SILVA, Joice Viviane*
https://orcid.org/0000-0003-4980-4993
RESUMO: Este artigo apresenta uma breve
exposição da autobiografia de Gladys Aylward,
uma missionária protestante inglesa que atuou
na China após 1930. A análise da produção tem
como objetivo identificar, entre as técnicas do
eu pensadas pelo filósofo francês Michel
Foucault, o exercício da "escrita de si" e como
a subjetividade e a constituição do eu são
elaboradas como sujeito dentro do processo
narrativo. Para efetuar o estudo proposto, foi
necessário considerar as diferenças entre as
práticas de narrativa autobiográfica e o
exercício de “escrita de si”, assim como os
modelos de subjetividade cristã, a fim de
identificar dispositivos específicos dessa
prática na narrativa da personagem em
evidência.
PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia; escrita
de si; subjetividade.
ABSTRACT: The purpose of this paper is to
review the autobiography of Gladys Aylward
(1902-1970), an English protestant missionary,
who lived in China after 1930. An analysis of
her writings was done to investigate the self-
thought techniques among her work,
specifically the French philosopher Michel
Foucault’s exercise of self-writing”, and how
its subjectivity formulation and constitution of
the self as subject are found in her writing. In
order to review her work, it was required to
watch for the variations between the
autobiographical narrative practices and the
“self-writing” exercise, as well as to account
for the Christian subjectivity models to notice
the specific uses of this exercise in her
persona’s narrative.
KEYWORDS: Autobiography; self-writing;
subjectivity.
Recebido em: 12/10/2022
Aprovado em: 26/12/2022
Introdução
Biografias e autobiografias têm sido um grande sucesso editorial nas últimas
décadas. Estes gêneros literários encontraram receptividade entre os mais diversos
* Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal do Paraná, Curitiba- PR, doutoranda do
Programa de Pós-Graduação em História da UFPR, Curitiba PR. Professora da rede estadual do Estado de
Mato Grosso Secretaria de Estado de Educação (Seduc), Nova Mutum MT. E-mail:
historiavi@yahoo.com.br
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
públicos e conquistaram espaço entre os debates acadêmicos. O objetivo deste trabalho
é analisar a narrativa autobiográfica da missionária protestante Gladys Aylward (1902-
1970), para refletir a maneira como a autobiografia e as práticas de “escrita de si”,
técnica explorada pelo filósofo francês Michel Foucault, evidenciam o processo de
construção da subjetividade desta religiosa.
Para realizar essa observação, senecessário esquadrinhar o contexto histórico
vivido pela personagem destacada e como o movimento missionário protestante foi
atuante na China no início do século XX. Destacando ainda como Aylward fugiu dos
protocolos missionários da época, como missionária não denominacional e independente.
Sem treinamento profissional para ir para o campo missionário, oriunda da classe
trabalhadora e sem apoio de sociedades missionárias para a sua empreita, Gladys decidiu
ir para a China por iniciativa própria.
Para analisar a vida de Aylward através de sua produção autobiográfica buscou-
se respaldo em autores que estudaram a vida de missionárias e o movimento missionário
protestante, como a historiadora Eliane Moura Silva, Carlos Barros Gonçalves, Stephen
Neill e Justo González e Carlos Orlandi. Para categorizar a autobiografia utilizou-se a
concepção de Philippe Lejeune e as reflexões de Kaline Silva para pensar o processo de
escrita autobiográfica. Para observar o exercício da escrita de si e a constituição da
subjetividade, foram fundamentais as reflexões de Michel Foucault, Margareth Rago e
Margaret McLaren.
O artigo desenvolve primeiramente o contexto hisrico das missões protestantes
na China no início do século XX, e perpassa pela construção da atuação missionária
feminina no período. A partir do contexto exposto, apresenta a personagem e as nuances
de sua narrativa autobiográfica. No segundo momento, são analisados os pressupostos
teóricos que sustentam as reflexões sobre a narrativa de Gladys Aylward e a forma a
qual suas contribuições oferecem recursos para pensar a constituição da subjetividade
da personagem.
Missionarismo protestante e a trajetória de Gladys Aylward
Para tratar da autobiografia de Gladys Aylward, é importante situar o movimento
do qual ela fez parte dentro do protestantismo, o missionarismo, assim como a
importância das mulheres dentro deste movimento. No século XIX, o missionarismo
protestante vivia seu auge, principalmente nos Estados Unidos, que possuía uma forte
empresa missionária, e na Europa Ocidental, contando com a força dos ideais
neocoloniais e adentrou o século XX anexando colônias e expandindo o protestantismo
principalmente na África e na Ásia.
Na China, a força missionária protestante ganhou ímpeto a partir do Tratado de
Nanquim (1842) que encerrava a Guerra do Ópio, e selava a dominação colonial inglesa.
Conseguinte, foram abertos cinco portos chineses aos estrangeiros, além da conquista
de Hong Kong. Desta forma, as missões protestantes de diferentes denominações
conseguiram acesso aos territórios chineses para disseminar a mensagem evangélica.
Segundo Stephen Neill “Quase todas as sociedades missionárias pareceram
prontas a enviar trabalhadores para a China e quase todas desejavam estar
representadas nas seis cidades abertas aos estrangeiros [...]” (NEILL,1989, p.291). Os
europeus enviaram principalmente missionários das vertentes católicas, metodistas e
presbiterianos; os americanos: congregacionalistas, presbiterianos, batistas, metodistas
e episcopalianos, que se estabeleceram na região na segunda metade do século XIX
(NEIL, 1989, p.291).
No florescer do século XX, o número de missionários protestantes na China
cresceu expressivamente. Em 1889 eram relatados 1.296 missionários protestantes; em
1905, o número aumentou para 3.445, sendo 1.143 homens, 1.038 esposas e 964 mulheres
solteiras. Em 1914 o número era de 5.462, entre os quais 2.143 eram homens, 1.652
esposas e 1.614 mulheres solteiras (LATOURETTE, 1929, p.606).
Nesse período, as notícias que chegavam à Inglaterra da obra evangelizadora na
Índia e China, contribuíam para estimular o interesse missionário (GONZÁLEZ;
ORLANDI, 2008, p. 246), a publicação e propagação das atividades era uma prática
fundamental no missionarismo protestante. Segundo Erika Delgado (2015), essa
necessidade devia-se ao fato de viverem de contribuições financeiras voluntárias, e se
intensificou após a Conferência Missionária Mundial, em Edimburgo (1910), fomentada
pela iniciativa de trabalho ecumênico no campo missionário internacional (GONZÁLES;
ORLANDI, 2008, 252-253).
A Conferência de Edimburgo (1910) reuniu mais de 1200 representantes de
entidades missionárias de diferentes partes do mundo, com o objetivo de debater o
desenvolvimento da obra missionária nos países “não-cristãos”, segundo o historiador
Carlos Gonçalves “foi a oportunidade para um acordo geral sobre aspectos da política e
estratégia missionária acima das diferenças regionais ou de confissão.” (GONÇALVES,
2015, p.154).
Na China, um dos alvos da ação missionária internacional, a cooperação entre os
diferentes grupos era evidente. Sobre esse período, González e Orlandi destacam:
Durante a primeira metade do século XX, da mesma forma que em outros
campos missionários, produziu-se na China um movimento para a unidade do
empreendimento protestante. Esse movimento manifestou-se no ano de 1922 na
fundação do Conselho Nacional Cristão. Alguns anos antes, os diversos ramos
anglicanos se haviam unido em uma só igreja; o mesmo haviam feito os
luteranos. Pouco mais tarde, organizou-se a Aliança Batista na China; no
entanto, o mais notável esforço ecumênico de todo esse período na China um
esforço que naquela época parecia único em todo o mundo foi a formação da
Igreja de Cristo na China, que uniu cristãos procedentes de tradições
reformadas, congregacionalistas, batistas e metodistas (GONZÁLES; ORLANDI,
2008, p.320).
O historiador Carlos Gonçalves, enfatiza dois aspectos dentro desse intenso
período de missões: o primeiro que corresponde a iniciativas individuais de alguns
missionários; e o segundo, que foi a organização, a partir do final do século XVIII, das
agências missionárias e sociedades bíblicas (GONÇALVES, 2015, p. 50 e 51).
Para Gonçalves, ao estudarmos este tema, é preciso entender o que seria o ato
missionário dentro do protestantismo e a designação de missionário. Para ele:
O missionário pode ser definido como sujeito que, aceitando um chamado
divino, decide abandonar todas as coisas e dedica-se ao cumprimento da
vontade soberana de Deus em expandir, das mais variadas formas, a fé cristã. O
aceite em cumprir a vontade de Deus é inerente à compreensão do indivíduo
achar-se um vocacionado para tal empreendimento, considerado divino. Desse
modo, todos os cristãos, bem como as igrejas cristãs, foram chamados à tarefa
de pregar o Evangelho a toda criatura (GONÇALVES, 2011, p. 34).
Com a expansão missionarista foram fundadas diversas sociedades e agências
missionárias protestantes durante todo o século XIX, em paralelo às políticas
imperialistas das grandes potências capitalistas deste período. A historiadora Eliane M.
da Silva sublinha que
Era comum a chegada de um casal ou pequeno grupo de missionários nos
distantes lugares de colonização (Índia ou África) ou terras distantes pagãs ou
católicas (Brasil e América Latina em geral), para iniciar um trabalho de
vanguarda de estabelecimento de um posto missionário avançado e, em seguida,
partir para os territórios ainda desocupados (SILVA, 2008, p.27).
Até por volta de 1870, o movimento missionário era predominantemente
masculino. Ainda que vários missionários fossem casados e suas esposas estivessem
envolvidas no trabalho de evangelização, o controle do projeto era do homem, “até o
momento em que o recrutamento de mulheres como missionárias independentes
começou a alterar este paradigma de gênero.” (SILVA, 2008, p.27). Segundo Silva (2012),
o missionarismo teve influência direta sobre os papéis de gênero e a situação feminina
no período vitoriano.
O trabalho das mulheres missionárias foi de extrema importância para todas as
denominações protestantes que mantinham atividades evangelísticas, principalmente das
religiosas com formações como professoras e enfermeiras, que uma das estratégias
missionárias era através da educação e da assistência médica. Para Silva:
O trabalho das missionárias floresceu não apenas por conta das convicções
espirituais, que eram importantes, mas porque encontravam imensa satisfação e
realização pessoal com seus esforços, trabalho, contatos sociais e liberdade
(SILVA, 2012, p.34).
A historiadora citada acima, ressalta ainda, o papel fundamental das missionárias
para a atividade de conversão e pregação, pois “fizeram parte deste jogo de
representações dos papéis de gênero feminino no final do século XIX e início do XX.”
(SILVA, 2012, p. 34).
Para muitas mulheres do período vitoriano “um trabalho missionário em outros
países, distantes e exóticos, podia ser visto como desafio acrescido de deveres
religiosos, uma satisfação pessoal e um comprometimento especial com a fé.” (SILVA,
2012, p.34). Outro aspecto importante sobre estas missionárias, dentro do contexto da
expansão imperialista nos séculos XIX e início do século XX, é a legitimidade do
deslocamento de forma honrada que estas missões religiosas proporcionavam a essas
mulheres. Assim como para agir em público, que sem o respaldo material, social e
religioso, seria muito difícil a atuação pública para mulheres sozinhas (SILVA, 2011, p. 25).
Eliane Silva (2008), destaca a importância da institucionalização e
profissionalização do trabalho missionário feminino nessa época:
As Sociedades Missionárias Femininas foram incrementadas na segunda metade
do século XIX. Nessa época, a mulher missionária começou a se tornar um alvo
de grande interesse nas Igrejas para ocupar diferentes posições e trabalhos. [...]
Após a Guerra de Secessão, a participação das mulheres no trabalho
missionário foi profissionalizada, mudando seu papel/aspiração dentro da
maioria das Igrejas (SILVA, 2008, p. 27).
As mulheres passaram a receber formação profissional das sociedades
missionárias para desenvolverem as atividades evangelizadoras (SILVA, 2008) e com o
respaldo financeiro das instituições partiam para o campo. É neste contexto que Gladys
Aylward atuou como missionária solteira que se aventurou a evangelizar o norte da
China a partir de 1932, mas com o diferencial de ser oriunda da classe trabalhadora, não
ter formação profissional e não ter apoio das sociedades missionárias.
A autobiografia de Gladys Aylward, tem como título original em inglês The Little
Woman, na qual ela relatou sua história pessoal para Christine Hunter, uma proeminente
escritora da época. A primeira publicação do livro foi exatamente no ano da sua morte,
1970. O livro foi escrito em primeira pessoa, deixando claro a única função de Hunter:
transmitir o que lhe era narrado para o papel. No Brasil, o livro foi traduzido para a
língua portuguesa com o título Apenas uma pequena mulher, em 1987, pela Editora Vida,
esta, de grande notoriedade no meio editorial protestante.
Gladys Aylward começa seu relato autobiográfico dizendo que a maior ambição
de sua vida era trabalhar no palco, ser uma atriz. Ela nasceu em Edmonton no norte de
Londres, em um lar cristão protestante, mas em nenhum momento indica a denominação
ou igreja que frequentava com sua família. Seu pai era carteiro, a mãe cuidava da casa e
dos filhos. Tinha uma irmã e um irmão. Largou a escola aos 14 anos e arrumou um
emprego de arrumadeira. Posteriormente, continuando a trabalhar no serviço doméstico
durante o dia, passou a frequentar aulas de artes dramáticas a noite.
Relembrando os tempos de sua juventude, contextualiza:
A maioria das moças das classes trabalhadoras empregavam-se como
‘domésticas’, por haver poucas oportunidades de outro tipo de trabalho para
elas. Assim, tornei-me uma arrumadeira, mas, de noite, fazia um curso de artes
dramáticas pois estava dedicada a economizar e, por bem ou por mal, chegar
até a ‘ribalta’ (AYWARD; HUNTER, 1.987, p. 5).
É importante destacar as origens de Gladys Aylward, considerando que parte das
estratégias missionárias se davam através da educação e dos cuidados medicinais, o
movimento priorizava mulheres com formações como professoras, enfermeiras e
médicas, formações mais acessíveis às classes mais abastadas da sociedade (SILVA,
2011). Gladys como pertencente a classe trabalhadora torna-se um diferencial nesse
meio, ganhando ainda mais destaque quando resolve ir para China por conta própria sem
o apoio de uma sociedade missionária financiadora.
Na maioria das biografias e autobiografias missionárias, dois momentos são
fundamentais nas narrativas: primeiro, a conversão do indivíduo ao cristianismo
protestante; segundo o momento do chamado, quando a pessoa sente que recebe a
vocação para dedicar sua vida às missões. Com Gladys não foi diferente, sobre sua
conversão, ela faz a seguinte explanação:
Certa noite, porém, por motivo que jamais consegui explicar, fui a uma reunião
religiosa. Ali, pela primeira vez, percebi que Deus tinha direito à minha vida, e
aceitei a Jesus Cristo como Salvador. Tornei-me membro da Campanha Vida
Jovem, e, numa revista dessa entidade, li um artigo sobre a China que me
impressionou tremendamente. Saber que milhões de chineses jamais tinham
ouvido falar de Jesus Cristo foi para mim uma descoberta assombrosa, e achei
que certamente tínhamos a obrigação de fazer algo a respeito (AYWARD;
HUNTER, 1987, p.5).
É importante ressaltar que a Campanha Vida Jovem era uma instituição não
denominacional, fundada em 1911 por dois jovens irlandeses, Frederick e Arthur Wood,
com o objetivo de evangelismo juvenil. Segundo Janet e Geoff Benge (2020), foi nessa
instituição que Gladys ouviu sobre as missões na China. “Ela ouvira um jovem pregador
falar sobre as muitas oportunidades missionárias maravilhosas existentes, em especial
na China. Algo dentro de Gladys foi despertado naquela noite e ela soube que queria
servir a Deus como missionária na China.” (BENGE; BENGE, 2020, p. 20). Esse episódio
demonstra como as obras missionárias protestantes na China estavam sendo propagadas
na Inglaterra.
Depois da leitura do tal artigo e a pregação que ouviu na Campanha Vida Jovem,
Gladys começou a falar com seus amigos cristãos sobre o assunto, mas segundo ela,
ninguém demonstrou muito interesse, foi então falar com seu irmão instando-o ir à
China, no entanto, ele recusou afirmando que este tipo coisa era “serviço para
solteironas” (AYWARD; HUNTER, 1987, p. 6). Naquele momento, Gladys afirma ter
sentido raiva, mas que aquela resposta serviu para fazê-la pensar: “Por que deveria
tentar empurrar outras pessoas para a China? Por que não ir eu mesma?” (AYWARD;
HUNTER, 1987, p. 6). Então a partir desse momento ela começou a pensar em como se
preparar para ir a China.
Neste período, era comum pessoas que se interessavam por missões procurarem
uma sociedade missionária, funcionando como uma organização institucional, pois além
de fornecer formação para o trabalho em campo, poderiam receber respaldo financeiro e
espiritual enquanto estivessem em campo nos países estrangeiros. Este foi o caminho
que Gladys tentou percorrer inicialmente, procurando a Sociedade Missionária no
Interior da China em Londres, fundada pelo missionário Hudson Taylor
1
no século XIX, e
se inscrevendo no curso de treinamento.
Depois de três meses de estudo, Gladys foi informada pela comissão da sociedade
missionária em que estudava que suas qualificações eram insuficientes, pois sua
instrução era limitada e seria muito difícil para ela aprender a língua chinesa. Além disso,
ela não havia alcançado notas boas o suficiente para se tornar missionária, e foi
dispensada.
1
Hudson Taylor (1832 1905) foi um missionário batista inglês que atuou na China por 51 anos e fundou a
sociedade missionária Missão no Interior da China, de caráter interdenominacional que tinha por objetivo
formar e direcionar novos missionários para o interior da China.
Sobre o momento que foi dispensada do curso de treinamento, Janet e Geoff
Benge
2
, ressaltam que a Sociedade Missionária no Interior da China em Londres
deliberou que Gladys, aos 27 anos de idade, era considerada velha pelos padrões da
escola e foi informada pelo diretor: “seria injusto permitir que Gladys continuasse sendo
reprovada nas aulas, quando outros poderiam ocupar seu lugar e se sair melhor. Pessoas
mais jovens e qualificadas esperavam na fila para ocupar o lugar dela na escola.”
(BENGE, BENGE, 2008, p. 18).
Sobre esse fato, Gladys relembra: “Saí da entrevista em silêncio, todos os meus
planos em ruínas. Revendo agora aquela cena, não posso culpá-los. Sei, melhor que
ninguém, quão idiota devo ter parecido então.” Geoff e Janet Benge afirmam que Gladys
nunca havia se saído bem em assuntos acadêmicos, e delineiam:
Ela abandonou a escola aos 14 anos para trabalhar como empregada doméstica.
Pelos padrões missionários, ela era uma mulher de mais idade, embora não se
sentisse assim. Se ela ficasse na escola de treinamento até o final, completaria
30 anos quando chegasse à China. Com essa idade provavelmente seria mais
difícil para ela aprender chinês. Também era verdade que não tinha
qualificações úteis. Não era enfermeira ou professora. Era apenas Gladys
Aylward, filha de Thomas e Rosina Aylward, um carteiro e dona de casa de
Edmonton, um pequeno subúrbio de Londres (BENGE, BENGE, 2008, p. 18).
Após ser dispensada no curso de treinamento, Gladys foi trabalhar como
doméstica para um casal de missionários e, posteriormente, em uma missão que
chamavam de busca e salvamento de mulheres. Sua função era resgatar meninas e
jovens mulheres que haviam ido para Swansea, cidade portuária da Inglaterra, em busca
de melhores oportunidades de vida, mas acabavam se envolvendo na prostituição como
alternativa para sobreviver. Gladys encontrava essas mulheres, as levava até a missão
que “pagava para as meninas pernoitarem em um albergue e, de manhã, as colocava em
um trem de volta à cidade de origem.” (BENGE, BENGE, 2008, p. 21).
Mesmo trabalhando em um determinado tipo de missão, Gladys não conseguia
esquecer do seu desejo de ir para a China. Porém, sem o apoio de uma agência
financiadora, resolveu voltar a trabalhar como empregada doméstica para juntar dinheiro
e ir por conta própria até o destino desejado.
Trabalhando como doméstica, economizando e fazendo trabalhos extras como
copeira, Gladys conseguiu juntar dinheiro para comprar uma passagem para ir de trem
2
Janet e Geoff Benge são um casal de escritores neozelandeses que elaboraram uma coleção biográfica
nos anos 1990 e 2000 nos Estados Unidos, chamada Heróis Cristãos Ontem & Hoje e que tiveram alguns
números traduzidos no Brasil pela editora Jocum e Shedd Publicações nas duas últimas décadas. As
traduções são principalmente de missionários protestantes de diferentes países que atuaram nos séculos
XIX e XX.
até a China, era o modo mais barato que havia na época. Porém, sua rota passaria pela
Rússia, considerado um percurso perigoso no período, devido à guerra que estava
ocorrendo na região da Manchúria, mas ela decidiu ir mesmo assim.
O relato segue apresentando detalhes da ida de Gladys para China: a arrecadação
de recursos, a despedida da sua família e as desventuras que passou pelo caminho. A
narrativa apresenta ainda, diálogos com as pessoas conhecidas no caminho, apuros
passados na Rússia e a imensa dificuldade para chegar até onde pretendia no país
desejado, que seu objetivo era chegar em um vilarejo de difícil acesso através das
montanhas, chamado Yangcheg, pois ela havia conseguido contato com uma missionária
escocesa idosa que estava tentando iniciar o evangelismo protestante nessa região.
Gladys Aylward chegou a Yangcheng depois de cinco semanas e meia de viagem,
no final de novembro de 1932, e foi morar com a missionária escocesa Jeannie Lawson
3
,
estabelecida na cidadezinha chinesa no vale entre as montanhas alguns anos antes, mas
que estava na China mais de quarenta anos. Nas semanas seguintes, as duas
missionárias começaram a desenvolver ideias para evangelizar a região. Uma das
estratégias foi transformar a casa em que elas moravam em uma hospedaria, e sempre
depois de servir o jantar aos hóspedes, elas contavam histórias bíblicas. Aos domingos,
elas viajavam para os vilarejos próximos e pregavam em lugares abertos.
Nos primeiros meses de Gladys em Yangcheng, além de ter que lidar com a
rejeição e desconfiança inicial dos habitantes locais em relação ao fato dela ser
estrangeira, ela teve que se empenhar muito para aprender o dialeto local e os costumes
do povo. Alguns meses após a sua chegada, sua companheira de missão, a senhora
Lawson, faleceu, e assim, Gladys tornou-se a única missionária estrangeira na região.
Algumas semanas depois, Gladys recebeu a visita do mandarim, governante da
região, que ofereceu a ela o emprego de inspetora de pés. O governo nacional havia
decretado o fim da prática de enfaixamento de pés femininos em 1912, influenciado pelas
críticas ocidentais. Segundo Dong Xinran, a tradição pés-de-lótus, como essa prática era
conhecida, foi criticada por estrangeiros e “era motivo para países ocidentais pensarem
que a China era um país extremamente atrasado.” (XINRAN, 2019, p. 39).
A campanha contra a prática “pés-de-lótus” levou anos para alcançar sucesso em
todas as províncias e exigiu a contratação de inspetores para verificação do
cumprimento da lei e aplicação de multas para aqueles que mantinham a prática. Nesse
3
Jeannie Lawson foi uma missionária escocesa batista que foi para China em 1887, com seu esposo Dugald
Lawson, respondendo o apelo da sociedade missionária Missão no Interior da China sobre a necessidade
de abrir novas estações missionárias no país. Ficou viúva em 1930, no entanto, atuou até 1933, ano da sua
morte.
contexto, cada governante de província deveria garantir que o decreto fosse cumprido.
Quando ofereceu o cargo a Gladys, o mandarim justificou que, por ela ser estrangeira,
era a única com os pés normais na região, além do mais, segundo ele, um homem não
poderia inspecionar os pés das mulheres.
A proposta do mandarim serviu bem aos prositos missionários de Gladys, pois
ela teria um salário que, somado aos proventos da hospedaria, daria para sobreviver.
Além do mais, iria viajar pelos vilarejos da região acompanhada por dois soldados. Para
aceitar a proposta, ela endossou condições que foram aceitas pelo governante, que era
poder durante suas visitas de inspeção pregar o evangelho de Jesus Cristo.
Depois de fiscalizar os pés das bebês, crianças e adolescentes nas aldeias,
Aylward escolhia um lugar aberto e começava a contar histórias da Bíblia ao povo,
cantava hinos e explicava o que a letra significava, inclusive utilizava o discurso religioso
para corroborar a proibição do enfaixamento dos pés:
Vocês sabem que os pés dos meninos e das meninas são semelhantes; se Deus
quisesse que as meninas tivessem pés pequenos e raquíticos, ele os teria feito
assim. Entretanto, ele os fez a todos iguais. E agora o governo diz que se deve
permitir que os pés das meninas cresçam normalmente. Não devem ser
enfaixados (AYWARD; HUNTER, 1987, p. 46).
Sobre esses fatos, Gladys relembra da seguinte forma:
Ao volver meus pensamentos para aqueles tempos, fico maravilhada em ver a
forma como Deus levantou oportunidades para o trabalho. Eu tanto desejara ir
à China, mas jamais, em meus sonhos mais arrojados, imaginara que Deus
prevaleceria de modo a abrir-me as portas de todas as casas em todas as vilas;
que eu teria autoridade para banir um costume cruel e horrível; que teria a
proteção governamental; e que seria paga para pregar o evangelho de Jesus
Cristo enquanto inspecionava pés! (AYWARD; HUNTER, 1987, p. 46-47).
Na passagem dos anos, conforme algumas pessoas dos vilarejos se convertiam,
formavam-se pequenos grupos protestantes e igrejas. Aylward destaca que a prática de
enfaixar os pés deixou de existir, e o hábito de consumir ópio diminuiu, além do fato que
ela passara a viver como uma chinesa:
Eu vivia agora exatamente como uma chinesa. Vestia roupas chinesas, comia
seu alimento, falava seu dialeto, e comecei a pensar como os chineses. Este
agora era o meu ps, os chineses do norte eram o meu povo. Resolvi requerer
minha naturalização como cidadã chinesa. Em 1936, meu requerimento foi
deferido e passei oficialmente a ser chamada de Ai-weh-deh (AYWARD;
HUNTER, 1987, p. 47).
Ai-weh-deh significava “mulher virtuosa”, Gladys recebeu esse nome no seu
segundo ano em Yangcheng, após ser chamada pelo diretor da prisão para acalmar uma
rebelião carcerária próxima do vilarejo onde morava. O diretor acreditava que por ela ser
religiosa ela pacificaria os revoltosos. Como Gladys teve sucesso em apaziguar a revolta
dos prisioneiros, ela recebeu a alcunha Ai-weh-deh, e assim ficou conhecida durante sua
missão na China.
Depois de alguns anos, Aylward adotou rias crianças chinesas encontradas em
diferentes circunstâncias e necessidades. A primeira, foi uma que estava sendo vendida
na rua, posteriormente, trouxe outro encontrado na rua passando fome e assim por
diante. Ela também presenciou a Guerra Sino-Japonesa ocorrida entre 1937 e 1945, o
vilarejo onde morava se tornou zona de guerra e ela passou a acolher mais crianças
vitimadas pelo conflito, além de prestar cuidados aos feridos no pátio da sua casa.
Durante o conflito entre chineses e japoneses, Gladys enfrentou inúmeras
dificuldades para proteger as crianças sob sua tutela. Ela também foi procurada como
inimiga pelo exército japonês e precisou fugir com seus filhos adotivos pelas montanhas
para conseguir deixá-los em segurança em um orfanato.
Os flagelos da guerra, as adversidades e até mesmo agressões físicas que sofreu
de soldados japoneses, causaram danos à saúde de Gladys, que chegou a ficar em coma
depois de atravessar as montanhas com seus filhos adotivos. Para melhor se recuperar, a
missionária retornou à Inglaterra depois de passar 17 anos na China.
De volta à Inglaterra, Aylward foi convidada por diversas denominações
protestantes para falar sobre suas realizações na China, tornando sua obra missionária
muito conhecida no meio evangélico. Em 1957, foi lançada sua primeira biografia,
chamada de A morada da sexta felicidade, escrita por Alan Burguess. Um ano depois, a
obra foi transformada em um filme em Hollywood, estrelado pela atriz Ingrid Bergmann.
Aylward quis voltar à China, porém com o enrijecimento do governo chinês após
1949, que tendia suprimir manifestações religiosas protestantes (CHIU, 2021), ela decidiu
ir para Hong Kong, onde deu início a uma nova missão e fundou um orfanato. Enquanto
desenvolvia atividades com os refugiados na nova missão, ela foi convidada aos Estados
Unidos para falar sobre o missionarismo na China. Este foi o último fato relatado em sua
autobiografia. A continuidade de seus atos missionários na Ásia até a sua morte, foram
relatados por outros biógrafos, como Alan Burguess, e Catherine Swift.
A autobiografia de Gladys Aylward fez parte da conquista feminina no espaço
deste gênero textual, onde por muito tempo prevaleceu o domínio masculino,
principalmente na esfera religiosa. Além de fazer parte também, do grupo de mulheres
que lutaram e encontraram formas de atuar em um outro campo predominantemente
masculino, o missionário.
Nesse sentido, é primordial destacar que a atuação missionária de Gladys
representou diferentes relações de poder e gênero. Embora sua atuação missionária
represente relativa liberdade em relação à opressão imposta às mulheres chinesas, o
contexto religioso protestante era essencialmente patriarcal. Silva (2011) pondera que:
As missionárias, assim como as mulheres europeias e norte-americanas
brancas, desempenharam um papel ambíguo: eram membros de um gênero
inferior dentro de uma raça superior. O resultado foi que reconheciam a
opressão das mulheres e, simultaneamente, desenvolviam um sentido de
superioridade devido à raça e nacionalidade. Almejavam melhorar o mundo
privado (doméstico, conjugal, maternal) das mulheres sem alterar a questão da
desigualdade de gênero. [...] Pessoalmente, muitas missionárias rejeitavam os
papéis de esposas e mães como únicos atributos femininos embora ensinassem
essas virtudes como inerentes ao modelo cristianizador (SILVA, 2011, p. 29).
A despeito de carregar nuances do sistema patriarcal, o missionarismo
protestante permitiu que as mulheres alcançassem uma série de oportunidades. A
experiência missionária significou viajar através de diferentes culturas e sofrer o
impacto de transformações, (SILVA, 2011, p. 31) como foi o caso de Martha Foster
Crawford (1830-1909), missionária batista norte-americana que viveu na China na
segunda metade do século XIX. De acordo com Silva (2011), Crawford:
Estabeleceu um estilo de vida bem próximo ao dos chineses em seu cotidiano
usando roupas chinesas[...] Quando de sua morte, em 1909, seu funeral e caixão
foram ao estilo chinês. Ficou conhecida pelos chineses como Madam Gao, nome
que foi atribuído assim que chegou na China (SILVA, 2011, p. 32).
Podemos observar semelhanças nas experiências missionárias de Gladys Aylward
e Martha Crawford, principalmente na maneira que buscaram adaptação e a assimilação
de ser cristã e missionária dentro da cultura e sociedade chinesa. (SILVA, 2011, p. 32).
Embora tenham vivido em períodos diferentes na China e singularidades notórias,
marcaram a construção de suas subjetividades tanto de gênero como religiosas (SILVA,
2011, p. 35).
Análise da autobiografia de Gladys Aylward a partir de pressupostos teóricos
Ao analisarmos a autobiografia de Gladys Aylward, buscamos investigar se em
sua narrativa é possível identificarmos nas “artes de si mesmo” (FOUCAULT, 2004),
pensadas pelo filósofo francês Michel Foucault, o exercício da escrita de si. Ao pensar
na aplicabilidade desses conceitos no objeto de estudo evidenciado, é importante
acentuar a diferença entre autobiografia e escrita de si.
Philippe Lejeune (2008), estudioso que buscou entender o funcionamento da
escrita autobiográfica, a definiu da seguinte forma: “narrativa retrospectiva em prosa
que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história
individual, em particular a história de sua personalidade.” (LEJEUNE, 2008, p.14).
Para Lejeune, o texto autobiográfico deve ser:
[...] principalmente uma narrativa, mas sabe-se a importância do discurso na
narração autobiográfica; a perspectiva, principalmente retrospectiva: isto não
exclui nem seções de auto-retrato, nem diário da obra ou do presente
contemporâneo da redação, nem construções temporais muito complexas; o
assunto deve ser principalmente a vida individual, a gênese da personalidade:
mas a crônica, a história social ou política podem tamm ocupar um certo
espaço (LEJEUNE, 2008, p. 15).
A autobiografia apresenta inúmeros elementos: formas de linguagem, a identidade
do autor, vida individual, perspectiva retrospectiva da narrativa e principalmente o uso
de um dos gêneros que Lejeune (2008) nomina como vizinho da autobiografia: a
memória. Nesse sentido, Kaline Cavalheiro da Silva (2018), ressalta que “O ato de
rememorar é uma autoanálise da construção do sujeito autobiográfico. O autor de um
texto biográfico entra num processo de ressignificação de si próprio.” (SILVA, 2018, p.
10).
Silva (2018) ainda ressalta:
O processo de ressignificação de si se torna essencial na construção
autobiográfica, o autor e personagem se fundem nesta construção
autobiográfica[...], a autobiografia é uma construção de conhecimento do
sujeito, não apenas do leitor para com o autor, mas também do pprio autor.
Assim, por meio da escrita autobiográfica o autor explora mais do que o relato
fiel da sua vida, ao colocar em análise diferentes aspectos em sua constituição
como sujeito. (SILVA, 2018, p. 11).
No processo de ressignificação de si, o autor visita seu eu do passado, e seleciona
para o relato os momentos que considera relevantes na sua trajetória. As escolhas por
fatos específicos para serem narrados são pensadas sob a perspectiva de que eles
constituem sua formação enquanto sujeito, e são frutos de uma análise reflexiva do
autor, que despontam na prática da escrita de si.
Para refletir acerca da escrita de si, Foucault recorre a um texto da literatura
cristã A Vita Antonii de Atanásio, e suscita reflexões de como essa prática de vida se
aplica à cultura filosófica de si. Entre as principais formas de escrita de si dos séculos I e
II analisadas por Foucault, estão os hupomnêmata e a correspondência:
Os hupomnêmata, no sentido cnico, podiam ser livros de contabilidade,
registros públicos, cadernetas individuais que serviam de lembrete. Sua
utilização como livro de vida, guia de conduta parece ter se tornado comum a
todo um público culto. Ali se anotavam citações, fragmentos de obras, exemplos
de ações que foram testemunhadas ou cuja a narrativa havia sido lida, reflexões
ou pensamentos ouvidos ou que viera, à mente. Eles constituíam uma memória
material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; assim eram oferecidos como um
tesouro acumulado para releitura e meditações posteriores (FOUCAULT, 2004,
p. 147).
Foucault ressalta que os hupomnêmata não devem ser entendidos como diários,
pois eles não constituem uma “narrativa de si mesmo” e não têm como objetivo a
confissão. Tratam-se de captar o dito; reunir o que se pode ouvir ou ler, e isso com
uma finalidade que nada mais é que a constituição de si (FOUCAULT, 1992, p. 135).
A outra forma de escrita de si, analisada por Foucault, é a correspondência, ele
alerta que mesmo tendo pontos em comum com a hupomnêmata, esta não deve ser
considerada um simples prolongamento do gênero, pois ela constitui “uma certa maneira
de se manifestar para si mesmo e para os outros. “A carta torna o escritor presente para
aquele a quem envia. [...] Escrever é, portanto, “se mostrar”, se expor, fazer aparecer seu
próprio rosto perto do outro.” (FOUCAULT, 1992, p. 150).
Na correspondência é fundamental a relação do sujeito com o outro, com o
destinatário. Na autobiografia também um destinatário, um leitor para quem o
escritor se mostra. Existe uma relação com o outro, mesmo que este outro não responda
em forma de carta. Ocorre um pensar no que se está escrevendo, pensando nos efeitos
que causará no leitor. É o processo de pensar sobre si mesmo para dizer sobre si a
outrem. Nesse sentido, cabe ressaltar a seguinte colocação de Foucault “[...] em torno
dos cuidados consigo toda uma atividade de palavra e de escrita se desenvolveu, na qual
se ligam o trabalho de si para consigo e a comunicação com outrem.” (FOUCAULT, 1985,
p.57).
Tanto nos hupomnêmatas, quanto na correspondência, o aspecto fundamental é o
exercício da escrita enquanto prática de si na arte de viver. Foucault ressalta:
[...] constitui uma etapa essencial no processo para qual tende toda a askênsis:
ou seja, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros
em princípios racionais de ação. Como elemento de treinamento de si, a escrita
tem, para utilizar uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função
etopoiéitica: ela é a operadora da transformação da verdade em ethôs
(FOUCAULT, 1992, p. 134).
Foucault também recorreu a um antigo texto de Epícteto, pensando no papel da
escrita como prova da verdade. Ele aponta que este filósofo insistia no papel da escrita
como exercício pessoal “[...] deve-se ‘meditar’ (meletan), escrever (grafein), exercitar-se
(gummazein)[...]” (FOUCAULT, 1992, p. 133). Este pensador da antiguidade aconselhava
ainda: “Mantenha os pensamentos noite e dia à disposição (prokheiron); coloque-os por
escrito, faça sua leitura; que eles sejam o objeto de tuas conversações contigo mesmo,
com um outro [...].” (FOUCAULT, 1992, p. 133). Podemos perceber então, que escrever
sobre si é importante para conseguir se compreender e analisar como comporta-se
mediante diferentes situações e em relação aos outros. Até mesmo o ato de anotar suas
conversas com outras pessoas, era aconselhado por Epícteto como técnica de reflexão.
A princípio, a correspondência é parecida em alguns aspectos com a escrita de si,
principalmente no sentido da reflexão que o autor faz de si mesmo para escrever a
outrem. No entanto, é importante frisar as diferenças entre essas duas práticas: a da
escrita de si e da autobiografia.
Sobre a última prática, Margaret McLaren aponta que:
As autobiografias de mulheres dão vozes a saberes assujeitados porque as
perspectivas e experiências femininas até recentemente foram excluídas da
história e da literatura. As narrativas autobiográficas geralmente constroem
identidades multifacetadas e complexas dinâmicas e não estáticas. [...] A
autobiografia pode tanto ser um exercício de sujeição, se produzir a verdade
requerida sobre si mesmo, como pode ser um processo de subjetivação, se se
examina criticamente como a pessoa chegou a ser o que é, em relação aos
discursos normalizadores (MCLAREN, 2002, p. 152).
É possível observar que na autobiografia de Gladys, não ocorre uma produção de
narrativa de si assujeitada. Ela se concentrou em relatar sobre suas experiências,
conforme as vivenciou e como ela foi se transformando e mudando sua forma de pensar
durante o processo.
A historiadora Margareth Rago, em seu livro Aventura do contar-se aponta que:
A “escrita de si” é entendida como um cuidado de si e também como abertura
para o outro, como trabalho sobre o próprio eu num contexto relacional, tendo
em vista reconstituir uma ética do eu. Portanto, mostra ele (Foucault), a “escrita
de si’ dos antigos opõe-se à confissão, modo discursivo-coercitivo de relação
com a verdade que se difunde desde o cristianismo e que se acentua na
Modernidade (RAGO, 2013, p. 50).
Diferenciando a escrita de si da confissão, Rago aponta que:
Na escrita de si, não se trata de um dobrar-se sobre o eu objetivado, afirmando
a própria identidade a partir de uma autoridade exterior. Trata-se, antes, de um
trabalho de construção subjetiva na experiência da escrita, em que se abre a
possibilidade do devir, de ser outro do que se é, escapando às formas
biopolíticas de produção do indivíduo (RAGO, 2013, p. 52).
Nesse sentido, é importante entender a diferença entre as autobiografias
confessionais e a escrita de si, que na primeira, alerta Rago a partir das reflexões de
Foucault, que o indivíduo parte para uma busca introspectiva de si através da escrita,
buscando “reencontrar sua verdade essencial supostamente alojada no fundo da alma, na
própria interioridade (RAGO, 2013, p.52). Por sua vez, a historiadora ressalta que na
escrita de si ocorre um movimento inverso:
Trata-se de assumir o controle da própria vida, tornar-se sujeito de si mesmo
pelo trabalho de reinvenção da subjetividade possibilitado pela ‘escrita de si’.
Trata-se de tornar-se autor do próprio script, a partir de uma relação específica
do indivíduo consigo mesmo, o que supõe ainda a prática política da parrésia.
(RAGO, 2013, p.52).
O tipo de escrita encontrado no registro autobiográfico de Gladys Aylward não é
uma confissão para se redimir dos seus pecados, é um exercício de escrita que expõe
ações, escolhas e decisões, demonstrando ter o controle da própria vida. Mesmo dentro
de um contexto de obediência a um ser divino, ela não se curvou às instituições e
costumes que tentaram limitar seus objetivos. Gladys escreveu sobre si em uma prática
perceptível de liberdade.
Margareth Rago ressalta que “a ‘escrita de si’ se destaca como uma prática de
constituição da subjetividade e de trabalho sobre si na relação com o outro, como linha
de fuga diante do poder e como meio de abertura para o outro.” (RAGO, 2013, p.265). No
campo missionário, as experiências mais importantes registradas por Gladys foram as
relações que ela estabeleceu com os outros, como o governante da província, as
mulheres que desenfaixou os pés e demais habitantes de vilarejos que evangelizou. As
experiências mais profundas, foram frutos dessas relações e das formas pelas quais lidou
com elas, principalmente, tendo em vista os estranhamentos culturais.
É interessante observar que Margareth Rago, no livro supracitado, também
analisou textos autobiográficos de outra mulher religiosa. Ivone Gebara, nascida em
1944, é uma freira socialista e feminista que se dedicou à vida acadêmica e à militância
política, participando de inúmeros movimentos populares, especialmente de mulheres, na
América Latina (RAGO, 2013, p.38).
As diferenças entre Gladys e Ivone são altamente visíveis. A última é uma
militante que se destacou pelas críticas aos valores patriarcais, à misoginia da Igreja
Católica e ao discurso religioso, com plena consciência de sua luta feminista. Por sua
vez, a primeira, mesmo tendo vivido experiências transformadoras, não era militante
política. Lutou por mulheres, amparou desabrigados, mas sob a perspectiva do cuidado
religioso. No entanto, ainda que diferentes, é possível observar na escrita de vida dessas
duas mulheres um processo de construção de suas subjetividades.
Ivone Gebara é uma filósofa extremamente consciente do seu próprio processo
de escrita, ela escreveu de forma poética, filosófica e reflexiva, tinha consciência do que
seus debates representavam academicamente, diferente de Gladys que elaborou um
processo de narrativa de si, com a intenção de contar a outros por meio da
rememoração, as experiências vividas muito mais a título de exemplificação. Ademais, na
época, ela também buscava comover as pessoas em relação ao sofrimento dos chineses e
conseguir apoio financeiro para a missão. Assim como na autobiografia de Ivone, mesmo
sendo freira, observa Rago: “não se trata de uma narrativa confessional, mesmo sendo
escrita por uma freira católica, pois não visa justificar seus atos e decisões, menos ainda
se glorificar” (RAGO, 2013, p. 274). Da mesma maneira, a autobiografia de Gladys
também não corresponde a estas características.
Podemos destacar ainda, que a escrita de Gladys não apresenta aspectos de
“necessidade de purificação pela escrita confessional, que desenrola o filme da vida,
como nas autobiografias clássicas masculinas, que visam zerar o passado e aliviar a
alma[...].” (RAGO, 2013, p. 58). Ela não demonstra ter dever de confessar algo, ao
contrário, a história de Gladys tem foco em suas viagens, como ela percebeu a China,
como enxergou as pessoas e se relacionou com elas. Tem relação com suas dificuldades,
o que passou e como obteve socorro divino.
Assim como Ivone Gebara que “parece orgulhar-se da pioneira que foi, por ter
superado o sentimento de medo e da solidão diante de tantos desafios [...]” (RAGO, 2013,
p. 274), também encontramos esse sentimento na escrita de Gladys, pois ela não se
deixou limitar por instituições, falou sobre a igualdade entre homens e mulheres, e lutou
com os dispositivos que dispunha para alcançar seus objetivos.
Tendo em vista as definições de autobiografia e escrita de si, podemos perceber
as diferenças entre elas, ainda assim, é possível encontrarmos a prática da escrita de si
dentro da autobiografia, que apresenta uma perspectiva retrospectiva. A escrita de si,
pode então, permear este gênero que permite uma exposição do eu ao outro. Esta prática
contribui para a construção do sujeito, ao reputar que escrever de modo que permitimos
que outros nos vejam, pode ser considerado uma arte de viver.
A escrita de si e a autobiografia estão fundidas no texto da Gladys Aylward, visto
que a primeira foi elaborada com as características da autobiografia, mas também,
possuiu traços de práticas de escrita de si. Existe um rastro para compreendermos a
constituição dessa mulher como sujeito, missionária e atuante no mundo, e assim
percebermos como ela pensou em sua própria atuação e nos fatos que ocorreram ao seu
redor. Nesse sentido, cabe a colocação de Kaline Silva:
A realização da escrita de si é um processo de construção do próprio sujeito. Ao
escrever sobre nós, passamos por um percurso que envolve nossa memória
pessoal, analisada de um ponto, no futuro, no qual os fatos não podem mais ser
alterados, mas podem ser analisados. A maneira como esta memória é narrada
revela muito mais sobre o nosso eu atual do que sobre o nosso eu do passado.
Assim o relato da escrita de si está diretamente ligado à construção do sujeito e
consequentemente ao momento histórico observado pelo sujeito que escreve
(SILVA, 2018, p. 13).
A narrativa autobiografia de Gladys nos permite perceber um processo de
constituição da subjetividade e de sua formação como sujeito. Como ela foi uma
missionária cristã protestante, é necessário observar, por meio da sua autobiografia e
práticas de escrita de si, se ela correspondeu aos modelos de subjetividade cristã e se
recorreu às práticas cristãs que para Michel Foucault constituíram o sujeito ocidental na
Modernidade.
Subjetividade cristã na escrita de Gladys Aylward
Para além de buscar entender como a escrita produzida por Aylward revela seu
processo de constituição como sujeito, é necessário considerar uma série de práticas e
dispositivos que constituem a subjetividade cristã e, por consequência, constituem a
subjetividade ocidental moderna, já que são intrínsecas.
Para refletir os modelos de subjetivação no cristianismo, segundo as reflexões de
Michel Foucault, é preciso ressaltar que as técnicas adotadas para constituição da
subjetividade na cultura greco-romana, foram as mesmas que o modelo cristão
desenvolveu. Ou seja, o modelo cristão desenvolveu suas técnicas inspirado no modelo
greco-romano. Flavio Benites, doutor em Linguística Aplicada, afirma que ao analisar a
Antiguidade Clássica e o ascetismo cristão, através das reflexões de Foucault, é possível
“acompanhar uma historicidade sobre a subjetividade, ou mais precisamente, sobre uma
cultura de si que se constitui como um conjunto de práticas a partir das quais ocorre o
processo de subjetivação.” (BENITES, 2006, p.117).
Benites aponta que as práticas de si, como as anotações, meditação, e
rememoração, entre outras, foram facilmente absorvidas pelo cristianismo:
Visto que estavam em perfeita sintonia com seus propósitos. Alguns pontos
marcam a diferença entre a ascese à verdade na cultura greco-romana e na
tradição cristã. Um deles é o fato de que o Cristianismo se apresenta como uma
instituição, que, com base na verdade divina revelada ao homem, exige que um
conjunto de obrigações deve ser cumprido para se alcançar tal verdade. A
obediência à verdade revelada e à figura de um mestre torna-se uma das
importantes práticas de subjetivação, a partir da qual o indivíduo irá conhecer a
si mesmo e dar-se a conhecer (BENITES, 2006, p. 121).
Ao considerar as análises de Foucault referente ao cristianismo, é pertinente
ressaltar que ele trata principalmente do chamado cristianismo primitivo, ademais, ele
mesmo destaca a diferença entre o cristianismo católico e o protestante:
As coisas não se apresentam da mesma maneira no catolicismo e na tradição
protestante. Mas, tanto em uma, quanto na outra, se encontram as mesmas
características: um conjunto de obrigações com a verdade concernente à fé, os
livros, o dogma, e um outro conjunto concernente à verdade, o coração e a alma
(FOUCAULT, 1994, p. 16).
Para o doutor em filosofia Marco Antônio S. Alves, a subjetividade cristã pensada
por Foucault é constituída principalmente pelas práticas da confissão e da obediência.
Alves acredita que o interesse de Foucault pelo cristianismo, seja mais especificamente
pelas práticas cristãs, um projeto maior de “descrever o longo processo de elaboração da
subjetividade do homem ocidental, mostrando as conexões entre subjetividade, poder e
verdade.” (ALVES, 2017, p. 79).
Marco Antônio S. Alves aponta que para Foucault, outro ponto da subjetividade
cristã é a direção de consciência, que enquanto “[...]a direção de consciência estoica é
voluntária, circunstancial e orientada para o domínio de si do sujeito, a direção de
consciência cristã é obrigatória, permanente e orientada para a destruição da vontade do
sujeito.” (ALVES, 2017, p. 82). Este estudioso ressalta ainda, que “[...]a finalidade da
direção cristã é a própria obediência, a submissão a outrem e a destruição da vontade
própria. Esse é visto por Foucault como o coração da subjetividade cristã.” (ALVES, 2017,
p. 82).
Nesse sentido, é interessante analisar em quais aspectos Gladys Aylward se
aproxima se encaixa no modelo de subjetividade cristã perscrutado por Foucault, que fez
suas análises com base no que ele chamava de cristianismo primitivo e nos registros
cristãos dos primeiros séculos da era comum, mas as práticas que estudou seguiram
presentes por toda cristandade e chegaram até a Reforma do século XVI. Algumas se
transformaram, contudo ainda podemos perceber algumas similaridades como, por
exemplo, a direção de consciência que reflete obediência. Gladys não partiu para a
missão porque seguiu uma ordem de algum mestre, pastor ou líder, mas porque
acreditava que era o chamado de Deus para ela e que deveria cumpri-lo: “Saber que
milhares de chineses jamais tinham ouvido falar de Jesus Cristo foi para mim uma
descoberta assombrosa, e achei que certamente tínhamos a obrigação de fazer algo a
esse respeito.” (AYWARD; HUNTER, 1987, p.5-6).
Foucault acentua que no cristianismo a obediência é exaltada por si mesma e
transformada em uma maneira de ser, sendo necessário atingir o estado de obediência
permanente e definitivo. “É conhecida a definição da moral cristã como uma moral
voluntarista, centrada na ideia de respeito à vontade do Pai. A imagem do bom filho,
obediente, que segue as ordens de Deus, é central do cristianismo.” (ALVES, 2017, p. 83).
Alves ainda coloca que:
A obediência, na leitura realizada por Foucault, é constituída pela submissão,
entendida como uma atitude geral em relação aos outros, pela paciência,
entendida como uma atitude geral em relação ao mundo exterior, e pela
humildade, entendida como uma relação consigo mesmo. A soma dessas três
atitudes no cristão seria inseparável da renúncia de si pela eliminação completa
da vontade própria. Em outras palavras, é preciso que o haja outra vontade a
não ser a vontade de não ter vontade alguma. A salvação depende disso: dessa
capacidade de renunciar à própria vontade para obedecer integralmente à
vontade de Deus (ALVES, 2017, p. 83).
A ascese cristã tem por objetivo uma renúncia de si. Mesmo que haja um retorno
a si, é para que consiga renunciar-se. Observando essa colocação, e o início do relato
autobiográfico de Gladys, lembramos que ela destaca que seu maior sonho era ser atriz e
conquistar um espaço nos palcos. No entanto, quando se converteu ao cristianismo e
sentiu ter um chamado missionário, ela renunciou a si mesma, a fim de propagar o
cristianismo para pessoas que considerava carentes a respeito do evangelho de Jesus
Cristo. Para Gladys, pregar o evangelho se relacionava a fazer o bem ao próximo, pois
acreditava estar salvando pessoas da perdição, dessa forma, ela renunciou a si mesma,
para viver para os outros.
Se para Foucault, o núcleo da subjetividade cristã era obedecer e confessar,
podemos então dizer que Gladys se aproxima em alguns aspectos como a obediência a
Deus e a renúncia de si, mas não no aspecto de se confissão e de submissão a um líder
terreno de forma a se tornar assujeitada a outrem. Segundo Brepohl (2016), “Da parte
dos crentes, a missão é então assumida como ato de obediência e amor ao próximo.”
(BREPOHL, 2016, p. 172)
A confissão para Foucault, era prática de dizer a verdade sobre si mesmo, mas
como uma obrigação para condição de salvação, para ele isto é um dispositivo de poder,
“um pretexto pelo qual o cristianismo justificou a pretensão de governar o conjunto de
homens em sua vida mais cotidiana.” (ALVES, 2017, p. 84). Para o filósofo francês, a
confissão desempenhou um grande papel na constituição da subjetividade moderna
(FOUCAULT, 1993, p. 208).
Ouro aspecto da confissão analisada por Foucault, é aquela à qual deve se
manifestar para uma penitência, onde o pecador reconhece publicamente os seus
pecados. No protestantismo, existem práticas públicas de demonstração de
arrependimento dos pecados, como a manifestação explícita da decisão de se tornar
seguidor de Jesus Cristo e o batismo, mas não existem necessariamente a penitência
punitiva. Então, essa prática não se aplica à vida de Gladys, nem à sua escrita
autobiográfica. Seus relatos falam de provações, mas não no sentido de tentações
consideradas pecaminosas, mas de dificuldades que foram superadas.
Dentro de suas análises do cristianismo e do ascetismo cristão, Foucault aponta
que é possível encontrar a noção de epiméleia (de cuidado). Para ele, noção de epiméleia
heautoû diz respeito a “[...] um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de
praticar ações, de ter relações com o outro. A epiméleia heautoû é uma atitude para
consigo, para com os outros, para com o mundo.” (FOUCAULT, 2006, p.14). Estes são
aspectos que encontramos na vida de Gladys, principalmente quando observamos seu
processo de transformação na forma de olhar para o mundo, quando teve que aprender a
lidar com outro em suas diferenças culturais, tendo em vista que seu propósito era
também servir ao próximo.
Essa noção de epiméleia heautoû também designa algumas ações que
[...] são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos
modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos. Daí,
uma série de práticas que são, na sua maioria, exercícios [...]. São, por exemplo,
as técnicas de meditação, as de memorização do passado, as de exame de
consciência, as de verificação das representações na medida em que elas se
apresentam ao espírito, etc (FOUCAULT, 2006, p. 14-15).
Para relatar a si mesma, Gladys recorreu ao exercício de memorização do
passado, revelando ao seu leitor aquilo que ela considerava transformador, pois
considerava as experiências que vivera fabulosas, demonstrando como ela enxergava o
seu próprio modo de estar no mundo, ainda que não atribuísse os sucessos alcançados a
si mesma.
Um outro conceito que Foucault explora, que podemos relacionar ao modo de
vida de Aylward, é a ideia de vida soberana, pensado a partir do contexto da Antiguidade.
Ele ressalta que “a vida soberana é uma vida benéfica, e essa relação de tipo pessoal, de
direção, de socorro espiritual, de ajuda: é a direção, o socorro, a ajuda, o apoio que se
pode dar a um aluno que vem ouvir a lição”. (FOUCAULT, 2011, p. 239).
Ainda segundo Foucault,
A vida soberana é uma vida de ajuda e de socorro aos outros (aluno ou amigo).
Mas ela é útil e benéfica aos outros de outra forma também: na medida em que,
por si mesma, ela é uma espécie de lição de alcance universal que você ao
gênero humano pela própria maneira como vive e pela maneira como,
ostensivamente, aos olhos de todos, leva a sua vida (FOUCAULT, 2011, p. 239-
240).
Posta esta noção, podemos dizer que Gladys viveu uma vida soberana na sua
prática missionária, pois além de socorro espiritual e apoio a diversos habitantes dos
vilarejos por onde percorria, ela prestou socorro a crianças desamparadas, foi
conselheira por diversas vezes do mandarim da região, e quando retornou à Inglaterra,
tornou sua própria vida uma espécie de lição e exemplo. Inclusive, voltando ao campo
missionário, em Hong Kong, onde permaneceu até a sua morte.
Considerações finais
Tendo em vista que no relato autobiográfico de Gladys Aylward, encontramos o
exercício da escrita de si, podemos dizer que diferentemente das autobiografias
confessionais, sua narrativa reflete além do seu processo de constituição como sujeito,
exibe um ato de liberdade de ser. Superando rótulos de incapacidade, medos e desafios
através de sua determinação, desenvolveu um trabalho missionário na China, alcançando
transformações significativas não na sua própria vida, mas de centenas de chineses.
Atuando na campanha contra a prática “pés-de-lótus” e o consumo de ópio, participando
da reforma carcerária da prisão de Yangcheng e abrigando crianças necessitadas
(BURGUESS, 1964).
Por meio das reflexões de Foucault sobre a subjetividade cristã, percebemos que
Gladys correspondeu a algumas práticas observadas por ele, principalmente da
obediência, submissão e renúncia de si. No entanto, é importante destacar que sua
obediência não era em relação a um mestre, pastor ou líder terreno, e sim ao que ela
acreditava ser a vontade de Deus, um ser divino, isso deu a ela liberdade para agir dentro
destas perspectivas, se transformando e constituindo sua própria subjetividade.
Ainda que algumas práticas que Foucault considera como parte da subjetividade
cristã, tenham se feito presentes na vida de Gladys Aylward, podemos dizer que sua
constituição como sujeito apresenta singularidades. Por um lado, obediente e submissa à
vontade divina. Por outro não se assujeitou aos domínios institucionais que tentaram
limitar seus objetivos, e ainda adentrou espaços predominantemente masculinos, tanto
no missionarismo quanto na escrita autobiográfica.
Gladys Aylward, enquanto sujeito constituído, mulher determinada e missionária,
colocou em prática a escrita de si através de sua autobiografia, não buscando confessar-
se, mas demonstrando, através de suas experiências, como viveu uma vida soberana. Sua
narrativa do eu, baseada no exercício da rememoração, aponta para a indicação de
Foucault (1993), quando este sublinha que a memória não é senão a força da verdade
quando está permanentemente presente e ativa na alma.
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