:
MONTEIRO, Tiago*
https://orcid.org/0000-0002-6855-2341
RESUMO: O presente artigo discute a
implantação das primeiras linhas aéreas
ligando o Brasil ao continente africano e os
fatores ligados a esses eventos: as aeronaves
envolvidas, os sistemas políticos do Brasil e
África do Sul, as estratégias das políticas
externas de ambos os países que resultaram
nos acordos entre as autoridades aeroviárias.
Tais rotas ficaram sob a responsabilidade da
companhia estatal sul-africana South African
Airways (SAA) e da empresa privada brasileira
VARIG. O estudo também avaliará os métodos
de propaganda, suas ações políticas-
ideológicos e os vínculos com o aparelho de
Estado.
PALAVRAS-CHAVE: rotas-aéreas; Política
Externa; apartheid; Soft Power.
ABSTRACT: This paper aims to discuss the
implementation of the first airlines connecting
Brazil to the African continent and the factors
linked to these events: the aircraft involved,
the political systems of Brazil and South
Africa, the foreign policy strategies of both
countries that resulted in the agreements
between the aviation authorities. Such routes
were under the responsibility of the South
African state company South African Airways
(SAA) and the Brazilian private company
VARIG. This research will also address
propaganda methods, their political-ideological
actions and links with the state apparatus.
KEYWORDS: air routes; Foreign policy;
apartheid; Soft Power.
Recebido em: 18/02/2023
Aprovado em: 15/04/2023
O interesse em aprofundar as relações com os países recém independentes e a
definição dos tipos de vínculos que deveriam ser estabelecidos com a África do Sul e com
o problema colonial português foram os principais vetores da política externa brasileira
para África a partir da década de 1960. Todavia, esses assuntos eram irreconciliáveis
porque as nações emancipadas africanas eram inimigas do regime de minoria branca que
* Doutor em História (2017) pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ). Professor I da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-
RJ). E-mail: tiagobenin@yahoo.com.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
governava a África do Sul e do projeto colonial português. Ao mesmo tempo, os sul-
africanos eram os principais parceiros comerciais do Brasil no continente e parcelas
importantes das elites brasileiras defendiam o estreitamento dos vínculos com Portugal.
Entender como o Brasil se portou diante de tais desafios têm fomentado diversas
pesquisas desde pelo menos meados da década de 1970. Nosso objetivo nesse trabalho
será colaborar com essa vasta tradição, a partir do estudo da implantação das primeiras
linhas aéreas ligando o Brasil a territórios governados por minorias brancas e que se
opunham aos processos de independência. No que diz respeito os procedimentos
metodológicos, consultamos para o desenvolvimento desse artigo documentos
institucionais, como os produzidos pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) do
Brasil e pela South African Airways (SAA), textos publicados em sites, reportagens de
jornais e, em especial, campanhas publicitárias e colunas sociais. No último caso,
examinamos a dinâmica dos encontros entre as camadas abastadas da sociedade
brasileira e sul-africana e como tais reuniões criaram o ambiente propício para o
aprofundamento do relacionamento diplomático. Em relação às propagandas, nosso foco
será compreender quais estratégias de convencimento foram postas em prática para
obter apoio de grupos brasileiros. Finalmente, no tocante aos conceitos empregados, eles
serão apresentados e discutidos no corpo do texto.
A República da África do Sul, o apartheid e a South African Airways (SAA).
Segundo vestígios arqueológicos, o território que corresponde a atual República
África do Sul (RAS) começou a ser ocupado por humanos entre 25 a 40 mil anos atrás.
Essas populações ancestrais dos povos atualmente conhecidos como pigmeus, khoikhoi
e sãs (bosquímanos). Eram caçadores, coletores, agricultores, pecuaristas e produziam
artefatos de diversos materiais, como cerâmica, couro e chifres. Entre os séculos I a III,
povos bantos também se instalaram na região. Eles eram oriundos das florestas tropicais
da África Central e trouxeram com eles animais e novas técnicas agrícolas e
manufatureiras. Os principais grupos bantos que se fixaram na região foram os zulus, os
xhosas (xossas), os suazi e os ndebele. Outras nações relevantes foram os sotos, os
lembas (wa-remba ou mwenye), os venda e os tsonga. Esses povos interagiram de
diferentes maneiras e organizaram numerosos tipos de organização política, como reinos
e confederações tribais.
Navegadores europeus chegaram na região no século XV e dois séculos depois
desembarcaram na região aqueles que ficaram conhecidos como africânderes ou bôeres.
Eles eram cristãos protestantes da Europa Central, que introduziram a escravidão na
região e desenvolveram um idioma, uma cultura, um ideário próprio. No culo XIX a
região foi conquistada pelo Reino Unido e a descoberta de grandes jazidas de ouro,
diamantes e outros metais valiosos fomentou a imigração em massa de súditos
britânicos. A reação dos bantos, khoikhoi, sãs e de outras nações autóctones ao roubo de
suas riquezas, à escravidão, ao tratamento desumano que lhes eram dirigidos uniu
britânicos e eres. Por volta de 1840, as autoridades coloniais começaram a assentar
indianos na região sob o regime de servidão.
Em 1910, foi instituída a União Sul-africana, a qual seria uma república autônoma,
mas parte constituinte da Comunidade Britânica de Nações (Commonwealth) e, por
conseguinte, sujeita às leis britânicas. Havia regulamentos voltados à segregação dos
negros, mestiços e descendentes de indianos desde a fundação da União. Tais normas
agradavam os bôeres, os quais também estavam ressentidos com a supremacia política e
econômica daqueles de origem britânica. O Partido Nacional (Nasionale Party [NP]) foi
fundado para alterar esse quadro. Em 1948, o NP chegou ao poder e começou a implantar
o apartheid palavra que em er significa separação. O apartheid tinha como
principais bases o racismo, o anticomunismo, a violência como forma de dominação
política, o favorecimento às grandes empresas nacionais e estrangeiras e a exclusão
sociopolítica e espacial das populações não-brancas. O NP suprimiu toda representação
não-branca do Estado (1948), proibiu relações amorosas e casamentos inter-raciais
(1949), dividiu toda a população segundo critérios raciais (1950), exigiu que todos não-
brancos portassem um documento conhecido como “Passe” para adentrar as áreas
definidas como exclusivamente “brancas” (1950), segregou escolas, hospitais,
universidades, áreas urbanas e outros serviços e espaços blicos e os postos de
trabalho (1956).
Economicamente a União Sul-africana girava em torno de dois eixos: mineração e
a exploração da mão de obra não branca. As atividades das empresas mineradoras de
ouro, diamantes, carvão e outros minérios favoreceram o desenvolvimento de outros
ramos: ferroviário, portuário, termoelétrico, químico e construção civil. Os capitalistas
de origem britânica e as empresas transnacionais eram os proprietários dos
empreendimentos mais lucrativos do país. O segundo eixo da economia sul-africana era a
intensa exploração dos não-brancos, em especial, dos africanos. As relações de trabalho
no campo e nas cidades tinham como normas o pagamento de baixíssimos salários,
jornadas de trabalho longas e extenuantes, a ausência de direitos trabalhistas, a
proibição de organização sindical. As terras mais férteis foram confiscadas e os não-
brancos também pagavam caro por péssimos serviços públicos. As demais atividades
econômicas dependiam de tais dois ramos principais. Uma vez no poder, os líderes do NP
colocaram em prática ações para elevar a participação bôer na economia nacional por
meio de medidas protecionistas, a criação de estatais e a concessão de subsídios.
Em relação ao cenário internacional, a implantação do apartheid se deu nos
primórdios da Guerra Fria e do processo de descolonização. Os chefes do NP se
alinharam incondicionalmente aos Estados Unidos (EUA) e ao chamado mundo ocidental.
Eles também favoreceram o investimento externo como forma de reduzir os impactos
das oposições ao sistema segregacionista. No tocante da descolonização, os africânderes
se opuseram às independências e as utilizaram como uma fonte de união dos brancos a
partir do argumento de que o desmonte do apartheid iria fazer a balança de poder
pender para os “nativos”, tal como ocorreu em países como a Índia.
As políticas de segregação racial, o NP e o apartheid enfrentaram numerosas
formas de oposição. A principal associação de luta contrária a eles foi o Congresso
Nacional Africano (African National Congress [ANC]) de 1912, declarado ilegal. No campo
exterior, destacaram-se entidades não governamentais, os países recém-independentes
da África e da Ásia e as suas associações como Organização da Unidade Africana
(OUA) e os países socialistas e a maior parte do chamado mundo árabe. Essa frente
conseguiu impor sanções aos bôeres na ONU e dentro do Commonwealth. Em protesto,
os bôeres se retiraram do Commonwealth e organizaram a República da África do Sul
(RAS) em 1961 (SILVA, 1992, p. 58-201; VILALVA, 2016, p. 31-70; PEREIRA, 2012, p. 31-80).
O Brasil e os governos do apartheid
As relações diplomáticas entre o Brasil e a RAS foram iniciadas na década de
1920. Os elos políticos e econômicos eram pouco expressivos por vinte anos. Mas, o
aumento do comércio bilateral e a instalação do apartheid motivaram os responsáveis
pela política externa brasileira a estruturarem seus vínculos com as administrações
africânderes em três bases: a primeira foi a condenação pública do sistema político
segregacionista. Conforme as autoridades brasileiras, o apartheid contrariava os
princípios civilizatórios do mundo e da sociedade brasileira, a qual era apresentada como
um exemplo de harmonia racial. A segunda base foi o esforço em ampliar as exportações
brasileiras sob os argumentos de que o comércio não possuía ideologia. Outros
afirmavam que o isolamento radicalizaria os bôeres e que isso prejudicaria mais os
atingidos pelo apartheid. Em terceiro lugar, o Brasil buscava elevar sua projeção mundial
como um interlocutor entre os líderes do NP e as várias oposições a este regime.
Esses parâmetros orientaram as gestões Getúlio Vargas (1951-1954), Juscelino
Kubistchek (1956-1961), Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964). Todos
democraticamente eleitos. Ainda que não seja o objetivo deste artigo apresentar uma
discussão minuciosa das razões que levaram estas administrações a adotarem tais
posturas em relação à RAS. Mas, podemos brevemente mencionar que esses indivíduos
eram todos de descendência europeia e estavam mais contrariados com a segregação
explícita do que com o racismo propriamente dito. Afinal, como denunciavam
numerosas organizações do movimento negro, o Brasil era profundamente racista na
década de 1940. Outro fator relevante foram os vínculos político-diplomáticos brasileiros
com os EUA e com Portugal. No tocante aos EUA, o país também era segregacionista.
Assim, a adoção de uma abordagem mais hostil em relação aos africânderes poderia
trazer reações negativas por parte dos políticos “supremacistas” brancos
estadunidenses. No que diz respeito a Portugal, o Brasil mantinha excelentes relações
com sua antiga metrópole, cujo governo ditatorial o chamado Estado Novo era um
dos principais aliados da África do Sul. Desta forma, as autoridades portuguesas também
trabalharam para que o governo do Brasil mantivesse os três paradigmas indicados
anteriormente.
Todavia, existiram momentos de tensões. Por exemplo, em 1963, o presidente
Goulart retirou o Ministro Plenipotenciário do Brasil na RAS após sucessivos casos de
discriminação infligidos contra brasileiros no país.
A deflagração do golpe empresarial-militar de abril de 1964 e a subsequente
instalação da ditadura contrarrevolucionária no Brasil trouxeram novos contornos para
o padrão existente uma vez que a cúpula do governo do marechal Castelo Branco (1964-
1967) incentivou o aprofundamento das trocas comerciais bilaterais e movimentou-se a
favor dos bôeres em diferentes situações na ONU e em outros fóruns internacionais,
como podemos consultar nos trabalhos de Vilalva (2016) e Monteiro (2021).
Foram muitos os fatores que explicam o emprego desses comportamentos em
relação aos chefes do NP. Primeiramente, os líderes e ideólogos da ditadura eram
significativamente simpáticos à postura anticomunista dos eres. Parcelas expressivas
dessa elite compartilhavam da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), a qual
consideravam que as oposições armadas e pacíficas ao apartheid eram organizadas
segundo os interesses e orientação da URSS. A luta armada, particularmente, era
praticada segundo os métodos da chamada Guerra Revolucionária. Assim, opor-se ao NP
favoreceria a eclosão de uma revolução socialista na RAS. Posteriormente, ainda
segundo a lógica da DSN, os comunistas provavelmente tomariam o poder nas então
colônias lusas Angola e Moçambique porque os independentistas igualmente agiam
segundo orientações soviéticas. Por essas razões, a continuidade do colonialismo
português e do apartheid eram salutares ao mundo ocidental e à segurança do Brasil,
uma vez que afastavam os soviéticos das rotas marítimas do Atlântico Sul (MONTEIRO,
2021, p. 152-153). Outro argumento era que o estreitamento dos vínculos econômicos
com a RAS possibilitaria a retomada do crescimento econômico do Brasil. Igualmente,
justificavam suas ações com o discurso de que o apartheid era assunto interno da RAS e
qualquer postura agressiva contra os bôeres afetava os princípios da autodeterminação
dos povos.
Castelo Branco foi sucedido pelo marechal Artur Costa e Silva em 1967. A nova
administração reduziu o apoio diplomático aos bôeres ao mesmo tempo em que
aprofundou as trocas comerciais e o intercâmbio nas áreas militar, científica, esportiva,
entre outras. Esses posicionamentos coincidiram com a ascensão de Balthazar Johannes
Vorster (John Vorster) ao cargo de primeiro-ministro (1966) da RAS. Visando melhorar
mais a condição de vida dos brancos, a gestão Vorster intensificou a violência política, a
segregação racial, os incentivos ao ingresso de transnacionais no país e os investimentos
estatais na economia. Tais ações mantiveram a tendência de crescimento econômico e
fortaleceram os elos entre as multinacionais e o apartheid. O governo racista também
tentou melhorar a imagem internacional do país através de campanhas publicitárias e da
diversificação dos contatos diplomáticos. Assim, investiram no diálogo com países
governados por coalizões conservadoras como Israel e da Austrália; na aproximação
com países africanos governados por líderes dispostos a negociar com os bôeres (Costa
do Marfim e Zaire) e com as nascentes ditaduras direitistas que estavam sendo impostas
na América do Sul, como a brasileira (1964) e a Argentina (1966). Em tais estratégias, as
lideranças bôeres incluíram a empresa aérea estatal South African Airways (SAA).
A South African Airways (SAA), suas rotas e aeronaves
A SAA foi fundada em 1934, em um contexto de fortalecimento da presença
estatal na economia e objetivava atender o mercado nacional. Após a Segunda Guerra, a
empresa inaugurou suas primeiras rotas transnacionais. Operacionalmente, na década de
1940, a SAA trabalhava com aeronaves de fabricação britânicas como a Avro York,
Skymaster e Lockheed Constellations. As Avro York faziam a rota Springbok Service,
que durava 03 dias, transportava cargas e pessoas. Havia assentos e 12 leitos para o
pernoite daqueles passageiros que embarcassem em Palmietfontein e percorressem todo
o trajeto que incluía escalas em Nairóbi (Quênia), Cartum (Sudão), Cairo (Egito), Castel
Benito (Itália) e Hurn Bournemouth (Reino Unido). Em 1950, os Constellations passaram
a ser os principais aviões da companhia e operavam o itinerário Joanesburgo (RAS),
Nairóbi, Cartum, Roma (Itália) e Londres (FLYSAA, 2021).
Durante a década de 1940, a empresa aérea estatal do Reino Unido British
Overseas Airways Corporation (BOAC) era a principal concorrente e colaboradora da
SAA na função de cobrir os caminhos aéreos de sul ao norte que ligavam a então União
Sul-africana com Londres, passando pelas colônias britânicas da África Oriental e Norte.
No decorrer da década de 1950, a SAA adquiriu e/ou alugou as aeronaves
Havilland DH 106 Comet e Douglas DC-7. Em 1960, entrou em serviço na companhia o
Boeing 707-320 Intercontinentals. Os Havilland Comet mantiveram o Springbok Service
e nesse avião foi organizada a “classe turística”. Os Douglas DC-7 e os Boeing 707 eram
de fabricação estadunidense. A introdução dos primeiros reduziu a viagem de Londres
para a RAS para 21 horas e com uma única escala em Cartum. Posteriormente, tal parada
foi transferida para a cidade de Kano, na Nigéria, e o trajeto encurtado para 18 horas. Em
1957, houve uma expansão da cobertura aérea da SAA e essa passou a operar o percurso
Joanesburgo, Ilhas Maurício, Ilhas Keeling, ou Ilhas Cocos, e Perth (Austrália).
Um dos êxitos das mobilizações contra o apartheid foi a proibição de pouso das
aeronaves da SAA na maior parte dos territórios africanos. Por isso, a SAA passou a
investir nos aviões da Boeing, que possuíam maior autonomia de voo. Assim, a SAA
excluiu as Ilhas Keeling do seu caminho aéreo até a Austrália e determinou que o destino
saísse de Perth para Sydney. O tempo de chegada para Londres foi para 13 horas a bordo
de um Boeing 707. Em 1969, começou a ser operada a rota que mais nos interessa:
Johanesburgo para Nova York com parada no Rio de Janeiro (FLYSAA, 2021).
A leitura dos cinco parágrafos anteriores explicita pelos menos as seguintes
questões. Primeiramente, a SAA era parte do aparelho de Estado segregacionista sul-
africano. Em segundo lugar, suas operações em território africano juntamente com a
BOAC apontam a conciliação de interesses entre os líderes bôeres e do império
britânico. Empresários, burocratas do império, turistas, documentos e mercadorias eram
transportadas nos aviões da SAA e ajudavam a sustentar o império e a financiar a SAA e
o Estado sul-africano. Em terceiro, as compras de aeronaves, a manutenção delas, a
aquisição de combustível e outros insumos necessários para as operações nas rotas
aéreas anteriormente mencionadas, assim como o pagamento de toda uma equipe que ia
dos pilotos até os mecânicos e funcionários dos aeroportos criavam numerosas redes de
dependentes diretos da prosperidade da SAA. Indiretamente, os componentes dessas
redes contribuíam com a continuidade do apartheid. Esse terceiro ponto se torna mais
complexo quando refletimos a proeminência que empresas como a Boeing possuíam
sobre a classe política de seus respectivos países e o lobby indireto que prestavam para
que os governos de cada país adotassem pelo menos uma atitude indiferente em relação
aos destinos das populações não-brancas que viviam na RAS.
Realizadas essas reflexões, passemos para as discussões conceituais.
Primeiramente, o conceito de Soft Power ou Poder Brando. Esse termo foi elaborado por
Joseph Nye e diz respeito a capacidade de um país influenciar outros Estados sem que
seja necessário recorrer a meios coercitivos como a força militar ou pressões
econômicas. Assim, conforme Nye e os demais estudiosos que compartilham desse
referencial, a estratégia via Soft Power privilegia o uso da cultura, dos valores (políticos,
morais), dos comportamentos de um país a fim de sutilmente influenciar atores políticos
e da opinião blica de outros Estados. Igualmente, é uma ação política de longo prazo
que trabalha transmitir uma imagem positiva de si e fazer com que tal “retrato” mobilize
indivíduos e comunidades a seu favor (NYE Jr. 2002; MARTINELLI, 2016).
Em segundo lugar, a noção de Estado Ampliado. Tal conceito partiu das reflexões
do revolucionário Antônio Gramsci e tem sido desenvolvido pelos seguidores de Gramsci
desde a década de 1940. Em linhas gerais, Estado Ampliado tem sido uma interpretação
em que o Estado é formado pela interação entre a Sociedade Política e a Sociedade Civil.
A primeira diz respeito ao aparato burocrático. A segunda tem sido constituída pelos
Aparelhos Privados de Hegemonia (APH) que são organizados pela vontade voluntária de
seus membros como as entidades de classes, as empresas de imprensa e as igrejas. No
interior dos APH são prioritariamente organizadas as vontades coletivas (ANDRESON,
1986; GRAMSCI, 2000; MENDONÇA, 2014, p. 35-36).
Associando as reflexões teóricas com os argumentos desenvolvidos
anteriormente, percebemos que o NP era o APH dos eres que assumiu a Sociedade
Política da RAS em 1948. Uma vez no poder, utilizou o aparelho de Estado para organizar
o país o mais próximo de sua visão de mundo. Como parte do Estado sul-africano, a SAA
exerceu um lugar de destaque na consolidação e manutenção do projeto-ideológico bôer.
Por exemplo, colaborando com as comunicações do império britânico, aproximando
elites conservadoras econômica, ideológica e socialmente, facilitando a assinatura de
acordos. No tocante ao Soft Power, os trabalhadores e o serviço de bordo da SAA
buscavam ser um “cartão de visitas” positivo dos bôeres, buscando levar seus
passageiros a adotar um olhar moderado em relação a RAS. Igualmente, a SAA era um
instrumento da política externa: aproximação e investimentos em outros países. Esses
últimos pontos serão mais bem desenvolvidos no decorrer desse artigo.
A VARIG, a aeronáutica e o sistema aéreo brasileiro (1920-1969)
A Viação Aérea Rio-Grandense (VARIG) foi fundada no final da década de 1920.
Ela foi pioneira nos voos comerciais do Brasil e começou a fazer voos internacionais na
década de 1950. Nesse primeiro momento, a companhia operava com os seguintes
aviões: De Havilland DH89A Dragon Rapide (de fabricação britânica), Lockheed L-10
Electra, Douglas DC-3/C-47 e Curtiss C-46 Commando (produzidos por empresas dos
EUA). Importante destacar que as aquisições dessas aeronaves foram feitas não
exclusivamente para modernizar a frota, mas também para diminuir a feição germânica
que a VARIG possuía desde a sua fundação: seus proprietários eram alemães ou de
origem alemã, seus aviões eram importados da Alemanha e a empresa trabalhava
ativamente junto as entidades associativas pró-germânicas do Brasil. Diante da
conjuntura da Segunda Guerra Mundial e nas décadas seguintes, a empresa se
aproximou de políticos, militares e de capitalistas dos países Aliados para deixar o perfil
vigente e diminuir os riscos de nacionalização (OLIVEIRA, 2011, p. 30-37).
No final da década de 1950, a companhia aérea comprou a Lockheed Constellation
empresa responsável pelas rotas que uniam cidades como Porto Alegre, São Paulo, Rio
de Janeiro, Belém, Santo Domingo (República Dominicana) e Nova Iorque e os seus
primeiros Boeing 747. Em 1961, os proprietários da VARIG adquiriram a Real Aerovias e
consolidaram sua empresa como a maior do país. A instalação da ditadura foi um dos
principais capítulos da história da VARIG porque em 1965 o governo Castelo Branco
decretou a falência da empresa Panair do Brasil sob a acusação de caos financeiro.
Embora a empresa de fato estivesse com problemas econômicos, a cúpula militar agiu
para punir os chefes da Panair, muitos dos quais possuíam fortes vínculos com
antagonistas da ditadura como o ex-presidente Kubistchek. Além disso, os
Nacionalistas, igualmente perseguidos pela ditadura, apoiavam a Panair. As antigas rotas
da Panair foram cedidas à VARIG, a qual era presidida por Ruben Berta (FEY; OLIVEIRA,
2013, p. 41-45), que era próximo de parcelas das elites civis e militares da ditadura.
Posteriormente, foi determinado que a VARIG seria a única empresa nacional com rotas
internacionais por 15 anos.
A aliança entre a chefia da VARIG e a cúpula ditatorial foi edificada em várias
bases. Por exemplo, a noção de que a segurança brasileira requereria empresas aéreas
fortes, com presença em todo território e no exterior. Outro ponto era fazer da VARIG
uma propaganda da pujança do Brasil e do empresariado brasileiro em outros países.
Assim, por exemplo, houve um pesado investimento para tornar o serviço de bordo da
companhia ser mundialmente reconhecido pelo requinte. Igualmente, a VARIG colocou
em sua frota alguns dos melhores aviões em operação no mundo. Também podemos
citar, a defesa da abertura para o capital estrangeiro e a associação desse com empresas
brasileiras. Por fim, o argumento de que o Estado deveria apoiar as grandes empresas
nacionais com recursos e obras de infraestrutura para que o país se tornasse uma
potência.
A congruência de valores entre os dirigentes da VARIG e da ditadura não foi
construída exclusivamente nos campos dos discursos e dos interesses materiais, mas em
reuniões, congressos e numerosos encontros sociais. Do mesmo modo, militares que
passavam para a reserva ingressavam em cargos importantes na estrutura da VARIG.
Assim, utilizavam seus contatos no interior da hierarquia castrense para trazer
vantagens à companhia aérea (SALADINO, 2005; WOOD JR.; BINDER, 2010, p. 1280-
1289).
Passemos para o estudo da Força Aérea Brasileira (FAB) entre 1964 a 1971. Em um
primeiro momento, a FAB permanecia envolvida nas consequências de uma crise em que
seus oficiais se opunham à Marinha em razão da disputa pelo controle operacional dos
helicópteros e aeronaves embarcados no porta-aviões Minas Gerais. A situação foi
resolvida a partir das iniciativas dos ministros da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo
Gomes, e da Marinha, almirante Paulo Bosísio, os quais decidiram que os aviões seriam
operados pela FAB e os helipteros pela Marinha. Outro dado relevante sobre a FAB era
a presença de oficiais partidários do emprego de mais coerção contra os adversários
abertos ou imaginários do regime a chamada Linha-Dura e aqueles favoráveis a um
menor rigor aos opositores. O ministro Gomes, em geral, esteve mais inclinado à
segunda posição. Porém, a partir de março de 1967, o ministério passou para o comando
de um dos expoentes da Linha-Dura: brigadeiro Márcio de Sousa e Melo. O novo
comando se dedicou a executar as seguintes estratégias: elevação da atuação da FAB na
repressão (lutando contra os considerados subversivos, corruptos, demagogos e
comunistas), a expansão da presença da aeronáutica em todo país o que resultaria na
compra de mais equipamentos, na contratação de mais pessoal e no fortalecimento de
órgãos como o Correio Aéreo Nacional (CAN) e a colaboração da FAB a favor da
superação da crise econômica vigente (JORNAL DO BRASIL, 1967, p. 07; JORNAL DO
BRASIL, 1967, p. 14).
Em relação a infraestrutura aeroviária, o Brasil possuía 236 aeroportos em 1967,
sem contar as pistas de terra batida. Mas, segundo especialistas, a maioria estavam mal
equipados para receber aviões de grande porte. Em reportagem, José M. Mayrink afirmou
que os aeroportos internacionais eram o de Belém, Recife, Rio (Galeão), Campinas, Foz
de Iguaçu e Porto Alegre. Outros aeródromos capazes de receber aviões a jato: Santos
Dumont (Rio), Belo Horizonte e Congonhas (São Paulo). Todos com terminais precários e
malconservados (MAYRINK, 1967. p. 15). As exigências pela modernização dos
aeródromos, o aumento da demanda por viagens internacionais e o desenvolvimento de
novos aviões, como os supersônicos, motivou a criação Comissão Coordenadora do
Projeto do Aeroporto Internacional (CCPAI). Tal iniciativa foi saudada pelas autoridades
da aviação civil e militar, por políticos e pelos proprietários das maiores empreiteiras.
Esses últimos buscavam ganhar as licitações estatais e realizar as obras de construção
dos modernos aeroportos, os quais exigiam muitos recursos financeiros (CAMPOS, 2012,
p. 49). Nesse cenário começaram as articulações pela implantação de linha aérea que
ligasse o Brasil e a África do Sul.
O comércio Brasil-RAS e a instalação da SAA.
A aproximação diplomática entre brasileiros e bôeres na década de 1940 elevou o
volume das trocas comerciais. O Brasil vendia principalmente café, algodão, úcar,
cacau, matérias-primas de origem animal e a balança comercial lhe era favorável. Os
dirigentes ditatoriais brasileiros, assim como seus conterrâneos da área empresarial,
almejavam aumentar as exportações de produtos industriais para o seu maior parceiro
econômico na África. Os bôeres, por sua vez, exportavam principalmente minerais como
manganês e tungstênio. Era de conhecimento deles as intenções brasileiras de
incrementar suas exportações de bens industriais e de continuar obtendo superávits.
Porém, eles consideraram que os déficits perante o Brasil eram aceitáveis porque, entre
outras razões, minimizariam os efeitos do bloqueio econômico e diplomático promovidos
pela frente internacional anti-apartheid. Igualmente, havia o interesse de vincular parte
do ambiente econômico brasileiro à continuidade do apartheid, o que também boicotaria
as relações brasileiras com os demais países africanos, que pressionavam o Brasil a
tomar uma posição mais agressiva em relação à RAS.
A vitória do golpe de abril de 1964 foi bem recebida nos círculos dirigentes bôeres
e os vínculos deles com o governo Castelo Branco foram estreitados. Em julho de 1966,
Hilgard Muller, ministro das Relações Exteriores da RAS, e sua comitiva chegaram ao
Brasil para uma excursão que também incluiu a Argentina, o Paraguai, e o Uruguai.
As autoridades brasileiras e bôeres conversaram sobre diversos assuntos e de tais
negociações surgiram ações como o acordo de venda de motores e outras peças
produzidas pela empresa General Motors do Brasil para a RAS. Outro tema discutido foi
a sugestão sul-africana de aumentar o comércio bilateral a partir da abertura de linhas
de tráfego aéreo e marítimo. Segundo Muller, um voo ligando Pretória ou Johanesburgo
ao Rio de Janeiro permitiria a viagem de milionários que buscassem fazer negócios e
passar por momentos de lazer no Brasil e/ou nos demais países sul-americanos. Por sua
vez, os brasileiros receberam bem a proposta porque liquidaria a necessidade de ir a
Paris ou a Lisboa para viajar ao continente africano partido do Brasil. Essas foram as
bases da instalação dos voos da SAA e da VARIG (JORNAL DO BRASIL, 1966, p. 07) (O
GLOBO, 1966, p. 04).
Por essas razões, em janeiro de 1967, uma delegação de funcionários e executivos
da SAA estiveram no Brasil e na Argentina para negociar as concessões de voo. As
negociações com os representantes da SAA se estenderam até 1968, quando diplomatas
sul-africanos alocados no Brasil e nos Estados Unidos anunciaram a abertura da rota
Johanesburgo-Nova York com escala no Rio de Janeiro (JORNAL DO BRASIL, 1967, p. 13).
A criação dessa linha aérea foi questionada pelos grupos e países contrários ao
apartheid. Eles recorreram à ONU argumentando que o Brasil e os EUA estavam
desrespeitando as resoluções da ONU ao receber os voos oriundos da RAS. As
autoridades brasileiras responderam que essas resoluções da ONU eram facultativas.
Essas explicações foram contrariadas pela “Comissão Especial da ONU sobre o
Apartheid”, que expediu uma nota apoiada e assinada pelo Secretário-Geral da ONU,
Maha Thray Sithu U Thant. Segundo a nota, a concessão da SAA violava a Resolução 1.761
da ONU aprovada em 1962, que sugeria que os países não recebessem voos provenientes
da África do Sul. Essa mensagem da ONU igualmente afirmava que o Brasil e os EUA
estariam colaborando com o governo bôer ao admitirem a SAA em seus territórios
(JORNAL DO BRASIL, 1969a, p. 10). Diante dessas afirmações, o governo brasileiro voltou
a recorrer aos argumentos de que repudiava o racismo por ser uma sociedade com
harmonia racial e que seus laços com a RAS eram estritamente técnicos e comerciais
(JORNAL DO BRASIL, 1969, p. 04). As manifestações do bloco socialista e dos países
afro-asiáticos não impediram a inauguração do voo da SAA, mas aumentaram as
desconfianças em relação aos propósitos brasileiros em relação aos países recém-
independentes da África e Ásia.
Determinadas ações desenvolvidas pelo governo Costa e Silva (1967-1969)
pioraram a imagem que a comunidade afro-asiática tinha do Brasil. Por exemplo, o MRE
organizou os expositores brasileiros presentes na 57th Rand Easter Show, feira que
ocorreu em Johanesburgo em 1968. Empresas como a Huber Warco (produtora de
motoniveladoras) e a Singer (fabricante de máquinas de costuras) fizeram bons negócios
na ocasião. Na mesma conjuntura, as vendas de matérias-primas brasileiras aumentaram.
Por sua vez, os eres estiveram em eventos como a Exposição-Feira de Uberaba e
patrocinaram viagens de técnicos brasileiros para visitas e cursos em seu país
(MONTEIRO, 2021, p. 153-156).
A SAA no Brasil: propaganda bôer e ações para o estreitamento dos laços com as
elites brasileiras.
Uma vez aprovada a linha Johanesburgo-Rio-Nova York, a SAA contratou o
experiente executivo Gilberto Freire, que trabalhou anteriormente nas empresas Panair
do Brasil e Air France, e a Standard Propaganda para que ambos promovessem sua
marca.
A Standard Propaganda foi fundada em 1933 por Cícero Leuenroth. Ele era de uma
família abastada, estudou administração e propaganda na Columbia University (EUA) e
possuía bons relacionamentos com proprietários e altos executivos no Brasil e do
exterior. Parte deles se tornaram clientes da Standard e a empresa se destacou pela
excelência e inovação. Por exemplo, ela foi pioneira nos anúncios em programas de
rádios na década de 1930. O sucesso da Standard também atraiu profissionais que se
destacaram em suas carreiras e, por esses motivos, ela era considerada uma escola para
os principais publicitários do Brasil. Parte desses profissionais combateram o governo
João Goulart em entidades empresariais como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(IPES) (SILVA, 1972, p. 14; DURAND, 2008, p. 53).
Freire e os publicitários da Standard Propaganda contataram aliados no mundo
corporativo e colocaram em prática as campanhas para impulsionar a SAA. Eles
compraram uma página inteira no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, e estamparam a
propaganda com o título “Primeiro voo direto do Rio a Johanesburgo”. Havia uma imagem
de um Boeing 707 e os dizeres de que a SAA vai cruzar o Atlântico até a “Cidade
Dourada da África do Sul” (sic) (O GLOBO, 1968-1969, p. 05; O GLOBO, 1969, p. 19). Nos
meses seguintes, os anúncios foram estendidos para outros diários como o Correio da
Manhã e o Jornal do Brasil. Colunistas da área de turismo, como Marcello Maranhão, do
Jornal do Brasil, foram convidados a ir à RAS e a escreverem sobre o país.
As propagandas e colunas escritas geralmente apresentaram a RAS como um país
para empreendedores audaciosos e um lugar ideal para transações e para o lazer. Em
relação ao primeiro tema, falava-se das oportunidades de explorar as riquezas minerais e
em se associar com empresas da região que mais crescia na África. Outro ponto
destacado era a possibilidade de comercializar com as colônias portuguesas. No tocante
ao entretenimento, eles elogiavam as acomodações hoteleiras, a natureza exuberante e
as localidades, como o Parque Nacional Kruger, e os animais selvagens que ali viviam
(leões, girafas e elefantes). Foram recomendados passeios à praia de praia de Clifton,
chamada de “praia dos biquínis”, e à Av. Milionária de Durban, descrita como ideal para a
compras de luxo. Havia também a ênfase para as atrações de Johanesburgo, como as
performances de danças bantas e as visitas guiadas ao interior de minas de ouro
(MARANHÃO, 1969, p. 05; CORREIO DA MANHÃ, 1969, p. 04-05; JORNAL DO BRASIL,
1969, p. 04; O GLOBO, 1969, p. 09).
Marcello Maranhão escreveu uma página sobre a RAS. Ele abordou os pontos
citados no parágrafo anterior e apresentou sua leitura sobre história da África do Sul: ela
foi iniciada com as viagens dos navegadores Bartolomeu Dias e Vasco da Gama no litoral
sul-africano. Posteriormente, continuou Maranhão, chegaram os “pioneiros holandeses”,
que foram seguidos por outros europeus: ingleses, franceses, alemães. Em seguida,
Maranhão apresentou “as outras” (sic) classificações raciais:
[Os] mestiços do Cabo da Boa Esperança, povos de origem mista; os asiáticos,
povos de ascendência indiana ou chinesa, e os africanos ou bantos, das várias
tribos negras cujos antepassados se deslocavam para o sul, vindos da África
Equatorial, ao mesmo tempo em que os primeiros povoadores chegavam ao
Cabo da Boa Esperança, os bosquímanos, relíquias indígenas da pré-história,
são hoje uma raça quase extinta, vivendo no Sudoeste Africano e no deserto de
Kalahari (MARANHÃO, 1969, p. 05)
Maranhão citou a existência de três capitais e terminou seu texto chamando a
RAS de “país hospitaleiro” (MARANHÃO, 1969, p. 05). No ano seguinte, Ângela Monteiro
escreveu uma matéria para o Correio da Manhã e seus argumentos eram análogos aos do
artigo de Marcelo Maranhão (MONTEIRO, 1970, p. 16).
Tendo em vista os princípios bôeres, percebemos a significativa afinidade
ideológica entre esse material e os valores dos líderes do Apartheid. Chama a atenção
que a segregação institucionalizada sequer foi citada. Assim como a ênfase na realização
de transações comerciais. Houve também atenções especiais para o turismo e para
atividades como golfe, pesca e caça esportiva, assim como para outras práticas
realizadas quase que exclusivamente pelas elites brasileiras, essencialmente brancas e
principais consumidoras do corpus jornalístico e publicitário examinado. Finalmente, o
artigo de Marcelo Maranhão apresentou uma visão de História eurocêntrica, em que a
RAS surgiu com o estabelecimento dos europeus. No que diz respeito aos africanos, ele
não se preocupou em datar a fixação desses povos no território e relegou os bantos a
condição de estrangeiros da terra: são da África Equatorial. Os nativos estavam quase
extintos, de acordo com o mesmo autor. Maranhão também se apropriou dos critérios
racistas para descrever os diferentes povos que habitam a RAS, inclusive assinalando
que os não-brancos são as “outras” raças. Tais pontos permitem concluir que o autor
reproduziu a interpretação de que a RAS era um país europeu na África, cuja população
branca convivia com as “outras raças”.
Importante mencionar que não houve apologia à segregação racial nos materiais
consultados. Todavia, a preocupação com esse tema esteve presente exclusivamente no
Correio da Manhã, cujos jornalistas elaboraram um artigo com base nas cartas de
leitores que questionavam se haveria espaços segregados nos aviões da SAA destinados
ao Brasil. A SAA respondeu que a linha inaugurada seguiria as normas brasileiras, as
quais proíbem instalações reservadas a diferentes raças (CORREIO DA MANHÃ, 1969, p.
03).
Essas campanhas foram focadas principalmente nas empresas de comunicação do
Rio de Janeiro. Em o Paulo, a SAA ganhou maior destaque quando a empresa abriu um
escritório na cidade, em maio de 1970 (FOLHA DE SÃO PAULO, 1970, p. 03).
A inauguração da linha-aérea da SAA foi antecedida por um coquetel no Iate Club
do Rio de Janeiro oferecido pela Shell do Brasil, empresa que forneceria os combustíveis
para as aeronaves da rota. Tal evento reuniu os principais executivos da Shell, o
presidente da SAA, J. Adams, o diretor-presidente da VARIG, Erik Carvalho, o
representante diplomático sul-africano no Brasil, Robert A Du Plooy, e outros membros
da elite brasileira. As autoridades bôeres utilizaram o coquetel para ampliar e fortalecer
seus laços com políticos brasileiros, como Juracy Magalhães (ex-ministro das Relações
Exteriores), Hélio Beltrão (ministro do Planejamento), Negrão de Lima(governador do
estado da Guanabara) e com importantes laços com o governo português, e o diplomata
Lael Sores (assessor de Negrão de Lima), que serviu na África do Sul e esteve em tal país
como convidado no contexto da inauguração do voo da SAA (CORREIO DA MANHÃ,
1969, p. 09; JORNAL DO BRASIL, 1969b, p. 10).
O voo de estreia de Johanesburgo para o Rio de Janeiro teve como passageiros o
general estadunidense Mark Clark, o ministro Muller, Aletta Bernard esposa do
primeiro médico a realizar um transplante de coração do mundo altos executivos de
empresas como a Volkswagen, Federal Meaning, General Motors, Chrysler, Siemens,
Shell e Mobil Oil. Igualmente, viajaram o almirante Acyr Dias de Carvalho Rocha,
presidente da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), o
embaixador da RAS na Argentina e o representante do governo sul-africano no Uruguai
com as suas respectivas esposas. Recepções foram organizadas para receber os ilustres
convidados (O JORNAL, 1969, p. 09; O JORNAL, 1969, p. 05). A presença do almirante
Carvalho Rocha merece ser destacada porque ele representava uma entidade que reunia
civis e militares formados na Escola Superior de Guerra (ESG) para, entre outros pontos,
manter e reforçar os laços de identidade e solidariedade entre os graduados em tal
instituição. A ESG, por sua vez, estava vinculada às FFAA brasileiras, formou os
principais expoentes da administração ditatorial brasileira e em seus corredores foi
elaborada a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) (MONTEIRO, 2012, p. 10-169).
Posteriormente, Jorge d’E. Taunay, representante diplomático do Brasil na RAS,
ofereceu um coquetel em sua casa na Cidade do Cabo para os ministros Hélio Beltrão e
Macedo Soares e os demais brasileiros que participaram do voo inaugural entre RJ e a
RAS. Muitos deles eram membros da ADESG (ZÓZIMO, 1969, p. 03).
Os elos entre as elites brasileiras e bôer proliferaram. Por exemplo, em maio de
1969, o diplomata Robert Du Plooy foi homenageado pela ADESG no Club Militar. Em tal
ocasião, o almirante Carvalho Rocha agradeceu pela forma como foi tratado pelos bôeres
em sua estadia na RAS e elogiou o país do Apartheid: falou que ele é um bastião
avançado do ocidente na África, que está em um processo de acelerado desenvolvimento
e que possui muitos interesses em comum com o Brasil. Assim, seria salutar aproximar
mais a ADESG e a RAS. Du Plooy, por sua vez, agradeceu a homenagem, elogiou a
ADESG, e concluiu que os países podem se considerar vizinhos pois compartilham de
vários interesses (O JORNAL, 1969, p. 05).
Meses depois, a SAA inaugurou uma loja no Rio de Janeiro e ofereceu um coquetel
para diplomatas, políticos e jornalistas (O JORNAL, 1969, p. 05). A empresa também
passou a patrocinar a ida de agentes de viagens e trabalhadores do setor hoteleiro do
Brasil e de países como Argentina, Austrália e a Colômbia para a RAS, com o objetivo de
apresentar a eles as virtudes da realização de excursões para seu país. Com esse mesmo
objetivo os responsáveis pela estatal sul-africana colaboraram com diferentes
empreendimentos voltados às elites como a Churrascaria Gaúcha e o Hotel Excelsior.
Por sua vez, executivos de entidades e empresas brasileiras promoveram e/ou
compareceram a encontros com diplomatas sul-africanos e com executivos da SAA.
Podemos citar: SATUR, Nelson-tours, a Exprinter 70, Globetrotter e a amazonense
TRANS-AM-TU (CORREIO DA MANHÃ, 1969, p. 02; CORREIO DA MANHÃ, 1970, p. 04;
JORNAL DO BRASIL, 1970, p. 10; MARCONDES, 1970, p. 06; FOLHA DE SÃO PAULO,
1970, p. 32; NOGAR, 1972, p. 05).
Em março de 1969, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e a
Industrial Development Corporation of South África assinaram um contrato de abertura
de linha de crédito milionário para o comércio entre os dois países. Como consequência
desses arranjos, entraram o mercado sul-africano empresas como a Rádio Frigor, a
Indústria de Refrigeração Consul S.A e a Pirelli (BRASIL, 1969, p. 116).
Paralelamente, os empresários da Câmara Portuguesa de Comércio de São Paulo e
da Associação Comercial de São Paulo (ACSP) organizaram uma viagem para a RAS e
para as colônias lusas. Em tal ocasião, Luís Arrobas Martins, secretário de Fazenda do
governo de São Paulo, defendeu a formação de uma comunidade luso-afro-brasileira de
comércio onde os sul-africanos também fariam parte. Funcionários do Banco do Estado
de São Paulo S/A (BANESPA) também estiveram presentes nessa viagem e o ministro da
Fazenda, Antônio Delfim Neto, elogiou essa iniciativa e argumentou que ela levaria ao
aumento das exportações brasileiras, o que agradou diversas parcelas do empresariado
(MONTEIRO, 2021, p. 157).
No final de 1969, a SAA organizou conexões de Johanesburgo para Luanda
(Angola) e Lourenço Marques (Moçambique). Além dos bôeres, esses percursos
correspondiam aos anseios dos líderes ditatoriais de Portugal e do Brasil, que discutiam
esse trecho desde o início daquele ano (O GLOBO, 1969, p. 19). As propagandas lançadas
em referência ao novo trajeto seguiram a tradição de vender ao público brasileiro a visão
de mundo dos supremacistas brancos de Portugal e da RAS: os domínios africanos eram
unidades federativas de Portugal, o chamado “Portugal grande”, e não colônias (JORNAL
DO BRASIL, 1969, p. 13; JORNAL DO BRASIL, 1969, p. 18; JORNAL DO BRASIL, 1969, p.
35). Posteriormente, os responsáveis da SAA e da VARIG se articularam para que a
empresa brasileira criasse linha que ligasse o Rio de Janeiro à Johannesburgo com escala
em Luanda. Tais planos receberam o patrocínio das autoridades dos países envolvidos
(BRASIL, 1970, p. 146).
A VARIG na África do Sul
As conversações dedicadas a viabilizar a criação de uma rota aérea Brasil-África
operacionalizada pela VARIG começaram em 1969 a partir dos esforços liderados pelo
presidente da empresa, Erik de Carvalho. Esse projeto recebeu apoio da SAA,
interessada em estender seus negócios na América do Sul em parceria com a VARIG.
Uma comissão da FAB partiu para Portugal a fim de negociar os termos para a criação do
voo que ligaria Brasil à Angola (JORNAL DO BRASIL, 1969, p. 10). Em abril de 1970, os
executivos da VARIG anunciaram a rota Rio-Johanesburgo com escala em Luanda. A
Transportes Aéreos Portugueses (TAP), estatal lusa, também contribuiria com o
funcionamento dessa linha (CORREIO DA MANHÃ, 1970, p. 04).
O compromisso entre os governos e as empresas aéreas do Brasil, de Portugal e
da África do Sul gerou revolta entre os opositores do apartheid e do colonialismo
português, os quais recorreram à ONU e à outras entidades supranacionais. Mas,
diferentemente de 1968, o panorama interno e externo era confortável para os líderes
ditatoriais e, por isso, eles minimizaram esses reclames. No contexto nacional, era o
período do chamado Milagre Brasileiro: o Produto Interno Bruto (PIB) crescia em média
10% ao ano e o governo levava a cabo grandes obras como a Ponte Rio-Niterói e a
Transamazônica. Parcelas importantes das classes médias demonstravam entusiasmo
com as medidas estatais que lhes proporcionavam emprego e elevação no patamar da
cesta de consumo. Em especial, a compra de automóveis e eletrodomésticos. (VELOSO,
2008). Tal contexto motivou importantes vitórias eleitorais do partido governista, a
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), assim como o recrudescimento da repressão
para enfraquecer e aniquilar as oposições moderada e armada à ditadura.
Em relação ao quadro internacional, diferentes acontecimentos levaram a gestão
presidida pelo general Emílio Médici, que sucedeu o marechal Costa e Silva em 1969, a
crer que a ampliação das relações com os bôeres pouco afetaria os vínculos brasileiros
com outros países e organizações mundiais, sobretudo os africanos. Primeiramente,
podemos destacar o então enfraquecimento da oposição ao apartheid dentro da África
do Sul, que foi motivado principalmente pelas ações repressivas empreendidas pelo
Bureau of State Security (BOSS) e demais órgãos de segurança. Em segundo lugar, a
presidência de Richard Nixon nos EUA, a qual era simpática aos eres e partilhava com
os últimos a ideia de que a RAS eram um bastião do Ocidente contra a expansão
comunista na África. Finalmente, a presença de chefes de Estado da África menos
intransigentes em relação aos africânderes. Segundo Mario Vilalva, havia estadistas
suscetíveis à generosidade financeira dos bôeres: Kofi Busia (Gana), Philibert Tsiranana
(República Malgaxe), James Mancham (Seychelles) e Omar Bongo (Gabão). Outros
defendiam o caminho do diálogo como alternativa à luta armada: Hastings Banda
(Maláui), Jomo Kenyatta (Quênia), Leopold Senghor (Senegal) e Felix HouphouetBoigny
(Costa do Marfim). As articulações desses líderes geraram o Manifesto de Lusaca em
abril de1969, que sintetizou os pensamentos desse grupo e defendeu que esses mesmos
planos deveriam ser aplicados para o caso de Portugal e suas colônias (VILALVA, 2016, p.
89-90).
Por essas razões, os acordos dos líderes ditatoriais e da VARIG com os eres e
portugueses prosperaram e os Boeing 707 da VARIG começaram a percorrer a linha Rio-
Johanesburgo e Johanesburgo-Luanda-Rio a partir de junho de 1970. As viagens eram
semanais. Conforme seus entusiastas, a nova rota atenderia a comunidade luso-
brasileira, turistas e homens de negócios interessados em trafegar entre sul da África, o
Brasil e os países sul-americanos (JORNAL DO BRASIL, 1970, p. 04; MRE, 1970, p. 144).
Novas ondas de campanhas publicitárias acompanharam a chegada da VARIG na
RAS. Em geral, os termos foram análogos às propagandas patrocinadas pela SAA:
ausência de referências ao apartheid, enaltecimento da riqueza material da África do Sul,
chamada de outra África por ter metrópoles e acomodações equivalentes às cidades dos
EUA e da Europa Ocidental, local ideal para turismo e para fazer negócios (JORNAL DO
BRASIL, 1970, p. 05; OLIVEIRA, 1970, p. 04). Na África, a VARIG patrocinou propagandas
destinadas a atrair turistas para o Brasil e proporcionou eventos sociais para setores
abastados da sociedade bôer e da colônia lusa (O JORNAL, 1971, p. 05).
A elevada demanda levou a VARIG a comprar 02 novos Boeing 707-320-C, que
aumentou a frota para 11 aeronaves desse tipo. Em janeiro de 1972, a VARIG e a SAA
anunciaram um segundo voo semanal para a RAS, também com escala em Luanda
(JORNAL DO BRASIL, 1972, p. 07; BRASIL, 1972, p. 130). Esses eram os horários das rotas:
o primeiro voo da SAA partia do Rio de Janeiro segunda-feira às 23h55 e chegava na RAS
ao meio-dia de terça-feira. No retorno, a partida era 9h45 de sábado e a chegada era
13:45. Posteriormente, o avião seguia para os EUA. O segundo voo da SAA deixava
Johanesburgo às 09h45 de quarta-feira e pousava no Galeão (RJ) às 14h15. No mesmo dia,
o avião retornava: deixava o RJ às 20h e chegava a Johannesburgo às 10h05. Por sua vez,
a rota da VARIG tinha início às 08h30 dos domingos com a partida do Rio de Janeiro. Ele
chegava em Johanesburgo 21h45. A viagem de volta era às sextas-feiras. A saída às 13h e
chega ao RJ às 20h. O tempo era de 12 horas em razão da escala em Luanda (JORNAL DO
BRASIL, 1972, p. 05).
SAA, VARIG e os debates sobre os rumos da política externa para a África.
As parcerias entre VARIG, SAA e TAP proporcionaram o aumento das parcerias
entre as elites dessas três localidades. Por exemplo, em setembro de 1970, Eric de
Carvalho organizou eventos em locais abastados do Rio de Janeiro que contaram com a
presença de autoridades civis, empresariais e militares bôeres e lusas, como o então
governador português de Luanda e o presidente da SAA (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, p. 13).
A VARIG e a SAA cooperaram com o MRE para o transporte dos brasileiros que
participaram da Feira Internacional de Johannesburgo (NOGAR, 1972, p. 05). A estatal
sul-africana também colaborou com a organização da regata Cape Town-Rio através de
iniciativas como a montagem de um stand no Iate Clube do Rio de Janeiro para
apresentar aos visitantes sul-africanos os aspectos da vida carioca. Tal apoio foi repetido
no ano seguinte (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1971, p. 03).
Os representantes da SAA mantiveram o costume de promover sua empresa e a
RAS por meio de propagandas, contatos pessoais e viagens de intercâmbio. Assim,
Michael B. Lenhoff, representante da SAA, esteve na cidade de Curitiba para estabelecer
contatos com profissionais locais e fomentar viagens para a África do Sul (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 1971, p. 04). A empresa também integrou os voos para o Brasil com outras
atividades, como a facilidade em adquirir passagens com a companhia aérea EL
(Israelense) e os percursos para a Austrália.
O desempenho econômico do comércio Brasil-RAS, a adoção de políticas
moderadas de parte importante dos membros da OUA em relação aos bôeres, o interesse
brasileiro em prolongar o Milagre Econômico através da exportação de bens
industrializados para a África e as práticas dos dirigentes da SAA e da VARIG
fomentaram um debate sobre quais seriam os rumos do MRE para o continente africano.
Parcelas relevantes das elites econômica e ditatorial defenderam o
aprofundamento dos vínculos com a RAS, com Portugal e suas colônias sob o argumento
de que tais localidades proporcionavam vantagens maiores comerciais aos brasileiros.
Igualmente, eram dotadas de infraestrutura moderna que facilitavam as exportações e
ainda possuíam grande afinidade cultural e ideológica com o Brasil. Foram expoentes
dessa linha do empresariado, como Manuel C. Santos (Associação Brasileira da Indústria
Elétrica e Eletrônica), Oscar Augusto Camargo (Sindicato da Indústria de Tratores,
Caminhões, Automóveis e Veículos Similares), os membros do Centro Empresarial Luso-
brasileiro e da ACSP, Thomás Pompeu de Souza, presidente da Confederação Nacional
da Industria (CNI). No tocante à política, o senador Arnon de Melo (ARENA-AL), o staff
do ministro Delfim Neto e do governo paulista.
Outra posição se colocava a favor da neutralidade brasileira no confronto entre o
bloco supremacista (Portugal e África do Sul), e a posição anti-apartheid. O Brasil
desempenharia esse comportamento através da discrição nas entidades internacionais,
do apoio programa moderado de deres como Houphouet-Boigny, da oposição à adoção
de sanções econômicas contra a RAS e da busca pela solução negociada em relação às
colônias portuguesas. Ao mesmo tempo; o Brasil melhoraria seus laços com os novos
países afro-asiáticos porque, a longo prazo, esse comportamento lhe favoreceria
politicamente, com os votos favoráveis deles ao Brasil na ONU; e economicamente, pois
eles possuíam mais riquezas e mercados se comparados aos sul-africanos e às colônias
lusas. Representaram tais posturas Gibson Barbosa, ministro das Relações Exteriores, a
comunidade do MRE e os jornalistas voltados para a área internacional.
A opinião minoritária sugeria que o Brasil privilegiasse os interesses portugueses
pois consideravam que a presença lusa era benéfica aos africanos ; os vínculos com a
África Negra e a defesa de uma saída negociada para o apartheid. A comunidade
portuguesa e o sociólogo e político Gilberto Freyre
1
eram os expoentes desses valores.
A análise das três posições nos permite apontar que as principais divergências
giraram em torno do problema colonial português e não em relação à RAS. No tocante
aos bôeres, o interesse era a expansão do comercio bilateral e o emprego de uma
posição moderada e/ou indiferente em relação ao apartheid, pelo menos a curto prazo.
Acreditamos que o trabalho ideológico bôer via SAA influenciou em tais resoluções.
Considerações finais
Este trabalho partiu do estabelecimento das rotas aéreas do Brasil para a África
de modo a discutir a história das companhias aéreas envolvidas, das aeronaves
empregadas, a política e a infraestrutura que a FAB administrava, o contexto político
1
Nesse trecho não estamos nos referindo ao executivo do setor das empresas aéreas que trabalhou para a
SAA, mas ao sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987). Freyre foi o principal teórico da ideia que no Brasil
havia uma Democracia Racial e o seu livro mais influente foi Casa Grande e Senzala (1933).
brasileiro e sul-africano e as motivações das autoridades de ambos os países em selar os
acordos. Acerca da última questão, insistimos que os bôeres usavam seus recursos
econômicos em múltiplas estratégias: reduzir os efeitos do bloqueio internacional,
desgastar países governados pelas direitas junto a entidades como a OUA e aproximá-los
da RAS, criar uma imagem positiva do seu país junto as classes abastadas das nações
ocidentais, para que as últimas desenvolvessem uma imagem pelo menos indiferente ao
apartheid e pressionassem seus governos a o aderir aos boicotes internacionais.
Apropriamo-nos do conceito de soft power para explicar o projeto bôer:
utilização da SAA para o desenvolvimento de lealdades entre indivíduos dos grupos
abastados dos dois países: eventos, financiamento de viagens, reuniões com membros da
administração ditatorial ou com indivíduos próximos a eles, como os integrantes da
ADESG. Partindo dos conceitos de Gramsci, entendemos que os diplomatas bôeres e a
SAA parte da Sociedade Política agiram junto aos APH do Brasil, a fim de disseminar
nelas a visão de mundo africânder no Brasil por meio das campanhas publicitárias e dos
contatos individuais. A meta, mais uma vez vale citar, era desenvolver imaginários
brandos e/ou indiferentes em relação a RAS, capazes de ressoar na política externa
brasileira.
Em relação à cúpula ditatorial e o empresariado brasileiro, eles desejavam
aumentar suas exportações, apresentar-se perante os demais países como uma nação
tolerante com outras formas de governo e ainda fomentavam o discurso de que estavam
mostrando aos sul-africanos as benesses de uma sociedade multirracial. Acreditavam
também que o apartheid enfrentava o comunismo. Assim, estavam abertos aos negócios
com os bôeres e aos discursos propagados pelos intelectuais africânderes via SAA. Por
fim, utilizavam a premissa de que o comércio era neutro, exclusivamente para continuar
negociando com os racistas africânderes, uma vez que sempre criavam empecilhos com
o bloco socialista, como a ausência de vínculos diplomáticos com Cuba e as objeções às
firmas soviéticas (FUNDO, 1968-1970, p. 03-38).
À guisa de conclusão, acrescentamos que a internalização dos ideais bôeres foi
facilitada pelo caráter majoritariamente branco das elites brasileiras e com várias
afinidades com os africânderes. A insistência de um discurso antirracista na cúpula
ditatorial e econômica não evitou a consolidação, no interior das elites brasileiras, de um
importante setor tolerante, simpático ou indiferente à ordem segregacionista.
Igualmente, tal setor atuou a favor do colonialismo luso junto a Sociedade Política
brasileira. Em trabalho anterior (MONTEIRO, 2021), demonstramos que na maior parte
das vezes o Brasil se pronunciava internacionalmente contra o apartheid, mas o
incremento dos elos econômicos e individuais com os bôeres fazia a balança de poder
pender para os últimos e não para a África Negra. Porém, a mudança desse quadro
começou a se dar a partir de 1973: o Choque do Petróleo impactou decisivamente na
economia brasileira e seus dirigentes passaram a privilegiar os laços com os países
produtores. Esses, em geral, eram anti-apartheid. Tal situação obrigou eres a também
mudar sua postura em relação ao Brasil, mas tais questões poderão ser analisadas em
outras ocasiões.
Referências
ANDERSON, Perry. As antinomias de Antonio Gramsci. In: ANDERSON, et al. Crítica
Marxista. São Paulo, Ed. Joruês, 1986, p. 07-74.
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores Relatório 1969. Brasília: Departamento de
Administração, 1969.
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores Relatório 1970. Brasília: Departamento de
Administração, 1970.
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores Relatório 1972. Brasília: Departamento de
Administração, 1972.
CONRADIE, A. Um ano de África do Sul. O JORNAL, Rio de Janeiro, 05 Cad. Turismo, 18
jul 1971.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, p. 04-05 Cad. Turismo, 26 jan. 1969.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, p. 03, 23 fev. 1969.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, p. 03, 01 mai. 1969.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, p. 02 3º Cad, 21 set. 1969.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, p. 04 Cad. Rodamundo. 12-13 abr. 1970.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, p. 03 Cad, 28 dez. 1972.
DIÁRO DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro, p. 03 2º Cad, 28 fev, 1971.
DIÁRO DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro, p. 16, 21 mar. 1971.
DIÁRO DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro, p. 13 1ª Seção, 13 set. 1970.
DIÁRIO DO PARANÁ, Curitiba, p. 04 2º Cad, 23 set. 1971.
DURAND, José Carlos. Formação do campo publicitário brasileiro. São Paulo:
FGV/EAESP/GV Pesquisa, 2008.
FAY, Claudia; OLIVEIRA, Geneci. A aviação comercial brasileira durante os anos 1950-
1970: a crise da Real, da Panair e da Cruzeiro do Sul. Revista UNIFA, Rio de Janeiro, v. 26,
n. 33, p. 38 - 45, dez. 2013.
FLYSAA, Breve Histórico/Brief History. In: FLYSAA, South African Airways. 2021.
Disponível em: https://www.flysaa.com/about-us/leading-carrier/about-saa/brief-
history Acesso em: 14 jun. 2021.
FOLHA DE SÃO PAULO, p. 03 Cad. Turismo, 29 mai. 1970.
FOLHA DE SÃO PAULO, p. 32 Cad. Turismo, 04 dez. 1970.
FUNDO Conselho de Segurança Nacional. N8.0.PSN, EST.204 Relação Brasil/Rússia.
Instalação de empresas pesqueiras soviéticas em São Paulo. Arquivo Nacional. Brasília,
Brasil, 1968-1970.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Maquiavel, Notas sobre o Estado e a política.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
JORNAL DO BRASIL, p. 13, 15 jan. 1967.
JORNAL DO BRASIL, p. 14, 13 mai. 1967.
JORNAL DO BRASIL, p. 07, 22 mar. 1967.
JORNAL DO BRASIL, p. 05 Cad. de Automóveis, 05 fev. 1969.
JORNAL DO BRASIL, p. 14, 13 mai. 1967.
JORNAL DO BRASIL, p. 14, 13 mai. 1967.
JORNAL DO BRASIL, p. 04, 26 jan. 1969.
JORNAL DO BRASIL, p. 10, 22 fev. 1969a..
JORNAL DO BRASIL, p. 10, 22 fev. 1969.
JORNAL DO BRASIL, p. 04, 12 mar. 1969.
JORNAL DO BRASIL, p. 10, 11 abr. 1969.
JORNAL DO BRASIL, p. 13, 03-04 ago. 1969.
JORNAL DO BRASIL, p. 10, 19 dez. 1969.
JORNAL DO BRASIL, p. 05, 26 dez. 1969 a 01 jan. 1970.
JORNAL DO BRASIL, p. 10, 05-06 abr. 1970.
JORNAL DO BRASIL, p. 04 Cad. de Automóveis, 10 jun. 1970.
JORNAL DO BRASIL, p. 05 Cad. de Automóveis, 23 set. 1970.
JORNAL DO BRASIL, p. 19, 18-19 out. 1970.
JORNAL DO BRASIL, p. 07, 27 jan. 1972.
JORNAL DO BRASIL, p. 05 Cad. de Automóveis, 20 fev. 1972.
MARANHÃO, M. JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, p. 05 Cad. Turismo, Capa Cad.
Turismo, 12 jan. 1969.
MARCONDES, S. Informe especial. O JORNAL, Rio de Janeiro, p. 06, 09 out. 1970.
MAYRINK, J. País com 236 aeroportos não pode orgulhar-se deles. JORNAL DO BRASIL,
Rio de Janeiro, p. 15, 10 out. 1967.
MARTINELLI, Caio. O Jogo Tridimensional: o Hard Power, o Soft Power e a
Interdependência Complexa, segundo Joseph Nye. Conjuntura Global, vol. 5 n. 1,
jan./abr., p. 65-80, 2016.
MENDONÇA, Sonia. R. de. O Estado Ampliado como Ferramenta Metodológica. Marx e o
Marxismo, v. 2, n. 2, p. 27-43, 2014.
MONTEIRO, A. Conheça o mapa da mina. CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, p. 16, 25-
26 jan. 1970.
MONTEIRO, Tiago. A Nova República e os debates relativos ao papel político das forças
armadas pós-ditadura: homens, partidos e ideias (1985-1990). 2012. 312 f. Dissertação
(Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
MONTEIRO, Tiago. As relações dos governos Castelo Branco e Costa e Silva com a
África do Sul e o papel dos diplomatas sul-africanos no Brasil (1964-1969). Revista
Tempo Amazônico, v. 8, n. 2 jan-jun, p. 148-164, 2021.
NOGAR, Convivência Social. JORNAL DO COMÉRCIO, Manaus, p. 05, 14 mar. 1972.
NYE Jr., Joseph S. O paradoxo do poder americano: porque a única superpotência do
mundo não pode prosseguir isolada. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.
O GLOBO, p. 19, 20 jan. 1969.
OLIVEIRA, F. JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, p. 04 Cad. D, 27 set. 1970.
OLIVEIRA, F. A civilização das barras de metais no continente africano. JORNAL DO
BRASIL, Rio de Janeiro, Capa Cad. Turismo, 07 jan. 1972.
OLIVEIRA, Geneci G. Varig de 1986 a 2006: reflexões sobre a ascensão e a queda da
empresa símbolo do transporte aéreo nacional. 2011. 159 f. Dissertação (Mestrado em
História) - Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
O JORNAL, p. 09, 21 fev. 1969.
O JORNAL, p. 05, 22 abr. 1969.
O JORNAL, p. 05, 01 mai. 1969.
O JORNAL, p. 09, 21 fev. 1969.
O JORNAL, p. 05 Cad. Turismo, 31 ago. 1969.
O JORNAL, p. 09, 30 mai. 1970.
O JORNAL, p. 05 Cad. Turismo, 18 jul. 1971.
PEREIRA, Analúcia. A revolução sul-africana: classe ou raça, revolução social ou
libertação nacional? São Paulo: Editora Unesp, 2012.
SALADINO, Alejandra. O fechamento da Panair do Brasil e a ascensão da VARIG. Revista
Cantareira. Niterói: Universidade Federal Fluminense, v. 3, p. 01-20, 2005.
SILVA, Alberto da Costa. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: EDUSP, 1992.
SILVA, J. Cícero Leuenroth morreu em Los Angeles. CORREIO DA MANHÃ, Rio de
Janeiro, Capa, 22 dez. 1972.
VELOSO, Fernando; et. al. Determinantes do “milagre” econômico brasileiro (1968-1973):
uma análise empírica. Revista Brasileira de Economia. 62 (2), p. 221-246, 2008.
VILALVA, Mario. África do Sul: do isolamento à convivência: reflexões sobre a relação
com o Brasil. Brasília, FUNAG, 2016.
WOOD JR.; Thomaz; BINDER, Marcelo P. Prisioneiros do discurso: o caso da indústria
brasileira de transporte aéreo. Revista de Administração Pública (RAP), vol. 44, núm. 6,
nov-dez, p. 1273-1300, 2010.
ZÓZIMO, From África. JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, p. 03 Cad. B, 22 abr. 1969.