LEITE, Paulo Victor Arouche Costa*
https://orcid.org/0000-0003-1216-1533
RESUMO: O artigo tem como objetivo
analisar o conceito de fascismo, suas
abordagens e a possibilidade da utilização
do conceito para categorizar os
movimentos políticos de extrema direita
do mundo contemporâneo, destacando as
elaborações de George Orwell sobre o
fascismo a partir de seus escritos
jornalísticos e ficcionais. A metodologia
aplicada foi a revisão bibliográfica a partir
da perspectiva de análise da História
Social e da História dos conceitos.
PALAVRAS-CHAVE: Fascismo;
Nazismo; Totalitarismo; George Orwell;
Teoria da História.
ABSTRACT: The article aims to analyze
the concept of fascism, its approaches
and the possibility of using the concept to
categorize far-right political movements
in the contemporary world, highlighting
George Orwell's elaborations on fascism
from his journalistic and fictional
writings. The methodology use was the
literature review from the perspective of
analysis of Social History and History of
concepts.
KEYWORDS: Fascism; Nazism;
Totalitarianism; George Orwell; Theory of
History.
Recebido em: 09/06/2022
Aprovado em: 14/10/2022
* Mestre em História Social pela Universidade Federal do Maranhão (PPGHIS-UFMA). Graduado em História
Licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e Bacharel em Direito pela Universidade
Federal do Maranhão (UFMA). E-mail:pauloarouche@hotmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
George Orwell ficou amplamente conhecido pelo anticomunismo, principalmente,
pela instrumentalização de suas obras no pós-guerra. Com efeito, além das críticas ao
socialismo soviético, o autor denunciava as mazelas do capitalismo, o colonialismo
britânico, a econômica de guerra e, sobretudo, o declínio da ideia de verdade objetiva,
presente nos regimes totalitários e nas democracias liberais através da propaganda de
guerra.
Nesse sentido, analisaremos as considerações de Orwell sobre o fascismo a partir
de seus escritos jornalísticos e literários, considerando que a experiência do autor na
Catalunha, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39), foi decisiva para elaboração de
suas principais obras ficcionais,
Revolução dos Bichos
e
1984
, publicadas em 1945 e 1949,
respectivamente. Textos que dialogam e debatem com os principais acontecimentos
políticos daquele período.
O principal objetivo deste trabalho é traçar uma discussão conceitual acerca do(s)
fascismo(s), entendido enquanto cultura (anti) política e fenômeno transnacional,
apontando seus aspectos particulares fascismo histórico, nacional socialismo e gerais,
relacionando com pensamento orwelliano. Nessa direção, as fontes são algumas obras de
Orwell, com destaque para
1984
,
Lutando na Espanha, O que é Fascismo?
, além de
fragmentos de autores da doutrina fascista trazidos pelas obras
Introdução às
linguagens Totalitárias
, de Jean-Pierre Faye e
As origens
do Fascismo
de Robert Paris
autores que compõem nosso quadro teórico.
A metodologia aplicada foi a revisão bibliográfica a partir da perspectiva de análise
da História Social e da História dos conceitos. Por essa razão, o trabalho foi pensado em
três etapas. A primeira delas,
Da relação entre História e Modernidade: singularização
semântica e crise de sentido histórico
, estabelece fundamentos teóricos de análise do
fascismo enquanto conceito de compensação temporal, passível de ter seu conteúdo
atualizado, além de apontar a crise de sentido histórico de finais do século XIX.
No segundo momento de análise,
Teoria e prática do Fascismo: da Revolução
Conservadora ao Estado total
, abordamos a gênese do fascismo italiano no século XX,
apontando suas principais características e a interlocução teórica entre doutrinadores
italianos e alemães e o movimento revolucionário conservador que antecede o nacional
socialismo.
Por último, em
Luta antifascista e consciência histórica: jornalismo e literatura
como intervenção política, uma abordagem do fascismo a partir da escrita de George
Orwell
, apontamos a participação do autor na Guerra Civil Espanhola, os impactos dessa
experiência na sua produção e impressões acerca do fascismo, compreendido enquanto
subproduto da modernidade. Com graves implicações no desencadeamento da violência
política (no passado e no presente), a partir da instauração, ou aprofundamento, de uma
crise de sentido histórico que engendra e precisa de uma estratégia de negação da História
enquanto possibilidade de suprir as carências de orientação, portanto, na formação da
consciência histórica.
Da relação entre História e Modernidade: singularização semântica e crise de sentido
histórico
A modernidade pode ser entendida a partir do momento em que existe um
sentimento de ruptura com o passado. Nesse sentido, os europeus do século XVI
consideravam que viviam em um novo tempo, que eram modernos, na medida em que se
afastavam do que foi considerado medieval, ainda que a etimologia, do latim
modernus
,
apareça desde o século V com os escritos de Santo Agostinho.
Nessa perspectiva, a Era Moderna compreende um conjunto de transformações
nas estruturas sociais do Ocidente, vinculadas a um longo processo de racionalização da
vida, transformando radicalmente a esfera econômica, política e cultural.
Uma dimensão fundamental dessa transformação passa pela apreensão conceitual
desse novo mundo, entre as décadas de 1750 e 1850, quando a linguagem europeia revela
e possibilita a superação dos postulados da sociedade aristocrática. Significa dizer que os
conceitos foram adaptados a um novo tempo e outros foram criados para nomear as
novidades da experiência (inacabada) contemporânea. Conceitos que são utilizados na
disputa política, em que os atores sociais os utilizam na tentativa de conferir sentido à
experiência contemporânea, pleiteando possibilidades de futuro.
A linguagem, além de expressar as mudanças do mundo social, é instrumento
indispensável nas disputas que elaboram essas mudanças. Koselleck (2012) destaca a
gravidade do conceito de História, como o paradigma da dupla direção entre linguagem e
mundo. Segundo o autor, até o século XVIII, o termo história [
Historie
] era empregado
no plural, caracterizando narrativas particulares sem conexão entre si. Por volta de 1750,
percebe-se que o termo História [
Geschichte
], no singular, é cada vez mais frequente,
designando uma sequência unificada de eventos e o seu próprio relato, isto é, a História
da civilização ou dos progressos do espírito humano.
O processo de singularização semântica da História expressa a inclusão de toda
humanidade em um único processo temporal organizado em etapas, fazendo da História
objeto de teorias políticas e filosóficas que pretendem capturar presente, passado e futuro
como uma totalidade que traz consigo sentido previamente estabelecido. Assim, a História
passou a ser compreendida como um processo inevitável de progresso.
O termo história é transformado em recurso retórico normativo da luta política,
sendo objeto de disputa entre as diferentes correntes ideológicas e seus respectivos
projetos de futuro. Durante esse período, a temporalização da história traz a aceleração
do tempo que caracteriza a modernidade
1
, abandonando, parcialmente, o caráter
escatológico da história da Cristandade que, até o século XVI, “é uma história das
expectativas, ou, melhor dizendo, de uma contínua expectativa do final dos tempos; por
outro lado, é também a história dos repetidos adiamentos desse mesmo fim do mundo”
(KOSELLECK, 2012, p. 24). A formação e consolidação do Estado moderno se deu em meio
a uma luta constante contra profecias políticas e religiosas.
Com a contenção de previsões apocalípticas e astrológicas, o Estado apoderou-se
à força da exclusividade da manipulação do futuro. O cálculo político e a contenção
humanista delinearam um novo horizonte para o futuro. No lugar do Juízo Final, foi
concebido e inaugurado um tempo novo e diferente:
A partir de então se tornara possível referir-se ao passado como uma idade
média. Os próprios conceitos a tríade Antiguidade, Idade Média e Idade
Moderna se encontravam disponíveis desde o humanismo, mas foram
gradativamente disseminados para a história [
Historie
] apenas a partir da
segunda metade do século XVII. Desde então, o homem passou a viver na
modernidade, estando ao mesmo tempo consciente de estar vivendo nela.
(KOSELLECK, 2012, p. 31)
A aceleração, até então uma categoria escatológica, tornou-se, no século XVIII, uma
tarefa do planejamento temporal, através do cálculo político (prognóstico) e da filosofia da
história, que possibilitaram o surgimento da história [
Geschinchte
] no sentido que hoje
nos é usual. O futuro, que surge da história moderna, abre-se para o desconhecido e pode
ser planejado, impactando diretamente na formulação dos conceitos:
A batalha semântica para definir, manter ou impor posições políticas e sociais em
virtude das definições está presente, sem dúvida, em todas as épocas de crise
registradas em fontes escritas. Desde a Revolução Francesa, essa batalha se
intensificou e sua estrutura se modificou: os conceitos não servem mais para
apreender os fatos de tal ou tal maneira, eles apontam para o futuro. Privilégios
políticos ainda por serem conquistados foram formulados primeiro na linguagem,
justamente para que pudessem ser conquistados e para que fosse possível
denominá-los. Com esse procedimento, diminui o conteúdo empírico presente no
significado de muitos conceitos, enquanto aumentava proporcionalmente a
exigência de realização futura contida neles. (KOSELLECK, 2012, p. 102)
Por essa razão, a diminuição entre a coincidência do conteúdo empírico e o campo
de expectativa resulta na elaboração dos vários ismos (liberalismo, socialismo,
comunismo, conservadorismo etc.) como conceitos de agrupamento e de dinâmica para
1
Koselleck destaca o discurso 10 de maio de 1793 de Robespierre sobre a Constituição revolucionária,
em que a aceleração do tempo aparece como uma tarefa do homem, que deverá introduzir os tempos da
liberdade e da felicidade.
ordenação e mobilização. Em outras palavras, os diversos “ismos” aparecem como
conceitos de compensação temporal, uma vez que a experiência moderna apresentou uma
nova configuração das estruturas temporais, isto é, uma nova relação entre tempo e
espaço.
O conceito de tempo moderno [
Neuzeit
], ou de modernidade, pode ser concebido
à medida em que as expectativas se distanciaram de todas as experiências anteriores.
Considerando que o tempo histórico é resultado da tensão entre experiência e expectativa,
a modernidade é caraterizada pelo distanciamento progressivo das expectativas das
experiências vividas até então.
O avanço das ciências, que prometiam e anunciavam mais descobertas no futuro,
assim como a descoberta do Novo Mundo e de seus povos, repercutiram, de início
lentamente, ajudando a criar a consciência de uma história universal, que como
um todo estaria entrando em um novo tempo. (KOSELLECK, 2012, p. 278)
O contato com novas culturas, consideradas arcaicas, selvagens, barbaras etc., fez
com que os europeus ordenassem diacronicamente por uma comparação sincrônica: olhar
para a América selvagem a partir da Europa civilizada, era olhar também para trás, olhar
para o passado. Essas comparações ordenaram a história do mundo, que passou a fazer
da parte da experiência histórica, interpretada como progresso para objetivos sempre
mais avançados.
Desse processo surgem ideias como desenvolvimento, história universal,
humanidade, resultando na percepção de diferentes estágios de modernização. Inclusive,
é a partir desse vocabulário que ao longo dos séculos é construído o universalismo
europeu, que trata da universalização de valores particulares, pretensamente universais,
fundamento do sistema mundo moderno:
O que estamos usando como critério não é o universalismo global, mas o
universalismo europeu, conjunto de doutrinas e ponto de vistas éticos que
derivam do contexto europeu e ambicionam ser valores universais globais
aquilo que muito de seus defensores chamam de lei natural ou como tal são
apresentados. (WALLERSTEIN, 2007, p. 60)
O universalismo europeu está intimamente relacionado com os processos de
construção da hegemonia econômica, política e cultural da Europa e, posteriormente, dos
Estados Unidos. Sucede que entre as nações europeias também havia diferentes níveis de
modernização. A filosofia do progresso alimentou a corrida entre as nações na construção
de processos de domínio e hegemonia, no desenvolvimento e teorias e práticas coloniais,
e, como pressuposto, o estabelecimento de um Estado nacional forte, capaz de
materializar as expectativas futuras de determinado povo.
Ainda que houvesse fascínio e entusiasmo pela experiência moderna, havia também
desconfiança e preocupação. As inovações tecnológicas, a rápida transformação da
paisagem, o crescimento de centros urbanos, os problemas sociais do desenvolvimento
industrial, o perigo revolucionário, entre outros fatores, provocaram um sentimento de
desorientação e de ameaça às identidades culturais, d o nascimento do Romantismo,
forma estética com ênfase no passado e na natureza, em oposição a ascensão do mundo
burguês e da sociedade capitalista do século XIX.
Na perspectiva de italianos e alemães, que consolidaram o Estado nacional no
decorrer do século XIX, portanto, atrasados na comparação com Inglaterra e França, olhar
para o passado era reviver a grandeza de Roma e do antigo Sacro Império Romano-
Germânico, ao mesmo tempo, a modernização exigia olhar para o futuro, e a construção
desse futuro passava pela consolidação do Estado-Nação, indispensável na disputa
econômica e territorial.
Entre o final do século XIX e início do século XX, o conservadorismo alemão foi
alimentado por uma crise espiritual, entendida como crise de sentido histórico que mais
tarde desembocaria no fascismo. De acordo com Victor Coelho (2012, p. 82), vários
elementos do pensamento reacionário alemão oitocentista nacionalismo, militarismo,
elitismo, racismo, autoritarismo ganharam novo impulso com a situação caótica da
Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, com o privilégio da noção de
Gestalt
, em
detrimento da ideia de
Bildung
.
Na cultura liberal alemã, a noção de
Bildung
(formação, instrução, educação), a
partir da perspectiva de Wilhelm von Humbolt (1767-1835), representava uma intersecção
entre cidadão e historicidade, em que a terceira instância seria, simultaneamente, a
compreensão do espírito humano
per se
e a vinculação do Eu com o mundo: “é essa relação
de mão dupla (ou circular), de cultivo mútuo entre interioridade e mundo exterior, que
configura a terceira instância” (COELHO, 2012, p. 84).
Na visão de Humbolt, a
Bildung
é fundamento da “formação do cidadão e da
constituição do mundo como a terceira instância que liga o sujeito a esfera exterior, sendo
que formação de cidadão e de mundo, fica claro, são duas faces de uma mesma tarefa”
(COELHO, 2012, p. 85). Assim, o meio seria ocupado pela
Historik
, que desempenha a
tarefa da instrução, na medida em que o mundo é disperso e fragmentado, escapando do
horizonte da observação imediata, portanto, a instância da mediação se relaciona,
necessariamente, a esfera da reflexão.
Como coloca Barash, em Humboldt a própria consciência do homem “se
determina em relação às transformações da história, que constituem a cada
época novos modos de vida acompanhados de novas maneiras de interpretar o
mundo”. mesmo em Humboldt a defesa, para tarefa do historiador, da
imaginação produtora (que pode ser remetida tanto à base kantiana, no sentido
da imaginação a serviço do entendimento, quanto aristotélica, no sentido da
mímesis): tendo em vista o que foi exposto sobre o mundo fragmentado que se
apresenta aos sentidos e sobre a insuficiência dos saberes particularizados para
a tarefa da formação, diz Humboldt que “a verdade histórica pode ser equiparada
às nuvens, que somente ganham forma à distância dos olhos”. (COELHO, 2012,
p.8687).
O historiador, como sujeito autônomo e criativo, organiza aquilo que está disperso,
que não pode ser ainda recepcionado, através do esforço articula os fragmentos na
composição de um todo, ou seja, a construção do discurso histórico para suprir as
carências de orientação. Ocorre que, a partir do final do século XIX, a
Bildung
perde
espaço para o mito, articulando anti-intelectualismo e política reacionária, primeiramente,
com o movimento
völkish
e neorromântico e, posteriormente, no século XX, com a
mitologia política nazista.
[...]deseja-se uma nova totalidade que se tanto em reação à modernidade
com seus elementos de fragmentação decorrentes da urbanização, massificação,
acirramentos de contradições sociais e políticas como no sentido de
reconciliação da alma individual com o “cosmo”. As instâncias mediadoras, tanto
no sentido da
Bildung
quanto no da norma legal serão alvos de ataque, e o que
emerge é a noção de um líder que pudesse galvanizar os anseios do povo e
apontar para um futuro, um destino. (COELHO, 2012, p. 87).
Na construção de uma identidade relacionada com a consolidação de um Estado
Nacional forte, a intelectualidade alemã privilegiou o
vitalismo
2
em detrimento do
classicismo, em que a noção de
Gestalt
(forma, figura) e
Gestaltung
(configuração) serão
fundamentais na aliança entre política e estética. Além disso, esse reacionarismo
ocasionará o esfacelamento da instância mediadora que, “por sua vez, em seu desejo de
totalização, implicará a dissolução progressiva da subjetividade” (COELHO, 2012, p. 87),
quer dizer: a
Bildung
será substituída pela
Gestalt
, fornecendo um quadro referencial para
o posterior desenvolvimento do fascismo na Alemanha.
Teoria e prática do Fascismo: da Revolução Conservadora ao Estado Total
Existe uma multiplicidade de abordagens acerca do fascismo, a complexidade do
tema exige diferentes enfoques de acordo com tipo de análise que se pretende fazer.
Tentaremos aqui apresentar em linhas gerais e discorrer sobre aspectos centrais do
objeto, sem a pretensão de esgotá-lo. Nesse sentido, é preciso situar o fascismo
historicamente, compreendendo que sua implementação ocorreu de acordo com situações
específicas de cada lugar. Destacaremos, principalmente, a experiência italiana e alemã.
2
Durante a modernidade foram formuladas concepções e relações entre a Ciência, o Humano e a Vida. Uma
dessas noções é o vitalismo, doutrina formulada por cientistas europeus que aponta a existência de uma
força vital
, que controlaria os fenômenos relativos aos seres vivos, um tipo de impulso adicional, diferente
dos físico-químicos mapeados. Enquanto teoria filosófica, o vitalismo admite a ideia de alma, portanto,
nessa perspectiva, os fenômenos vitais não poderiam ser exclusivamente explicados por critérios
mecânicos.
De acordo com Edda Saccomani (2016), podemos apontar três usos ou significados
principais do fascismo. O primeiro deles diz respeito ao núcleo histórico original, do
fascismo italiano em sua historicidade específica; o segundo, está relacionado à dimensão
internacional que o fascismo atingiu, com a consolidação do nacional-socialismo na
Alemanha, considerando que tais características ideológicas, tais critérios organizativos
e finalidades políticas, que levaram os contemporâneos a estabelecerem uma analogia
entre Fascismo italiano e Fascismo alemão” (SACCOMANI, 2016, p. 466). E, por último,
seria a aplicação do termo a todos movimentos ou regimes que compartilharam aquilo que
foi estabelecido como “Fascismo histórico”, a partir de determinadas aproximações e
afinidades políticas desses regimes. Em razão desta última compreensão:
[...] o termo Fascismo assumiu contornos tão indefinidos, que se tornou difícil sua
utilização com propósitos científicos. Por isso, vem se acentuando cada vez mais
a tendência de restringir seu uso apenas ao Fascismo histórico, cuja história se
desenrola na Europa entre os anos 1919 e 1945 e que está essencial e
especificamente representado no Fascismo italiano e no nacional-socialismo
alemão. (SACCOMANI, 2016, p. 466).
De modo geral, o fascismo pode ser compreendido como um sistema autoritário de
dominação, caracterizado pela monopolização da representação política através de um
único partido hierarquicamente organizado. Além disso, é uma ideologia atravessada pelo
culto ao líder, exaltação da coletividade nacional e no ideal de colaboração de classes.
Por isso, opõe-se radicalmente ao socialismo e ao comunismo, apregoando um
sistema de tipo corporativo, que tem como objetivo a expansão imperialista, em nome da
luta das nações pobres contra potências plutocráticas, demandando, portanto, constante
mobilização das massas e de seu enquadramento em organizações tendentes a uma
socialização política planificada, funcional ao regime; pelo aniquilamento das oposições
mediante a violência e do terror” (SACCOMANI, 2016, p. 466), em função disso, pressupõe
um aparelho de propaganda fundado no controle de informações e dos meios de
comunicação.
A economia continua a ser, fundamentalmente, do tipo privado, direcionada pelo
crescente dirigismo estatal com vistas a integrar nas estruturas de controle do partido ou
do Estado em razão da logica totalitária , a totalidade das relações econômicas, sociais,
políticas e culturais. Apontando o nascimento do fascismo na Itália, às condições
específicas de seu desenvolvimento econômico, marcado pela ausência ou de revolução
burguesa, reforma agrária ou de Reforma (de ética protestante), Robert Paris avalia a
dificuldade de acumulação do capital italiano:
“Revolução conservadora”, o
Risorgimento
realizou-se essencialmente sob a
dupla proteção, ou protetorado do capital francês e britânico. Foi, em grande
parte, como agente desse capital estrangeiro que a pequena Piemonte,
entorpecida pela Sardenha desde 1847, empreendeu a conquista e a colonização
do resto da Itália: conquista do Sul pelo Norte, dos campos pelas cidades. (PARIS,
1993, p. 16)
Autores como Gramsci
3
insistiram na ausência de revolução agrária e sobre o
caráter dualista da Itália, marcada pelo Sul agrário e pobre, exposto à pilhagem do Norte
industrial e colonizador. A modernização da economia italiana, ou seja, o processo de
acumulação de capital, teve como elemento decisivo a venda pública dos bens do clero na
Itália sulista após 1866, com o posterior desenvolvimento da indústria pesada, alavancada
pela economia de guerra.
A transição do século XIX para o século XX é marcada por uma ampla discussão
acerca da questão da nacional e do futuro, de modo que a prefiguração do fascismo passa,
antes de tudo, pelo questionamento das capacidades das instituições liberais tradicionais
para construção desse futuro. De acordo com Robert Paris, o fascismo propriamente dito,
juntamente com o nacionalismo e o futurismo
4
, são subprodutos da sociedade industrial,
mais precisamente, do grande capital.
Uma de suas expressões é a cultura de guerra que, no alvorecer do século XX, toma
conta do discurso, na moldura de uma nova mentalidade, atenta ao futuro e à questão
nacional, uma vez que os italianos deveriam realizar sua unidade para produzir grandes
coisas. Nas palavras de Sorel: “O futuro pertencerá àqueles que não o temerem: a fortuna
e a história são mulheres e amam apenas os fortes capazes de violentá-las”. O futurismo,
comentou Benjamin Crémieux em 1928,
5
preparara os caminhos da alma fascista
(CRÉMIEUX
apud
PARIS, 1993, p.47).
6
Em 1914, a Itália estava associada à Alemanha e à Áustria-Hungria por um pacto
de aliança estabelecido em 1882. Com a guerra, os processos de concentração industrial
foram acentuados, houve aumento na produção de ferro e aço, a fusão de várias empresas,
ocasionando a eliminação de um número significativo de médias e pequenas empresas.
Essa situação afetou, simultaneamente, a pequena burguesia, que sofreu um processo de
proletarização, e setores do proletariado, condenados ao desemprego. Assim, “o fascismo
foi efetivamente a ‘revolução’ das classes médias” (PARIS, 1993, p. 60). Em 1918, falava-se
3
L’Ordine Nuovo, 11 de junho de 1921. GRAMSCI, A.
Socialismo e Fascismo
. Einaudi: Torino, 1978.
4
O Manifesto-Programa do Partido Político futurista falava em “Nacionalismo revolucionário” através de
um “Governo técnico”, sem Parlamento, defendendo ainda “Preparação de uma mobilização industrial
completa (armas e munições) que, em caso de guerra, será realizada ao mesmo tem que a mobilização
militar”.
5
CRÉMIEUX, B.
Littérature italienne
, Paris, 1928.
6
A partir de setembro de 1918 começou a ser publicado
Roma futurista
, dirigido por Marinetti, Mario Carli e
Emilio Settimelli. Tinha como subtítulo “Jornal do Partido Futurista”, contendo o programa político do
Partido.
na Itália em socialismo nacional, que aceitava ao mesmo tempo o conceito de “luta de
classes” e o conceito de “pátria-nação”.
Com Mussolini, o fascismo vai tomando forma como antipartido, uma ruptura: “Nós
constituiremos o antipartido dos realizadores...uma organização fascista, que não terá
nada em comum com os credos, dogmas, mentalidade e sobretudo preconceitos dos velhos
partidos” (MUSSOLINI
apud
PARIS, 1993, p. 62/63). O socialismo nacional pretendia
realizar a síntese “classe e nação”.
O fascismo levantava-se contra o imperialismo bancário estrangeiro e a aliança da
plutocracia que oprimia a nação proletária, ao mesmo tempo, refutava o internacionalismo
comunista. Nas palavras de Mussolini: “Nós nos oporemos por todos os meios a uma
experiência bolchevista”(MUSSOLINI apud PARIS, 1993 p.77). Entre 1920 e 1921, o
movimento passou de 20 mil adeptos para mais de 200 mil. A mobilização de oficiais e a
adesão de ex-combatentes engrossou o movimento
fasci
, criando as condições
necessárias para a ascensão de Mussolini ao poder em 1922.
Mais tarde, em 1925, nasce da improvisação de Mussolini o termo
totalitário
para o
vocabulário da filosofia política. O
Stato totalitário
italiano será transformado no
totale
Staat
alemão pela linguagem de Carl Schmitt.
7
“O que Carl Schmitt nomeia ora como
fórmula
ora como
conceito
, desenvolve-se entre os anos de 1929 e 1931, pela primeira vez,
ao que parece, em língua alemã” (FAYE, 2009, p. 48). De acordo com o Programa do
Partido Nacional Fascista, de 1921, o fascismo considera a Nação um organismo, em que as
gerações de indivíduos são elementos passageiros “síntese suprema de todos os valores
materiais e espirituais da raça”, o Estado por sua vez é a encarnação jurídica da Nação”
(PARIS, 1993, p. 97).
8
Apaga-se, portanto, a diferença entre a sociedade e o Estado, de
modo que qualquer problema, seja ele econômico ou social, torna-se imediatamente uma
questão estatal.
Faye aponta que a formulação do Estado total a identificação entre sociedade e
Estado (
zum totalen Staat
) não era usual na Alemanha antes da aparição do livro de Carl
Schmitt
O Guardião da Constituição
, de 1931. A figura do
totale Staat
, o Estado totalitário
surgiu, primeiramente, na linguagem mussoliniana:
De maneira comparável, um ano antes, o autor da
Dottrina del fascismo
publicada
pela
Enciclopédia italiana
este autor de duas cabeças que assina Mussolini, mas
que a tradição escrita do fascismo italiano atribuiu a Giovanni Gentile afirmava
resolutamente que o Estado fascista
non è razionario
,
ma rivoluzionario.
Para o
fascista, acrescentava ele: “Tudo está no Estado, e nada do humano ou do
espiritual existe e, menos ainda tem valor, fora do Estado. Nesse sentido, o
fascismo é totalitário [
in tal senso il fascismo è totalitário
] e o Estado fascista,
7
Ver: SCHMITT, Carl.
O guardião da Constituição.
Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
8
Fonte primária apontada pelo autor:
Il Popolo D’Ítalia,
27/12/1921.
síntese e unidade de todo valor, interpreta, desenvolve e engrandece a vida do
povo. (FAYE, 2009, p. 56).
9
Dois indícios corroboram que o termo totalitário pertence ao léxico italiano antes
de adentrar a língua alemã. Primeiro,
totalitär
é uma palavra estrangeira “um
Fremdwort
de origem francesa, como toda palavra com desinência em
är
(
revolutionär
,
sekretär
)”.
Segundo, a primeira tradução da
Doutrina del fascismo
“transcreve
totalitário
pelo
particípio presente
umfassende.
A tradução do livro
teórico
de Gentile, pelo contrário,
traduz o
carattere totalitário del fascismo
por
Totalitäre Charakter
(FAYE, 2009, p. 57).
A aparição do termo data de 22 de junho de 1925, no discurso de Mussolini no teatro
Augusteo de Roma e deriva de sua utilização nas assembleias gerais das sociedades por
ações, em que é considerada
totalitária
uma sessão onde o
quórum
é inteiramente
contemplado:
A transcrição desse léxico tomado às sociedades anônimas do capitalismo ,
no terreno político do Estado, é atribuída justamente a Mussolini pelos
historiadores alemães mais estritamente ligados a esse domínio: “Foi Mussolini
quem cunhou o conceito de
totalidade estatal
”. (FAYE, 2009, p. 60/61).
A concepção mussoliniana do Estado (totalitário), que se opõe ao Estado liberal
fragmentário, repercute entre os intelectuais alemães que, como abordamos,
abandonaram a ideia da
Bildung
, privilegiando a
Gestalt
como horizonte de sentido, isto é,
era imperativo atingir uma configuração a partir da abolição da diferença entre sociedade
e Estado (encarnação jurídica da Nação).
Essa realização demandava uma mobilização total e permanente. A experiência da
guerra e a ascensão da técnica foram elementos constitutivos e decisivos para a dinâmica
dos movimentos na Itália e na Alemanha. Em 1932, a mobilização total da técnica proposta
por Jünger defendia a aparição do verdadeiro Estado total
qualitativ total, total aus
Stärke
total por força, qualitativamente total.
Total no sentido da qualidade e da energia, da mesma maneira que o Estado
italiano denomina a si mesmo um
Stato totalitário
, pelo que quer dizer sobretudo
que os novos instrumentos de poder pertencem exclusivamente ao Estado e
servem ao aumento de sua potência. (JÜNGER
apud
FAYE, 2009, p. 68).
Anos antes, em 1923, Karl Anton Prinz
10
escreveu, elogiosamente, que o fascismo
era inteiramente revolucionário e, ao mesmo tempo, inteiramente conservador. Na obra
Fascismo e Nação
(1936), o jurista Bortolotto definia o fascismo como uma revolução
conservadora:
Quando dizemos direita e esquerda... uma nação unida isso é fascismo! O
fascismo ultrapassou a crise do Estado por uma dupla decisão. Com o
9
Grifo do autor.
10
Príncipe de Rohan e descendente austro-boêmio de Wallenstein.
nacionalismo, decide-se pela direita, com o sindicalismo pela esquerda. Assim
podia-se criar o Estado unitário e total (BORTOLOTTO
apud
FAYE, 2009, p. 69).
Essa convergência paradoxal pretendia afastar-se do liberalismo e “nacionalizar o
social” através da “socialização do conservantismo revolucionário”. Vejamos a análise de
Faye sobre a obra
Terceiro Reich
, de Moeller van den Bruck:
O livro que se pretende frio e duro começa pelo capítulo Revolução”, para
terminar com o capítulo “Conservantismo”, imediatamente antes da conclusão
que se intitula “O Terceiro Reich”. Toda narração ideológica de Moeller van den
Bruck mostra com clareza que a antítese associa efetivamente a força de seus
contrates numa tal expressão como Bortolotto mostrara igualmente, no terreno
mais tecnicamente jurídico, na fórmula do Estado Total. Evidência da estratégia
narrativa. Inicialmente, os contrastes: O pensamento conservador distingue-se
do pensamento revolucionário no sentido de que ele não confia em coisas criadas
de maneira rápida e convulsiva [...] A revolução nasceu da traição o Estado é a
conservação”.
Em seguida, os contrastes dobrados: “De fato, os dois objetivos, o que quer o
revolucionário e o que quer o conservador, vão absolutamente no mesmo sentido.
[E] nós queremos fazer uma espécie de liga conservadora-revolucionária [Porque
e encontra-se a oposição, ou o truísmo pernicioso, de Rocco -], o que é
revolucionário hoje, será conservador amanhã”. (FAYE, 2009, p. 80).
Existia o desejo de associar ideias revolucionárias às ideias conservadoras, ou
melhor, a aplicação de métodos revolucionários para fins conservadores, orientado pela
crença absoluta de que o mundo é sempre o que é, por sua própria natureza conservador.
A ideia de que as transformações do mundo estão atreladas ao Estado
11
e este, por sua vez,
é compreendido como uma Totalidade (a)política
12
e biológica, na medida em que é a
encarnação jurídica da Nação, incorporando raça e espírito (
Geist
). Portanto, o
entrecruzamento entre o revolucionário e o conservador resulta no sintagma da
revolução
conservadora
, equivalente a contrarrevolução, uma formulação em que as leis e valores
elementares seriam capazes de construir uma ordem verdadeira, sem que o homem
perdesse a ligação com Deus e a Natureza.
No lugar da igualdade, o valor (a valência, Wertigkeit) interior; no lugar do
sentimento social, a construção justa de uma sociedade hierárquica; no lugar do
voto mecânico, o crescimento orgânico do Führer; no lugar da obrigação
burocrática, a responsabilidade da autoadministração autêntica; no lugar da
felicidade das massas, o direito à personalidade do Volk. (JUNG
apud
FAYE, 2009,
p. 90/91).
13
O Terceiro Reich seria o resultado desse novo nacionalismo, um conceito ao mesmo
tempo cultural e religioso que conduz à Totalidade [
zur Totalität drängt
], que ultrapassa
as limitações do puro político: “A linguagem da Revolução alemã será mundial porque seu
11
No caso do nazismo, o foco do discurso focalizava o “Povo” (
Volk
), baseado em uma mitologia da
superioridade da “raça ariana”, ao passo que, no fascismo italiano, privilegia sindicalismo, nações proletárias
etc.
12
Sob certa medida, o fascismo é uma posição política, por outro lado, o fascismo não é uma posição política,
na medida em que é um tipo de recusa da política, uma antipolítica.
13
A obra em questão é
Deutschland und die konservative
(1932), de Edgar Julius Jung.
nacionalismo não se limitará às fronteiras dos Estados nacionais, mas conduzirá à
Totalidade
de um Terceiro Império germânico” (FAYE, 2009, p. 91). A transposição do
fascismo italiano e da ideia de
Stato totalitario
encontraram na Alemanha questões
socioculturais específicas, que reportam à experiência fracassada da Primeira Guerra
Mundial e do já mencionado abandono da
Bildung
em privilégio da
Gestalt
ainda no século
XIX. A concepção
völkische
tomada pelo nacional-socialismo significava uma construção
essencialista da Totalidade
Volk
em oposição ao liberalismo, que:
Vê no povo uma unidade de vida biológica e tira as consequências políticas dessa
concepção em oposição ao liberalismo. O
conceito de raça
, mas também a
significação do espaço e do país natal participam de maneira central e agem
também no plano do direito do Estado.
Uma tal concepção de povo domina também todos os domínios vitais na vida do
povo e do Estado. A Totalidade do pensamento
völkische
penetra-a inteiramente.
Dessa Totalidade
völkische
decorre, ainda mais, o fato de que, para concepção
nacional-socialista, a continuidade do evento político passa pelo povo como
grandeza política
e não pelo
Estado. Dessa forma, a concepção hegeliana do
Estado como
realidade da Ideia moral
constitui uma posição
a-völkische
, que é
estranha ao nacional-socialismo [...] (KOELLREUTTER
apud
FAYE, 2009, p.
97/98).
14
Daí a discussão, no plano do Direito Constitucional, acerca da natureza do Estado
nazista, e a recusa por parte da ideologia nazista da etiqueta Estado totalitário. Wilhelm
Stuckart
15
considerava inexata a designação do Reich como Estado autoritário ou Estado
totalitário: “Autoritários ou totalitários, são, antes, os
Estados liberais de poder
(Höhm),
tendo por objetivo a conservação de uma posição de dominação face a uma vida
(exemplos: a Áustria antes da reunificação ou Romênia sob o regime [do rei] Carol.
(STUCKART
apud
FAYE, 2009, p. 99). Segundo Stuckart, nos casos apontados,
diferentemente do nacional-socialismo, o povo não é conteúdo do Estado, mas objeto de
dominação. Aqui também, para Stuckart, reside a diferença entre o Estado fascista italiano
e o Reich:
O Estado fascista italiano é também um Estado autoritário. A forma autoritária
do Estado corresponde à concepção latina do Estado, segundo a qual o Estado
deve ser construído do alto, a fim de poder colocar em movimento, de maneira
uniforme, todas as forças da Totalidade, em vista dos objetivos conferidos pelo
poder central. O fascismo soube dar um caráter autêntico e um aspecto positivo
a essa forma de Estado. (STUCKART
apud
FAYE, 2009, p. 99).
16
14
Grifo do autor. Obra citada: Otto Koellreutter, Deutsches Verfassungsrecht (Direito Constitucional
Alemão), Junker & Dünnhaupt, Berlin: 1993, p.10.65 (N. da E.: trad. para o português baseada na tradução
francesa de J.-P. Faye).
15
Wilhelm Stuckart (1905 1953) oficial no Partido Nacional Socialista, foi jurista e secretário de Estado,
autor das leis de Nuremberg de 1935, “Lei de Cidadania do Reich” e “Lei de Proteção do Sangue e da Honra
Alemã”, a estrutura jurídico-legal para perseguição sistemática dos judeus.
16
Obra citada:
Der Staatsaufbau des Deutschen Reiches in sustematischer Darstellung
(A Estrutura do
Estado do Reich Alemão Apresentada de Forma Sistemática), de Dr. Wilhelm Stuckart, Staatssekretär im
Reichsministerium des Innern, Dr.Harry von Rosen von Hoewel, Dr. Rolf Schriedmair, Leipzig;. Verlag
Kohlhammer, 1943, p. 20.
Entretanto, de acordo com a doutrina do fascismo, o Estado autoritário é
igualmente totalitário, na medida em que a autoridade que se desenvolve não observa os
limites do Direito, residindo, fundamentalmente, na
totalitaridade
das relações
estabelecidas em sua própria esfera: “Contudo, em Vico, foi criada igualmente essa
reciprocidade unitária entre o Estado e o povo que Mussolini interpretou conferindo ao
Estado o espírito do povo e ao povo o corpo do Estado” (TRIPODI
apud
FAYE, 2009, p.
100)
17
, de maneira que a noção de comunidade nacional atrelada à coincidência entre o
conceito de povo e o conceito de Estado é o fundamento do fascismo.
O Estado totalitário assume, portanto, uma forma jurídica que prescinde do sistema
parlamentar, de modo que a lei não repousa na vontade geral e a pluralidade de poderes
não tem mais razão de ser “o juiz no
Estado totalitário
deve entender-se, de qualquer
maneira, como ligado à concepção política do regime, porque este, em certos casos, não
seria nem mesmo limitado pelo direito” (COSTAMAGNA
apud
FAYE, 2009, p. 101).
18
Segundo Costamagna (1939), o fascismo (italiano) teve o mérito de ter sido o primeiro, em
meio ao “desmoronamento da civilização europeia”, de formular a “posição ético-orgânica
das ciências morais”, definindo, pela primeira vez, o conceito
totalitário
do Estado-povo,
povo compreendido enquanto unidade de vida coletiva.
Dessa forma, a partir de critérios “raciais” e “espirituais” próprios, fascismo e
nacional socialismo reivindicaram o direito, ou melhor, a missão de defender e
“aperfeiçoar” a civilização europeia. Por essa razão, a ordem jurídica do
Estado totalitário
almeja a “integridade” moral e material do povo e sua sucessão. Nas palavras de
Costamagna:
“Os valores nacionais devem ser defendidos também face ao hebraísmo, pela
separação absoluta e definitiva dos elementos hebreus em relação à comunidade
nacional, para impedir que o hebraísmo possa exercer qualquer influência na vida
dos povos.
Os povos italiano e alemão opõem às ideologias universalistas e cosmopolitas do
hebraísmo internacional que resultaram nas Leis de Nurembergue, de 15
setembro de 1935, e as resoluções do Grande Conselho do fascismo de 6 de
outubro de 1938” (COSTAMAGNA
apud
FAYE, 2009, p. 102).
19
Costamagna avalia que o Estado totalitário não é uma reação ao Estado liberal, ele
é propriamente o Estado por excelência, legítimo, que supera a separação entre povo e
Estado operada pelo século burguês. De acordo Ernst Krieck, o povo teria sido reduzido a
17
Obra citada: Nino Tropodi,
Il Pensiero politico de Vico e la dottrina del fascismo
, Pádua: Cedam, 1941
(Collane di dottina fascista, a cura dela Scuola di Mistica fascista Sandro Italico Mussolini), p. 96.
18
Obra citada: Carlos Costamagna, Il Giudice e la legge, em
Lo Stato
, abril 1939, p. 194, 196, 197, 199.
19
Carlo Costamagna,
Razza e diritto
, no Convegno ítalo-tedesco di Vienna (
Raça e direito
, no Congresso
ítalo-alemão de Viena), p. 188.
uma essência sem valor e incapacitada, e o Estado diminuído a um órgão social entre
outros, uma parte do Todo entre outras:
O
Estado total
, o verdadeiro
Estado popular
, é a
Totalidade völkische
propriamente dita e imediata, pelo fato de que, a partir do simples, ela atinge o
querer, ação criadora da história [...]
O
Estado total
exige uma
camada social fechada
que o porte, sobre a qual, em
última análise, repousa a formação de sua vontade e de seu poder. Uma tal
camada pode nascer por uma via revolucionária: o grupo que se impõe e que
carrega consigo a ascensão ao Estado total coloca-se em primeiro lugar e, como
dever mais elevado, assume igualmente a mais alta responsabilidade e para isso
se beneficia do privilégio político e de uma maior proteção do direito. (KRIECK
apud
FAYE, 2009, p. 103).
20
Portanto, o Estado total é estrutura jurídica do fascismo, o Estado como espírito do
povo, e o povo enquanto corpo do Estado. Isto posto, podemos retomar a discussão acerca
da teorização do fascismo e as abordagens analíticas do fenômeno, considerando os
critérios cronológico, político-ideológico, disciplinar e o sistemático.
De acordo com Saccomani (2016, p.467), as teorias sobre o fascismo podem ser
divididas em duas grandes categorias: teorias singularizantes e teorias generalizantes.
21
A
primeira categoria estabelece que, para explicar a origem e sucesso dos movimentos e dos
regimes, devemos recorrer estritamente aos elementos particulares de realidade nacional
específica, rejeitando qualquer tentativa de generalização de um contexto histórico a
outro.
A segunda abordagem considera “o Fascismo como um fenômeno supranacional
que apresentou, nas diversas formas de que historicamente se revestiu, características
essencialmente análogas, resumíveis num conjunto de fatores homogêneos”
(SACCOMANI, 2016, p. 467).
22
Parece-nos adequado considerar o fascismo como um
fenômeno que possui determinada especificidade histórica, portanto, temporal e espacial,
considerando que sua formulação e interlocução teórica ocorreu principalmente entre
italianos e alemães.
Ocorre que não é possível compreender o fascismo fora do quadro geral da
modernidade e da crise de sentido histórico correspondente, que envolve conexões com
o colonialismo, racismo e o autoritarismo, bem como outros elementos que compõem a
estrutura da sociedade industrial de massas. Outro aspecto a ser considerado é que o
fascismo, assim como outros conceitos de compensação temporal, é apenas parcialmente
20
Ernst Krieck,
Völkischer Gesamtsaat und nationale Erziehung
(Estado Total Völkisch e Educação Nacional,
Heidlberg: 1933, p. 15-16.
21
Conforme a terminologia empregada introduzida por Ernst Nolte no ensaio
Theorien über den Faschimus
,
de 1967.
22
Esta, por sua vez, pode ser subdivida em duas subcategorias, definidas como intrapolítica e transpolíticas.
A primeira aponta fatores sociopolíticos determináveis, historicamente individualizáveis, enquanto a
segunda contempla fatores a-históricos, inerentes a uma suposta natureza humana, ao caráter repressivo
da cultura e a características intrínsecas à luta política.
baseado na experiência histórica concreta, trazendo na grafia do sufixo (ismo) uma
expectativa de realização futura - salvar Europa da barbárie, solução final etc. -, passível
de ser atualizada.
Na realidade, a apreensão conceitual da experiência existe para fins de
generalização e aplicabilidade, ou seja, organizar uma certa realidade percebida,
caoticamente, a princípio, e depois comunicá-la, criando uma linguagem comum aos
praticantes e analistas. Vejamos o que diz Costamagma sobre o fascismo espanhol:
Precisamente por isso e para afirmar a analogia que intervém entre o Estado
fascista e o Estado nacional-socialista, e aquilo que emerge das provas
sangrentas da Falange espanhola, a denominação de
Estado totalitário
é válida.
[...] Apreciável é o conceito segundo o qual o Estado fascista seria um
tipo
histórico
do Estado totalitário, da mesma forma que o
Estado nacional-
sindicalista
na Espanha e o
Estado nacional-socialista
na Alemanha seriam outros
tipos históricos (COSTAMAGNA
apud
FAYE, 2009, p. 104).
23
Percebemos que, apesar das especificidades de cada regime/movimento, existem
elementos passíveis de generalizações, uma operação própria da conceituação,
generalizar para compreender e comunicar. É, precisamente, na Espanha a experiência
decisiva de Orwell para suas impressões e elaborações sobre o fascismo.
Luta antifascista e consciência histórica: jornalismo e literatura como intervenção política,
uma abordagem do fascismo a partir da escrita de George Orwell
A trajetória de George Orwell vai de agente da polícia colonial na Birmânia
atualmente Mianmar a combatente na Catalunha contra as forças de Francisco Franco
(1892-1975) durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39). Experiência que marcou
profundamente sua escrita dali em diante. “Cada linha de tudo que de sério escrevi a partir
de 1936 foi escrita contra, direta ou indiretamente, o totalitarismo e a favor do socialismo
democrático como o entendo”, disse em 1946.
24
Embora Orwell tenha publicado textos sobre temas variados e em diferentes
modalidades romances, ensaios, resenhas, textos jornalísticos etc. é, principalmente,
pelas obras
Revolução dos Bichos
(1939) e
Mil novecentos e oitenta quatro
(1949) que ficou
mundialmente conhecido. Essas obras compõe um conjunto de textos que são
enquadrados como distopias, isto é, uma antiutopia, uma representação da utopia
negativa, caracterizada por um cenário de extrema opressão, privação, desespero, em que
o controle é exercido pelo Estado, por uma Corporação, por um líder autoritário, ou por
uma casta de privilégios. As obras de Orwell tem um forte caráter anticomunista, tantos
23
Carlo Costamaga,
Dottrina del fascismo
, Turim: 1940, p. 161.
24
. ORWELL, George. Por que escrevo. In:
Dentro da Baleia e Outros Ensaios.
São Paulo: Companhia das
Letras, 2005, p. 12-17.
pelas críticas evidentes, direcionadas ao comunismo soviético (socialismo real), mas
também pela apropriação e instrumentalização de seus textos durante a Guerra Fria (1947-
1991), fato que obscureceu, sob certa medida, suas críticas ao capitalismo, ao colonialismo
britânico, e seu entendimento de que o fascismo é um desdobramento desses fenômenos.
Se os comunistas ortodoxos sempre o viram com desconfiança e mesmo antipatia
por suas críticas ao stalinismo, de forma escrachada na alegórica novela
A
revolução dos bichos
e, em clave mais circunspecta, no distópico
1984
, os
conservadores frequentemente o usaram
pro domo
sua, menosprezando os
elementos que na composição daquelas duas obras eram frutos da convivência
do autor com o colonialismo britânico na Índia e o
modus operandi
do serviço
secreto inglês na Ásia e África. No auge da Guerra Fria (de resto, uma expressão
atribuída a Orwell), os reaças mais inescrupulosos do lado americano lhe
ergueram um pedestal.
O primeiro abuso da direita foi a compra secreta dos direitos de
A revolução dos
bichos
pelo agente da CIA Howard Hunt para produção de um filme de animação,
pouco depois da morte de Orwell. Hunt, que duas décadas depois seria uma
figura-chave no escândalo Watergate, adulterou o final da história,
acrescentando-lhe um apócrifo
happy end
e reduzindo a novela a uma peça de
propaganda anticomunista, que rodou o mundo sob os auspícios do
Departamento de Estado americano. (AUGUSTO, 2017, p. 11/12).
Vários dos artigos jornalísticos de Orwell tratam do fascismo, nazismo, comunismo,
autoritarismo e do imperialismo, abordando a questão do poder e do exercício político da
autoridade, daí sua denúncia da hipocrisia das nações que se opunham ao fascismo, ao
mesmo tempo que oprimiam e exploravam as populações na Ásia e na África, rotuladas
como raças submissas. A experiência como agente policial do Império Britânico na
Birmânia cargo que renunciou para ser escritor permite que Orwell conheça de perto
a opressão do imperialismo:
Quanto ao trabalho, eu o detestava mais profundamente do que talvez seja
capaz de expressar. Em um emprego como aquele vê-se de perto o
trabalho sujo do império. Os infelizes que se comprimiam nas fétidas celas
das prisões, os rotos pardos e assustados condenados a longo prazo, os
traseiros marcados com cicatrizes dos homens açoitados com bambu
tudo isso me oprimia com uma sensação de culpa insuportável. (ORWELL,
2005, p. 61).
Com efeito, como aponta Domenico Losurdo (2015), o pensamento liberal excluía
das suas prerrogativas a maior parcela da humanidade: os escravos, os povos coloniais, e
os proletários (
working slave people
), as massas de desvalidos sobre as quais Orwell tanto
escreveu. Nesse sentido, o liberalismo clássico não apenas legitimou o imperialismo nas
colônias, mas, também, a partir de critérios raciais e civilizacionais, justificava a
exploração econômica, necessariamente vinculada ao
status
jurídico formal dos homens
livres (proprietários):
Locke não tem dificuldades em reconhecer que “a maior parte da humanidade” é
“escravizada” (
enslaved
) por suas condições materiais de vida; por sua vez,
Mandeville define “a parte mais fraca e pobre da nação”
the working slave people
,
destinado sempre a um “trabalho imundo e similar àquele do escravo” (
dirty
slaving
): obviamente, não faz sentido conceder a esses escravos ou semiescravos
não só direitos políticos, mas tampouco a instrução. (LOSURDO, 2015, p. 48).
Na realidade, o espaço colonial foi um verdadeiro laboratório de construção do
autoritarismo e recrudescimento da violência racial que, mais tarde, levaria os judeus,
ciganos, gays e opositores do nazismo aos campos de concentração e câmaras de gás,
embora nem todos os movimentos fascistas tivessem caráter antissemita. Segundo
Hannah Arendt (2012), processo de acúmulo de poder, relacionado à proteção constante
de acúmulo de Capital, proporcionou o surgimento da “ideologia progressista” do final do
século XIX, prenunciando o imperialismo:
Hobbes foi o verdadeiro filósofo da burguesia, porque compreendeu que a
acumulação de riqueza, concebida como um processo sem fim, pode ser
garantida pela tomada do poder político, pois o processo de acumulação violará,
mais cedo ou mais tarde, todos os limites territoriais existentes. (ARENDT, 2012,
p. 217)
A Alemanha nazista operou na Polônia ocupada, por exemplo, uma verdadeira
colonização: exploração de recursos naturais com base em trabalhos forçados, sustentado
por uma ideologia de superioridade racial, prática comum pela Inglaterra e França, onde o
antissemitismo também era uma realidade. Por essa razão, Orwell denunciava o
imperialismo:
[...] como podemos “combater o fascismo” se fortalecemos uma injustiça muito
mais ampla?
Porque ela é certamente mais ampla. O que sempre esquecemos é que o grosso
preponderante do proletariado britânico não vive na Grã-Bretanha, e sim na Ásia
e na África. Não está ao alcance do poder de Hitler, por exemplo, fazer com que
um
penny
por hora seja o salário normal na indústria; isso é perfeitamente normal
na Índia, e fazemos grandes esforços para que continue assim. (ORWELL, 2017,
p. 24).
A indignação de Orwell não se resumia às palavras, eram resultado de sua
experiência concreta, primeiro, como policial do Império e, posteriormente, como
combatente na resistência antifascista durante a Guerra Civil Espanhola. A Espanha, que
não havia participado efetivamente da Primeira Guerra Mundial, sofreu transformações
econômicas e sociais em razão do conflito, e da própria Revolução Russa de 1917, com a
ascensão do anarcosindicalismo e socialismo, vetores de mobilização da classe
trabalhadora, impulsionando movimentos por autonomia regional, especialmente entre
catalães e bascos. A ameaça comunista somada às aspirações de setores liberais
modernizadores fez com que a elite militar, agrária, eclesiástica e demais setores
conservadores tramassem um golpe de Estado perpetrado no dia 17 de julho de 1936. A
principal ameaça era a Barcelona vermelha”, e foi que Orwell desembarcou, alistado
nas tropas do POUM (
Partido Obrero de Unificación Marxista
).
Na obra
Homenagem a Catalunha
(2006)
25
, George Orwell traça um relato pessoal
do conflito, especialmente dos acontecimentos ocorridos em Barcelona entre 1936 e 1937.
O livro mistura literatura de viagem, narrativa de guerra, análise política e relato
autobiográfico, articulados em volta do acontecimento revolucionário. Segundo Orwell,
havia na Espanha uma crença na revolução e no futuro, apesar das várias divergências
entre os segmentos da esquerda. Com o desenrolar dos conflitos, o POUM acaba sendo
criminalizado por setores da própria esquerda, acusado de ser uma organização fascista
disfarçada. A repercussão dada por jornais como
Daily Worker
,
News Chronicle
,
New
Republic
é duramente criticada por Orwell, que entendia que a cobertura de guerra deveria
ser feita
in loco
, com o devido cuidado no levantamento de dados e informações:
Umas das características mais terríveis da guerra é que toda a propaganda de
guerra, toda gritaria e mentiras e o ódio vem invariavelmente de pessoas que não
estão lutando. [...] Um dos efeitos mais melancólicos dessa guerra foi o de me
ensinar que a imprensa de esquerda é, até a última linha, tão espúria e desonesta
quanto a de direita. (ORWELL, 2006, p. 222).
Outro ponto a ser destacado é que a situação espanhola não se resumia a uma
guerra civil, mas apontava para uma revolução social, com confisco de grandes
propriedades, coletivização da indústria, dos transportes, e a tentativa de estabelecer um
governo de trabalhadores, sobretudo na Catalunha. A perspectiva da imprensa antifascista
fora da Espanha, segundo Orwell, ocultava o aspecto revolucionário, reduzindo a
discussão a “fascismo
versus
democracia”.
Mais grave ainda foi a atuação contrarrevolucionária do Partido Comunista, a partir
de outubro-novembro de 1936, quando a União Soviética passou a fornecer armas para o
governo, fazendo com que os anarquistas perdessem espaço. Dessa maneira, os soviéticos
estavam em posição de influenciar as tomadas de decisão do governo espanhol,
evidentemente, considerando seus próprios interesses no tabuleiro geopolítico
internacional.
26
Essa centralização viabilizou a criminalização do POUM, a perseguição e
prisão de seus membros:
Na realidade, foram os comunistas, mais do que todos os outros, que impediram
a revolução na Espanha. Mais tarde, quando as forças de direita já tinham pleno
controle, os comunistas se mostraram dispostos a irem mais fundo do que os
liberais na caçada aos líderes revolucionários. (ORWELL, 2006, p. 215).
25
A edição brasileira conta com esse texto e outros relativos a temática. Ver: Orwell, George.
Lutando na
Espanha
: homenagem à Catalunha, recordando a guerra civil espanhola e outros escritos. São Paulo: Globo,
2006.
26
Quando o golpe foi deflagrado, o governo republicano tentou obter auxílio da Inglaterra e da França, que
firmaram um pacto de não intervenção, assinado em agosto 1936, proibindo o governo e empresas dos países
signatários de enviar material bélico à Espanha. As forças franquistas tiveram amplo apoio de Hitler e
Mussolini, apesar da adesão de Itália e Alemanha ao tratado. Isolada internacionalmente, a República pode
contar apenas com algum suporte da União Soviética que, inicialmente, também preferiu não interferir,
evitando problemas com a Inglaterra. A principal ajuda veio das Brigadas Internacionais, composta por
soldados voluntários. Entre 1936-1939, cerca de 35 mil lutaram a favor da República.
Orwell argumenta que o POUM, de orientação trotskista, queria uma revolução
imediata e os comunistas não. Segundo Helen Graham (2013), o governo central queria
restituir o Estado Republicano e, por isso, tomou medidas contra os localismos, surgidos,
ou aflorados, a partir da rebeldia militar, tomando medidas contra setores da esquerda
radical que tinham promovido formas cooperativas e coletivizadas na indústria e na
agricultura. A historiadora avalia que Orwell exagerou o papel dos comunistas nesse
processo, sendo insustentável sua teoria conspiratória acerca das Jornadas de Maio
(1937)
27
. Em sentido contrário, Christopher Hitchens aponta a precisão de Orwell a
respeito da subversão deliberada da República Espanhola pelos agentes de Stálin,
sobretudo pela forma como eles tentaram solapar a esquerda independente na Catalunha:
[...] documentos disponibilizados recentemente pelo Arquivo Militar Soviético em
Moscou deixam claro que, de fato, era dar um golpe de Estado total. [...] o grande
líder catalão Andrés Nin, fundador do Poum, foi sequestrado, selvagemente
torturado e, recusando-se a ceder, assassinado. Porta-vozes dos comunistas
anunciaram então que ele fugira para juntar-se aos nazistas. (HITCHENS, 2013,
p. 73).
Os acontecimentos vivenciados na Espanha alertaram Orwell para o problema da
falsificação da História, que ocorria de acordo com as linhas partidárias. Orwell observa,
com lucidez, que não se pode fazer um relato isento das circunstâncias históricas, mas
ainda sim “é preciso estabelecer a verdade, tanto quanto for possível”. A partir da
comparação da sua experiência no
front
e aquilo que era noticiado havia um abismo, não
se tratando apenas de uma perspectiva editorial, ou da subjetividade analítica inerente do
escritor, mas o desprezo ou declínio de uma ideia de verdade objetiva:
[...] como é que a história da guerra será escrita? Que tipo de arquivo Franco
deixará para trás? [...] depois que aqueles que de fato se lembrarem da guerra
estiverem mortos, será universalmente aceita. Então, para todos os efeitos
práticos, a mentira tese tornado verdade. Sei que é moda dizer que boa parte
da história oficial é mentira, de qualquer forma. Estou disposto a acreditar que a
história é, em sua maior parte, incorreta e tendenciosa, mas o que é peculiar a
nossa época é o abandono da ideia que a história
pudesse
ser escrita com base
na verdade. (ORWELL, 2006, p. 275).
Portanto,
Revolução dos Bichos
não é exclusivamente a alegoria da revolução traída
de 1917. Ela traz elementos da própria experiência de Orwell na Espanha. Em
1984
, o autor
vai além, elaborando uma distopia com elementos de ficção científica, com aspectos
estruturantes daquilo que se convencionou chamar de totalitarismo. Para esta análise,
destacamos a relação entre fascismo, verdade e história, que na obra é representada da
doutrina oficial do Partido, composta pelo novafala, duplipensamento e mutabilidade do
passado, conforme o trecho a seguir:
27
Los Hechos de Mayo
compreende a violência civil perpetrada em razão de divergência ideológicas e
estratégicas entre segmentos do lado republicano, entre anarquistas” e “comunistas”, nas ruas de
Barcelona, Catalunha.
E se todos aceitassem a mentira imposta pelo partido se todos os registros
contassem a mesma história , a mentira tornava-se história e virava verdade.
“Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla
o passado”, rezava o lema do Partido. E com tudo isso o passado, mesmo com sua
natureza alterável, jamais fora alterado. Tudo que fosse verdade agora fora
verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples. O indivíduo só precisava obter
uma rie interminável de vitórias sobre a própria memória. “Controle da
realidade”, era designação adotada. Em Novafala: “duplipensamento”. (ORWELL,
2009, p. 47).
Na narrativa, a nova fala exerce a função de diminuir o repertório linguístico,
portanto, as possibilidades de formulação da contestação política, considerando que os
limites da linguagem são os limites do mundo, conforme leciona Wittgenstein.
28
O
duplipensamento, a capacidade de acreditar em duas ideias simultaneamente, mesmo
sabendo que são contraditórias, faz com que o sujeito adeque suas práticas às
circunstâncias, de acordo com a ideologia do Partido, indicando uma crítica direcionada
ao movimento revolucionário conservador.
Por fim, a mutabilidade do passado, que implica na destruição de documentos
históricos e na falsificação da própria história, sob o argumento de que o passado não tem
uma existência objetiva, sendo apenas as coincidências entre os registros e as memórias:
“Considerando que o Partido mantém absoluto controle sobre todos os registros e sobre
todas as mentes de seus membros, decorre que o passado é tudo aquilo que o Partido
decidi que ele seja.” (ORWELL, 2009, p. 265). A partir dessas elaborações Orwell ataca o
núcleo da doutrina fascista em seu funcionamento ideológico, que opera e traduz no
campo da linguagem, a negação da história e dos fatos como artifício fundamental no
desencadeamento da violência política, isto porque a história é, sem dúvida, o campo de
disputa de justificação do político.
Além disso, a história serve para suprir carências de orientação, direcionando o
agir humano, cumprindo uma função organizadora do agir social e da deliberação política,
exigindo e engendrando um certo nível de consciência:
Não há outra forma de pensar a consciência histórica, pois é ela o local em que o
passado é levado a falar e o passado vem a falar quando questionado; e a
questão que o faz origina-se da carência de orientação da vida prática atual diante
de suas virulentas experiências no tempo. (RÜSEN, 2010, p. 63).
Por essa razão, o fascista ataca e desqualifica a história. De acordo com a
abordagem singularizante do fascismo contemporânea ao seu próprio surgimento ele
é considerado como um produto particular da sociedade italiana. No entanto, o fascismo
italiano “antecipa”, ou melhor, é sintoma de uma crise que tomaria conta da Europa:
A afirmação do caráter tipicamente italiano do fascismo, subscrita também, entre
outros, por autorizados teóricos fascistas, que reivindicavam ser ele o
28
Ver: WITTGENSTEIN, Ludwig.
Tractatus Logico-philosophicus.
São Paulo, Edusp: 1993.
coroamento do processo de unificação nacional iniciado com o Ressurgimento,
foi questionado com o surgir de movimentos fascistas em vários países da
Europa, mormente com a subida ao poder do nacional-socialismo na Alemanha.
A partir dos anos 30, predominam as interpretações tendentes a acentuar o
caráter supracional do Fascismo, que haviam de orientar a maior parte da
pesquisa e alimentar o debate teórico mesmo depois da Segunda Guerra Mundial.
(SACCOMANI, 2016, p. 468).
Além da Itália e da Alemanha, Romênia, Hungria, Áustria e a Espanha
experimentaram movimentos que podem ser enquadrados como fascistas, considerando
o nacionalismo orgânico, estatismo radical e paramilitarismo (MANN, 2008) como
elementos fundamentais para entender e caracterizar esse fenômeno:
O fascismo não foi apenas um aspecto marginal no desenvolvimento da sociedade
moderna. Disseminou-se por boa parte do núcleo da modernidade na Europa.
Juntamente com o ambientalismo, foi principal doutrina política de alcance
histórico mundial surgida no século XX. Existe a probabilidade de algo muito
semelhante a ele, embora quase certamente com outro nome, venha a
desempenhar um papel importante no século XX. Os fascistas estão no próprio
cerne da modernidade. (MANN, 2008, p. 11).
O prognóstico de Mann permite caracterizar alguns movimentos de extrema direita
contemporâneos como fascistas, ou neofascistas, ainda que não se adequem (
strictu
sensu
) aquilo que chamamos de fascismo histórico dos entreguerras. No Brasil atual,
podemos apontar várias práticas de caráter fascista do governo Jair Bolsonaro. Talvez a
mais escandalosa tenha sido o discurso professado pelo então Secretário Especial de
Cultura, Roberto Alvim que, por ocasião do anúncio daquilo que seria “Prêmio Nacional
das Artes”, parafraseou o discurso de Joseph Goebbels, Ministro de Propaganda da
Alemanha nazista.
Um dos elementos mais importantes na primeira parte do discurso é a ideia de
auto sacrifício
. Pode-se relacioná-la a uma série de medidas e reformas em curso
que prejudicam a parcela mais vulnerável da população, seja pela precarização
do trabalho, violência policial, fim do Estado de bem-estar social por meio do
ataque à previdência social. Nisso reside uma das diferenças fundamentais entre
o fascismo dos dias atuais e o fascismo histórico do entreguerras. Na primeira
metade do século XX, o Estado era central na estratégia fascista de mobilização
social e como centro promotor da atividade econômica e industrial. Hoje,
presencia-se o apelo ao auto sacrifício individual e coletivo em nome da economia
neoliberal e a política de salvamento dos interesses capitalistas. (ASSIS; LEITE,
2022, p. 10).
Mesmo no entreguerras havia dificuldade de agrupar movimentos tão diversos, em
razão das diferenças em termos de estrutura e ideologia, segundo George Orwell:
Não é fácil, por exemplo, encaixar a Alemanha e o Japão num mesmo contexto, e
isso ainda mais difícil em relação a alguns dos pequenos Estados que se poderiam
descrever como fascistas. Com frequência supõe-se, por exemplo, que o
fascismo é inerentemente belicoso, que ele prospera num ambiente de histeria
bélica e pode resolver seus problemas econômicos mediante preparativos para
a guerra ou conquistas no estrangeiro. Mas isso claramente não é verdadeiro no
que tange, digamos, a Portugal ou a várias ditaduras sul-americanas. Ou, ainda, o
antissemitismo é tido como uma das marcas distintivas do fascismo; mas alguns
movimentos fascistas não são antissemitas. Controvérsias eruditas que
reverberaram por anos sem fim em revistas americanas não foram capazes nem
mesmo de determinar se o fascismo é ou o uma forma de capitalismo. Mas,
ainda, quando aplicamos o termo “fascismo” à Alemanha ou ao Japão ou à Itália
de Mussolini, sabemos amplamente a que estamos nos referindo. (ORWELL, 2017,
p.85/86).
Com base em uma sociologia dos movimentos fascistas, Michael Mann estabelece
alguns elementos para compreensão do fascismo; o primeiro deles é o conceito de nação
“integral” ou orgânica”, que considera o povo uno e indivisível; o Estado é encarado como
o portador de um projeto moral, capaz de promover o desenvolvimento econômico, social
e moral
29
; por fim, a existência de um movimento paramilitar nitidamente “radical” e “fora
de controle”:
A ele caberia neutralizar toda oposição ao Estado-nação com a violência vinda de
baixo, qualquer que fosse o custo. Essa glorificação da violência concreta surgia
em consequência da moderna “democratização” da guerra, transformada em
guerra entre “exércitos de cidadãos”. O fascismo, assim, propunha uma versão
extrema e nitidamente para militar do nacionalismo de Estado. (MANN, 2008,
p.13)
Orwell analisa e ficcionaliza o tempo em que viveu, época do surgimento do
fascismo. Através do ficcional literário, vincula fragmentos da realidade sem estabelecer
em que medida o faz. Por esse motivo, o lugar social é indispensável para compreensão de
sua obra, bem como a recepção e utilização conveniente de seus argumentos. A literatura
e o jornalismo de George Orwell são manifestações políticas a favor do socialismo
democrático e de combate ao totalitarismo, não apenas do stalinismo, e das diferentes
variações do fascismo. Inclusive, os textos de Orwell ajudam a compreender aspectos
autoritários presentes no horizonte liberal democrático que, cada vez mais, recorre ao
Estado de exceção para agenciar a política neoliberal:
As instituições se tornam armas políticas, brandidas violentamente por aqueles
que as controlam contra aqueles que não as controlam. É assim que os autocratas
eleitos subvertem a democracia aparelhando tribunais e outras agências
neutras e usando-os como armas, comprando a mídia e o setor privado (ou
intimidando-os para que se calem) e reescrevendo as regras da política para
mudar o mando de campo e virar o jogo contra os oponentes. O paradoxo trágico
da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as
próprias instituições da democracia gradual, sutil e mesmo legalmente para
matá-la (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 19).
Esse cenário alimenta o recrudescimento de ideologias de extrema direita,
discursos (neo) fascistas, nazistas e supremacistas. A exasperação de líderes populistas e
autoritários lança mão de estratégias e práticas antidemocráticas, estimulando a violência
a partir de baixo, de maneira que a aplicação do conceito não é inviável, mas deve ser
29
O famigerado pronunciamento de Roberto Alvim fala em “elevação da Nação de do povo acima de
interesses particulares mesquinhos”, daí a “necessidade” de uma Arte a partir de uma nacionalidade plena,
imperativa e vinculante, trecho que imediatamente o associou ao discurso de Goebbels (1933).
rigorosamente especificada a partir de seus elementos constitutivos, considerando os
projetos de poder no mundo contemporâneo.
Considerações Finais
O fascismo ocupa um lugar central no desenvolvimento da sociedade moderna,
permanecendo atualmente como uma doutrina (anti)política de alcance global. No passado,
o fascismo estava ancorado na ideia de Estado-nação, como uma tentativa de responder
às crises ideológicas, econômicas, militares, culturais e políticas posteriores à Primeira
Guerra Mundial. Um século depois, o neofascismo contemporâneo apresenta novos
elementos e estratégias, ao mesmo tempo em que evidencia permanências. Pela sua
própria dimensão conceitual assim como capitalismo, socialismo e mesmo democracia
o conteúdo do fascismo pode ser atualizado, preservando seus traços característicos
que o viabilizam enquanto conceito. A negação, falsificação e ataque à História, a partir da
própria impossibilidade de verdade objetiva, seja pela violência política, seja pelo apelo
ideológico, é um marcador fundamental para compreensão do fenômeno, fato denunciado
e ficcionalizado por George Orwell.
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