Não se faz cinema sem cultura
cinematográfica e uma cultura viva
exige simultaneamente o conhecimento
do passado, a compreensão do presente
e uma perspectiva para o futuro
(
Suplemento Literário
do jornal
OESP,
23 mar. 1957)
Funções da Cinemateca
,
Paulo Emílio Sales Gomes
Para José Inácio de Melo Souza (Cinemateca Brasileira), pesquisador incansável da
cultura cinematográfica.
*
Existem diferentes formas de começar um texto sobre o fenômeno cultural de
massa que encantou gerações, comoveu audiências e participou da invenção da vida
moderna. Na substituição das antigas formas artesanais de diversão, eruditas e populares,
os filmes suscitaram a profunda transformação de diferentes práticas sociais como rituais,
comportamentos, simbologias e ideias que, sujeitas à atmosfera de diferentes épocas e
contextos geopolíticos, foram transmitidas de geração em geração em diferentes grupos
humanos. De todos eles, os rastros mais quentes podem ser encontrados nas trajetórias
intelectuais de críticos, cronistas e historiadores que participaram da formação da cultura
cinematográfica: os primeiros, implicados no sucesso artístico ou comercial dos filmes; os
historiadores, concentrados na preservação e difusão do patrimônio cultural
cinematográfico.
Na história da cultura cinematográfica brasileira, a transmissão dessa tradição pode
ser encontrada na encantadora alma das salas de cinema registradas por João do Rio, na
defesa do cinema brasileiro encampada por Peri Ribas, Pedro Lima e Adhemar Gonzaga e
no ímpeto de Octávio de Faria e Plínio Sussekind Rocha na direção do Chaplin Club, o
primeiro clube de cinema do Brasil (1927-1930). Apresentado por Plínio ao cineclubismo
francês ao final da década de 1930, o crítico e historiador Paulo Emílio Sales Gomes foi o
personagem-ponte que ligou o desenvolvimento da cultura cinematográfica nacional ao
movimento internacional que tomou corpo na Europa após a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Na França (1946-1954), o antigo cineclubista do Clube de Cinema de São Paulo
(1940) e crítico de cinema da Revista Clima (1941-1944) frequentou o Instituto de Altos
Estudos Cinematográficos e o grupo de Filmologia da Sorbonne, assistiu inúmeros filmes
e participou da montagem de exposições na Cinemateca Francesa, participou de festivais
de cinema e da Federação Internacional dos Arquivos de Filmes como representante
internacional da Filmoteca do Museu de Arte Moderna-SP (Cinemateca Brasileira, 1956)
entidade que assume a direção ao retornar ao Brasil em 1954 para organizar as mostras
culturais do I Festival Internacional de Cinema do Brasil.
No comando da instituição, Paulo Emílio empreende inciativas voltadas à difusão
da cultura cinematográfica, como ciclos, cursos, mostras, festivais e pesquisas de fontes
fílmicas e não lmicas sobre a história do cinema brasileiro com o objetivo de preservá-
las e assegurar sua transmissão para as gerações posteriores. Ao final dos anos 1950, a
legitimação do cinema como patrimônio cultural dependia dos laços que ele estabelece
com sua comunidade. Paulo Emílio entendia que não havia entre os países modernos
aqueles que não considerassem as obras marcantes da história do cinema como um
patrimônio artístico” a ser defendido “contra a ação do tempo”. Nenhuma “sensibilidade
moderna” poderia ficar indiferente ao “folclore da era industrial” e não lhe poderiam negar
seu status de “um dos maiores fornecedores de fantasia para o consumo do homem
moderno, de ser um reflexo da vida social” e “uma chave até então ignorada para a
interpretação das estruturas psicológicas da comunidade” (GOMES, 1982, p. 464).
Foi na direção da Cinemateca Brasileira que Paulo Emílio forja o conceito de cultura
cinematográfica observado nas práticas culturais da geração anterior: com essa regra
geral, o historiador compreende o fenômeno cinematográfico a partir do estudo da
linguagem cinematográfica, do estilo e da expressão social, ou mais precisamente, da
expressividade social de seus filmes, da qual dependeria não apenas a sua essência
artística como sua existência comercial. Estava claro para Paulo Emílio que a formação do
cinema brasileiro e a preservação de sua história dependia da animação geral da vida social
brasileira, dos seus temas e paisagens, de seus tipos humanos singulares. Tratava-se de
decifrar a fisionomia histórica do cinema brasileiro, não apenas de seus filmes, mas de seu
público.
A identificação ou mesmo invenção dessa fisionomia nacional, erudita e popular,
buscava não mais replicar as divisões profundas da sociedade brasileira, mas de erigir uma
cultura cinematográfica moderna, nacional e de massas, que refletisse a realidade de
ocupantes e ocupados, que fosse autêntica, mas que também divertisse e suscitasse
“estímulos diferentes” e “novos ângulos de apreciação” para “qualquer pessoa interessada
em teatro, sociologia, pintura, política, literatura, história, arquitetura, filosofia ou música”
(GOMES, 1982, p. 464) interesses correntes de uma sociedade moderna, mais próxima
da civilização do que da barbárie. Arvorando-se nessa tradição, o dossiê A cultura
cinematográfica e sua história reúne trabalhos acadêmicos implicados na multiplicidade
de questões suscitadas pelo fenômeno cinematográfico, suas ideias, teorias, práticas
culturais e usos políticos do passado.
No artigo
O Centro Sperimetale Di Cinematografia e a Revista Bianco e Nero:
Arquivamento, Historiografia e Usos do Passado na Itália Fascista
, Francisco Santiago
Júnior analisa a experiência histórica do Centro Sperimentale Di Cinematografia e o seu
braço editorial, a revista Biano e Nero para narrar diferentes instâncias formadoras da
cultura cinematográfica italiana nos anos 1930 e 40: o papel dos intelectuais na formação
de uma historiografia do cinema italiano; a materialidade do cinema através da imprensa e
das práticas de documentação não fílmica; e a formação do embrião da Cineteca Nazionale
(Roma). Fatores concomitantes que articularam o uso histórico de imagens do passado
enquanto saber específico e legitimador do cinema como cultura.
Em ano eleitoral, Áureo Busseto presta um grande serviço em
Enquadrando o Início
da TV: Projeções do Cinema sobre a Surgente Televisão e o Alerta do Filme S.O.S Tidal
Wave (1939) Acerca de Fake News em Telejornalismo
. No artigo, o historiador disseca
múltiplas intersecções da cultura cinematográfica com esferas da imprensa e da política.
Busseto apresenta, por um recorte filmográfico inédito de obras menos consagradas de
Hollywood, o pioneirismo de um cinema que incorpora a experiência da nascente televisão
em aspectos ainda inalcançáveis da sua tecnologia, mas prenunciativos dos limites éticos
da comunicação social em tempos atuais: as
fake news
, elemento central na trama de
S.O.S. Tidal Wave
, que envolve o então futurista telejornal como ferramenta de interesses
econômicos e políticos-eleitorais temas proibitivos para um filme exibido por aqui
durante o Estado Novo.
A experiência cultural
O cinema de arte do Recife
, ativo entre 1960 e 1974, é
narrada por Alexandre Figueroa de dentro, ou seja, a partir da perspectiva do crítico
cinematográfico do
Diário de Pernambuco
Fernando Spencer, quem fundou o grupo com
os também críticos Celso Marconi, José de Souza Alencar e Ivan Soares. No artigo, a
importância das relações transatlânticas, especialmente com a França, é acentuada na
delimitação de um modelo de formação que concilia a difusão cultural através dos filmes
e da imprensa, onde Spencer deixou os rastros que permitiram ao autor reconstituir a
trajetória histórica e o contexto no qual o Cinema de Arte do Recife influiu na consolidação
da cultura cinematográfica na cidade.
Em
O auge do cineclube de Montevidéu dos anos 50
, Mariana Amieva prospecta as
tonalidades da cultura cinematográfica constitutiva da própria formação cultural do
Uruguai. Ao analisar a bibliografia testemunhal do Cine Club del Uruguay e do Cine
Universitario del Uruguay, Amieva insere estes cineclubes no contexto social e cultural
dos anos 1950 para melhor examinar suas respectivas estratégias fundacionais que
proclamavam lastros na tradição nacional e internacional de cineclubes. Entre a opção por
uma cinefilia esteta ou pela ampliação dos espaços de cinema para um público cada vez
mais popular, a autora observa não somente a diferença entre duas propostas de
cineclubes, mas a própria cultura cinematográfica em formação, sendo a expressão de
classes sociais, mudanças geracionais e da modernidade econômica e social vivida naquele
país.
Na mesma seara cineclubista dos anos 1950, o artigo
Cópias de filmes e salas de
exibição, cineclubes e cinematecas: o caso do Centro de Cultura Cinematográfica (1956-
1957)
, de Rafael de Luna Freire, recupera a curta e intensa trajetória do Centro de Cultura
Cinematográfica, o seu particular estímulo à cultura cinematográfica através de sessões
de filmes, conferências, biblioteca, boletins. Para além das pretensões elitistas, calcadas
na almejada ligação com artistas e intelectuais, Freire demonstra como o cineclube
fomentou práticas que sustentariam as exibições do Departamento de Cinema do MAM
com o qual se funde em 1957. O artigo evidencia o percurso do Centro de Cultura
Cinematográfica que, entre as práticas de cineclube e cinemateca, viabilizou sessões em
salas comerciais e rotas de empréstimos de cópias do exterior, constituindo alicerces para
a futura Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Em
As Poltronas do CIMO Acompanham a História do Cinema: A Contribuição da
Fábrica de Móveis CIMO S.A. para o Mercado Exibidor Cinematográfico em São Paulo
(1940-1950)
, Osvaldo B. M. Santos da Silva investiga, a partir de jornais e revistas as
práticas e as relações comerciais constitutivas do mercado exibidor, mas por um viés
peculiar: o mobiliário das salas. O autor expõe a perspectiva pela qual a Móveis CIMO S.A.
lidou com a cultura cinematográfica, mesmo não sendo uma empresa direta da cadeia de
produção do cinema. A estratégia da empresa para legitimar-se como parte dos avanços
tecnológicos do cinema nos mostra uma cultura cinematográfica material reconstituída a
partir de fontes que transcendem a publicidade obtida na grande imprensa e em periódicos
exclusivos do campo cinematográfico.
Em
Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP): Registro da memória coletiva
no Brasil
, camadas da nossa cultura política e cinematográfica são observadas a partir do
percurso histórico da ABVP, ponto de partida para Wilq Vicente tecer sua análise fílmica
do “vídeo popular”
Lugar
(1987). Vicente demonstra como esse documentário,
representativo do acervo da ABVP, catalisa o momento social e político brasileiro de sua
produção, da luta popular por ela mesma, enquanto também é tributário da tradição de
filmes que, do Cinema Novo aos documentários sobre os movimentos reivindicatórios dos
anos 1970 e 80, procuraram dar voz ao povo. O autor ainda avança para algo premente em
nossa cultura cinematográfica: a preservação desses filmes, discussão que também enseja
questões políticas, como as lamentáveis descontinuidades e consequentes perdas
ocorridas na história recente da Cinemateca Brasileira.
O
Mapeamento das pesquisas sobre salas de cinema nos cursos de pós-graduação
stricto sensu do estado do Rio de Janeiro
realizado por Ryan Brandão, Lívia Cabrera e
Sancler Ebert empreende uma revisão sistemática das pesquisas sobre salas de cinema
localizando-as em seus respectivos programas de pós-graduação, públicos e privados. Ao
empreender esse exercício, a autora e os autores delimitam diferentes metodologias
mobilizadas na interpretação histórica e etnográfica das salas de cinema espaços
inequívocos de irradiação da cultura cinematográfica, artística e comercial.
Ainda no âmbito da difusão cultural, Adriano Garrett e Sheila Schvarzman
historicizam o papel dos festivais de cinema na divulgação de obras, formação de públicos
e incentivo a realizadores em as
Novas características curatoriais em festivais de cinema:
brasileiros contemporâneos no século XXI
. O artigo reconstitui o conceito de curadoria
contemporâneo através de critérios de seleção e as estratégias de difusão em um contexto
de maior diversidade de agentes e de ampliação de produtores e públicos, tal qual pode
ser observado nas experiências do forumdoc.bh, da Mostra do Filme Livre, do Cine
Esquema Novo, da Semana dos Realizadores, do CachoeiraDoc e da Mostra de Cinema de
Tiradentes.
Em
Negociações do real entre a fenomenologia e a filmologia uma abertura ao
mundo
, Mauro Araújo reconstitui a aproximação do cinema com a filosofia no pós-
Segunda Guerra Mundial, época de grande efervescência da cultura cinematográfica na
Europa. Será nesse período que veremos no continente a formação de festivais de cinema,
o fortalecimento de cineclubes e cinematecas e da composição de grupos de trabalhos
específicos, com diferentes propósitos, no caso da Filmologia, o compreender o cinema
não apenas como arte ou entretenimento, mas como fenômeno social, tal qual defendeu
o manifesto fundador do grupo:
Ensaio sobre os princípios de uma filosofia do cinema
(1946), de Gilbert Cohen-Séat, no qual advogou por uma interpretação científica e
interdisciplinar do cinema e que se prolongará, na década seguinte, com a maior ênfase
nas relações entre o cinema e a antropologia ideias caras para a formação da cultura
cinematográfica, aqui e alhures.
No que se refere propriamente aos filmes,
Rasgos de una identidad étnica en la
filmografía de Bahman Ghobadi
, assinado por Violeta Rodríguez García, discute o papel do
cinema como meio de construção de identidade analisando a trajetória histórica da etnia
curda e sua condição marginal entre outras identidades e territórios nacionais, como a
iraniana, iraquiana, síria e turca. Aqui, o leitor poderá se familiarizar com a questão curda
e com restrições políticas que pendem contra a etnia para dimensionar a importância do
cinema, a partir da década de 1990, como meio de formação e afirmação identitária através
da interpretação da filmografia de Bahman Ghobadi.
Finalmente, o artigo
A “Última Canção” De Andrzej Wajda: Afterimage
(2016)
e o
Retorno da Cinebiografia
, assinado por Ana Paula Bertoncello Fontes, demonstra como o
diretor polonês narra a introdução do realismo socialista na Polônia após a ocupação
soviética pós-Segunda Guerra e seu impacto sobre artistas, músicos, literatos e cineastas
como ele próprio. Assim, o foco da autora repousa na narrativa fílmica dessa ficção
histórica de Wadja ao retomar eventos, personagens e datas históricas no contexto de
ascensão do partido polonês Lei e Justiça (PIS) e de sua retórica de extrema direita.
Em linhas gerais, A cultura cinematográfica e sua história tal qual foi discutida ao
longo dos doze artigos que compõe o dossiê retomam experiências históricas de grande
importância não apenas para o desenvolvimento das pesquisas histórico-
cinematográficas. Eles oferecem imagens estimulantes de campos de experiências e
horizontes de expectativas de seus personagens principais revelando seus projetos, suas
ações e paixões pela imagem em movimento, seus compromissos com o passado, com o
presente e com o futuro das sociedades nas quais os filmes florescem e frutificam como
artefatos de nossa época, nossos temas e paisagens, coisas nossas.
Dr. Rafael Morato Zanatto
Escola de Comunicação e Artes (USP)
https://orcid.org/0000-0001-6623-4668
Dr. Rodrigo Archangelo
Cinemateca Brasileira
https://orcid.org/0000-0003-31757113
Referências
GOMES, Paulo Emílio Sales.
Crítica de cinema no Suplemento Literário
, vol. 1. Rio de
Janeiro: Paz & Terra/ Embrafilme, 1982.