alemanha à Polônia
e ter anexado a Áustria à Alemanha, formando o poderoso III Reich. Regime e governante
assentados num maremoto de mentiras e sistematicamente difundidas via meios de
comunicação, inclusive a novata e ainda limitada TV. E dependendo do período de
exibição de
S.O.S....
em cada país, a ilação do espectador podia se dar à luz da
deflagração da Segunda Guerra Mundial (setembro de 1939) ou no longo decorrer de tal
conflito, como no caso do Brasil.
Se
S.O.S. na onda tidal
fornecia, à sua maneira, elementos para que o espetador
brasileiro de cinema pudesse ter alguma noção sobre a operação da TV aberta, em geral,
e do telejornalismo, em específico, quadro comunicacional ainda inexistente no Brasil, o
filme englobava, também, a ausência de uma dinâmica na vida política brasileira: eleições.
Se era fácil aos espectadores brasileiros em geral perceberem diferenças entre realidade
comunicacional estadunidense e a brasileira, talvez, fosse factível que alguma parcela
deles - num átimo de tempo, no submergir do mergulho na ficção- se desse conta da
grande diferença na forma de escolha dos mandatários nos EUA e a do Brasil. Mais
ainda, poderia notar a brava/aguerrida defesa daquele sistema de escolha no país norte-
americano levada à tela. Sistema que não era difícil saber extinto no Brasil e cuja menção
e/ou defesa não alcançavam ouvidos e olhos do grosso da população, uma vez que
impedidas de ampla e livre difusão pelo autoritarismo instituído pelo Estado Novo.
Contudo, ao ser aprovada pelos censores do DIP, a trama fílmica de
S.O.S. na
onda tidal
era avaliada como isenta de qualquer influência à ordem política vigente e
ao seu líder máximo. Liberação que pode ser compreendida sob a ótica da excessiva
confiança dos censores no poder hegemônico da propaganda estadonovista, enfim,
subestimação da capacidade crítica das classes populares, público-alvo por excelência de
Filmes B como
S.O.S....
Outra, entretanto, fora a posição do DIP com a contundente
sátira ao nazifascismo do filme
The Dictador
, de Charles Chaplin que, produzido pela
Universal
e lançado nos EUA em 1940, fora inicialmente vetado, tal como ocorrido na
Alemanha e países sob o fascismo. Sua liberação viria apenas em maio de 1942, sob o
título de
O grande ditador
, portanto, meses após a entrada do Brasil na Segunda Guerra
Mundial ao lado das Forças Aliadas, devido acordos com o Governo Roosevelt (TOMAIN,
2006, p.42). Mas ao agir dentro das poucas brechas possíveis a criticar o Estado Novo, a
redação do carioca
Diário de Notícias
publicara matéria que ao comentar o filme de
S.O.S...
trazia pequeno trecho a investir numa ilação entre a trama fílmica e a política
vigente no Brasil. Vazado sob o signo da criatividade da pena, sem precisar declinar o
nome da ditadura e do ditador - deveras propagandeados -, o trecho vinha com o
destaque: “(...) filme sensacional que revela a razão de o
speaker
transmitir terrível
irradiação. Trama tecida por políticos, no afã de afastar de um pleito os eleitores livres,
que deviam derrotá-los”.
27
Ao leitor do jornal que assistiria ao filme tal trecho tinha o
potencial de funcionar como a luz de um projetor de filmes a rasgar à escuridão em que a
democracia se via relegada no Brasil.
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