JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega de.*
https://orcid.org/0000-0002-1377-8829
RESUMO: A proposta do artigo é apresentar
os primeiros resultados da pesquisa
desenvolvida a respeito do Patrimônio
Industrial Ferroviário no Brasil e em Portugal.
A investigação parte da hipótese que o
processo de preservação e salvaguarda de tais
bens possibilita identificar uma cultura
ferroviária atlântica”. Assim, a investigação
ocorre na intersecção da história
contemporânea das empresas, patrimônio,
cultura e memória, com o campo de
conhecimento da história atlântica. Para tanto,
busca-se extrapolar à análise dos bens
materiais, dialogando, também, com a ideia de
cultura organizacional e com o histórico de
experiências e modos de fazer de instituições
ferroviárias que, em conjunto, ajudam a
determinar a memória ferroviária em ambos os
países.
PALAVRAS-CHAVE: patrimônio ferroviário;
história atlântica; memória.
ABSTRACT: The objective of this article is to
present the initial findings of a research
focused on the Railway Industrial Heritage in
Brazil and Portugal. The investigation based on
the hypothesis that the process of
preservation and safeguarding of these assets
contributes to the identification of an “Atlantic
railway culture”. As a result, this study resides
at the intersection of contemporary history of
companies, heritage, culture, and memory,
while drawing upon the field of knowledge
within Atlantic history. To this end, the
research extends beyond the analysis of
tangible assets and engages in a dialogue with
the concept of organizational culture.
Furthermore, it examines the historical
experiences and practices within railway
institutions, as these factors collectively
contribute to the formation of railway memory
in both countries.
KEYWORDS: Atlantic history; Memory;
Railway heritage.
Recebido em: 18/02/2023
Aprovado em: 15/04/2023
* Pós Doutor em História pela UNICAMP (IFCH), Campinas-SP, Doutor e Mestre em História pela UNESP,
Assis-SP. Professor do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas e Programa de Pós-Graduação em
História da UESC-Ilhéus-BA. E-mail: cgnjesus@uesc.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
Nas linhas que se seguem, a proposta é apresentar alguns resultados da pesquisa
de pós-doutorado desenvolvida no Departamento de História, Estudos Europeus,
Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras de Coimbra (FLUC-UC) e no Centro de
Estudos Interdisciplinares do século XX (CEIS20) da mesma universidade. O projeto cujo
tema é “Patrimônio Cultural e desenvolvimento integrado/sustentável: turismo, cultura
de/e natureza organizacional em escalas regional, subcontinental e global”, tem como um
de seus objetivos pontuar e sugerir políticas de sustentabilidade aplicadas em empresas
ferroviárias no Brasil e em Portugal a partir de processos, análise, divulgação,
preservação e salvaguarda do Patrimônio Industrial, memória e cultura organizacional de
tais instituições.
Nesse sentido, buscou-se entender a “cultura organizacional” como um “[...]
conjunto de valores, crenças e tecnologias que mantém unidos os mais diferentes
membros, de todos os escalões hierárquicos, perante as dificuldades, operações do
cotidiano, metas e objetivos” de uma instituição (NASSAR, 2000, p. 46). Ainda, de acordo
com um dos maiores estudiosos sobre o assunto, Robbins (2011, p. 375, grifo nosso), “[...]
a cultura organizacional se refere a um sistema de valores compartilhados pelos
membros [situação] que diferencia uma organização das demais. Esse sistema é, em
última análise, um conjunto de características-chave que a organização valoriza”, afeta a
produtividade e o desempenho da instituição, e fornece orientações para o futuro. Pode-
se afirmar, ainda, que tal conceito “[...] produz junto aos mais diferentes públicos, diante
da sociedade e dos mercados, o conjunto de percepções, ícones, índices e símbolos que
chamamos de imagem corporativa.” (NASSAR, 2000, p. 46). Assim, é consenso entre os
especialistas que a “cultura organizacional” é específica, difere e caracteriza a “[...]
organização, por isso é difícil de se modificar”. O que não quer dizer que não possa
sofrer mudanças ao longo do tempo, mesmo que com grande resistência institucional. No
entanto, por estar, também, relacionada à memória institucional, é possível, por meio
dela ter acesso a um conjunto de informações desprezadas por meio de esquecimentos e
silêncios, ou seja, experiências e práticas que não estão mais evidentes por terem sido
incorporadas ao longo do tempo e ficarem consciente ou inconscientemente diluídas em
diferentes suportes dessa intocada memória organizacional. Desta forma, juntamente
com o Patrimônio Cultural, a cultura institucional é compreendida na pesquisa como um
conceito que auxilia na criação de instrumentos de recuperação e manutenção de tais
informações com vistas à organização e à gestão organizacional, sendo essencial para
produção do conhecimento, inovação, tomadas de decisões e mudanças.
A pesquisa se posiciona na intersecção da história contemporânea das empresas,
patrimônio, cultura e memória, com o campo de conhecimento da história atlântica, o
que a faz também a dialogar com o projeto Atlantes, desenvolvido no Departamento de
Filosofia e Ciências Humanas e no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Ilhéus (UESC).
1
A investigação parte da hipótese que o estudo
integrado Portugal-Brasil é possível a partir de um olhar amplo sobre o campo de
pesquisa do Atlântico, ou seja, de suas relações, trocas e imigrações. Assim, compartilha-
se que deva ser um estudo, como afirma Armitage (2014, p. 208 e p. 209) “mais
multicolorido”, que leve em conta Atlântico branco com raízes na Guerra Fria, um
Atlântico negro com origens no s-Guerra Civil americana nos Estados Unidos, e um
Atlântico vermelho que remonta ao cosmopolitismo de Marx”. Com isso, a pesquisa
dialoga com as discussões acerca de uma perspectiva atlântica que difere daquela
comumente focada especificamente no tráfico de pessoas escravizadas ou nas relações
com o continente africano, no entanto, não deixando de fazê-lo, mas ultrapassando o
marco cronológico do século XIX. De acordo com o Atlantes, a pesquisa leva em conta o
método e o enfoque proposto por Fernand Braudel (1983) em “O Mediterrâneo e o
mundo mediterrâneo no tempo de Felipe II”, assim como os trabalhos pioneiros escritos
nas décadas de 1950 e 1960, apesar de suas perspectivas eurocêntricas, como o de Pierre
Chaunu (1955) na obra Séville et l’Atlantique (1504-1650). Mas vai além, dialogando com
Peter Linebaugh (1983) que,
[...] propôs outra visão do Atlântico, que formaria uma comunidade composta
pela Europa, África e Américas, articulando sucessivas cooperação entre si,
tendo como principal elo o navio; ou, como alegoricamente sugeriu, o navio
seria o polegar que toca e funcionalidade à mão, isto é, ao espaço atlântico,
ou de Paul Gilroy (2001), em “O Atlântico Negro” que evocou também a imagem
do navio como um “sistema vivo, multicultural e micropolítico em movimento”,
ligando os continentes banhados pelo Atlântico, onde projetos, ideias, ativistas e
artefatos políticos e culturais (panfletos, livros e registros fotográficos)
circulam. Deve-se deixar claro, nesse sentido, que o foco das análises de Gilroy
está em um Atlântico visto pelo prisma dos africanos e afrodescendentes, não
de uma perspectiva afrocêntrica, mas ressaltando as características híbridas,
sincréticas e crioulas que esse movimento provocou nas margens do Atlântico
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ-ILHÉUS, 2022, p. 3).
Desta forma, o diálogo desenvolvido entre as duas instituições, UESC e FLUC-UC,
perpassa por um olhar Atlântico e ultrapassa a leitura anacrônica acerca da relação entre
1
Projeto ATLANTES Observatório de Experiências Atlânticas e Afro-Diaspóricas Sex. XVI-XX é
coordenado pelo professor Doutor Flávio Gonçalves dos Santos e trata-se de um projeto integrado de
PESQUISA-AÇÃO que tem finalidade otimizar e dar organicidade às ações de Ensino, Pesquisa e Extensão
desenvolvidas pelo Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, e especialmente pelo Programa s-
Graduação em História: Atlântico e Diáspora Africana (PPGH-UESC) da Universidade Estadual Santa Cruz
de Ilhéus.
Brasil/ Portugal, amplificada temporalmente e geograficamente até os dias atuais,
calcada numa eterna relação de colônia e metrópole, apropriada, erroneamente, de um
dos temas mais recorrentes utilizados pela historiografia, a Crise do Sistema Colonial
(JESUS, 2022, p. 7). Assim, a pesquisa parte de uma leitura que privilegia a aproximação
entre os países via Atlântico, de um modo mais colaborativo do que comparativo, a fim
de se pensar iniciativas sustentáveis que possam ser desenvolvidas em ambas margens
de um mesmo oceano que compartilha “[...] ideias, memórias, valores, tradições, línguas,
literaturas, políticas, economias, tudo que o ser humano carrega e que lhe confere a
característica de um ente que produz cultura, ideias e experiências”, tudo isso ao longo
desses três últimos séculos, XIX, XX e XXI (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA
CRUZ-ILHÉUS, 2022, p. 4).
Para tanto, a investigação partiu da hipótese que os processos de divulgação,
preservação e análise do Patrimônio Industrial, memória e cultura organizacional são
meios viáveis para se alcançar políticas institucionais sustentáveis no mundo
coorporativo. Nesse sentido, o intuito é focar nas propostas iniciais da pesquisa
referentes ao Patrimônio Industrial de organizações ferroviárias dos dois lados do
Atlântico, podendo-se cunhar o conceito de “cultura ferroviária atlântica” entre Portugal
e Brasil, pois, além de outras várias similitudes, em ambos os países o complexo
ferroviário se destaca no cenário do patrimônio industrial do transporte, sendo
extremamente relevante para o estudo da expansão econômica, territorial e cultural.
No Brasil, a empresa ferroviária esteve em compasso com o processo de
industrialização que começava a fazer vistas a uma economia, até então, essencialmente
agrária. Além disso, a ferrovia serviu como principal suporte modal para a exportação,
que passava a formar uma rede com os centros de produção agrícola e de mineração e
com os portos, auxiliando, algumas vezes, a transposição de obstáculos à navegação
fluvial. Já, em Portugal, os chamados “caminhos-de-ferro” foram vistos como um
instrumento claro de prosperidade e modernização de infraestrutura logística, vindo a
somar às vias de escoamento fluviais e substituindo:
[...] as estradas em mau estado e carreiros, onde andavam carros movidos a
tração animal, por isso os rios eram a principal instrumento de comunicação
entre o litoral e o interior. O comboio surge, assim, como solução para prover o
país de um sistema de transportes mais rápidos e de maior eficiência.
(MACEDO, 2019, p. 11).
A ferrovia também participou do processo de urbanização, formando novas
cidades, devido às linhas de penetração para o interior, que surgiram em função das
atividades econômicas pelas quais a malha foi implantada ou por sua função logística.
Principalmente no Brasil, no entorno das linhas, os povoados, bairros e cidades surgiam,
juntamente com práticas sociais e culturais, sem estar nos planos da ferrovia e sem dar
importância ao desenvolvimento de núcleos urbanos ao redor destas (MONASTIRSKY,
2006). Com isso, pode-se afirmar que todo esse conglomerado patrimonial heterogêneo
é extremamente relevante para entender o processo de industrialização no Brasil e
Portugal, mas, também guardam as marcas da sociedade, economia, cultura, organização
laboral, urbana e política de ambos países.
A partir de tal critério, foi selecionada em Portugal a estatal Comboios de
Portugal, E.P.E (CP), entidade pública empresarial responsável pela modernização da
frota de circulantes e pela compra e reabilitação de comboios ferroviários naquele país.
A escolha se deu pelo fato da empresa estatal portuguesa possuir uma extensa cultura
organizacional, acumulada desde a sua criação em 1860, além de ter um trabalho de
preservação e divulgação das diversas instâncias de memória dessa atividade modal no
país.
2
Tal acúmulo cultural advém da herança da Companhia Real dos Caminhos de Ferro
Portugueses, entidade privada criada para construir as primeiras linhas ferroviárias de
Portugal, que buscou ligar a cidade de Lisboa ao Porto e à fronteira com Espanha. Após a
Revolução de 25 de Abril de 1974, a Companhia foi nacionalizada e mudou novamente de
nome, para Caminhos de Ferro Portugueses, E.P (MARTINS et al, 1996, p. 70; REIS et al,
2006, p. 62-63), vindo a ser denominada Comboios de Portugal, E. P. E, em 2009 pelo
Decreto-Lei n.º 137-A, de 5 de Junho de 2009. (PORTUGAL, 2009c)
no Brasil, optou-se por se pesquisar a linha representada pela extinta Ferrovia
Paulista S/A (FEPASA).
3
Com um rico acervo patrimonial industrial, a organização
ferroviária em São Paulo manteve as 6 maiores companhias de transporte do Brasil e
teve uma grande influência e papel de destaque na política, cultura e na economia
brasileira (cf. OLIVEIRA, 2020, p. 418).
2
Nesse sentido, pode-se destacar o Arquivo Histórico e Centro de Documentação da CP: A missão do
Arquivo CP é de conservar, preservar, estruturar, atualizar, valorizar, divulgar/tornar acessível ao público
os testemunhos da memória do transporte e do setor ferroviário e da identidade empresarial, e manter a
eficácia do sistema de arquivo, com vista à obtenção, em tempo útil, de informação de qualidade. Com
interesse para o estudo das origens, da história e do desenvolvimento da CP, este acervo espelha a história
do setor do transporte ferroviário em Portugal. São cerca de 165 anos de memória histórica sobre a vida
política, económica, social e cultural, com dimensão empresarial, cultural e intelectual, cívica e científica
do país (PORTUGAL, 2009a).
3
“O capital investido no transporte férreo é proveniente da riqueza proporcionada pela cafeicultura e
tinha como função principal facilitar o escoamento de sua produção [...] Desde então, verificou-se uma
série de ações que resultou, a finais da década de 60, na fusão das cinco principais ferrovias do Estado
Sorocabana, Paulista, São Paulo-Minas, Araraquarense e Mogiana para compor a Ferrovias Paulista S/A,
mais conhecida como FEPASA” (BARTCUS, 2012, p. 13-14).
Em 28 de outubro de 1971, com a Lei 10.410, o Estado de São Paulo criou a FEPASA
Ferrovia Paulista S/A que, unificou as cinco ferrovias existentes no “[...]Estado dentre
elas, a Estrada de Ferro Sorocabana (EFS), adquirida em 1904; a E. F. Araraquara (EFA)
(1919); a E. F. São Paulo-Minas (1934) a E. F. Mogiana (1952), a E. F. Campos de Jordão
(1953) e a Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF) (1961) (FEPASA, 1991, p. 9-16).
Coincidência ou não, foi nessa época que se percebeu “a aceleração da degradação e a
manutenção precária das vias, dos equipamentos e dos trens de passageiros [...] O
trabalho ferroviário passou a declinar, e o número de demissões de trabalhadores foi
significativo” (LICO, 2018, p. 12). Em 1998, ela foi incorporada à Rede Ferroviária Federal
S.A. (RFFSA), que foi criada em 1957 para administrar as estradas de ferro federais.
Com a Lei 11.483 de 31 de maio de 2007, segundo seu artigo , o Instituto do
Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN)
4
passou a “receber e administrar os
bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA,
bem como zelar pela sua guarda e manutenção” (BRASIL, 2007). Tal lei, criou uma nova
figura de preservação que depois foi legitimada pela portaria 407/2010: “Dispõe sobre
o estabelecimento dos parâmetros de valoração e procedimento de inscrição na Lista do
Patrimônio Cultural Ferroviário, visando à proteção da memória ferroviária, em
conformidade com o art. da Lei n.º 11.483/2007.” (BRASIL, 2010, grifo nosso). Surgia,
então, a “memória ferroviária” como um conceito para balizar a preservação a partir de
uma definição ampla, na qual “o patrimônio ferroviário era a própria memória
ferroviária” (PROCHNOW, 2014, p. 12), pois envolvia sua “dimensão urbana, de paisagem,
de cotidiano, do trabalho e da técnica” (PROCHNOW, 2014, p. 44). Conceituação que, na
prática, muitas vezes, foi suplantada no interior de algumas instâncias burocráticas do
próprio órgão, que ainda manifestam a defesa de critérios “de monumentalidade, de
raridade, de autenticidade e de excepcionalidade de bens isolados, referentes ao ato do
tombamento, segundo o Decreto-Lei 25/37” (PROCHNOW, 2014, p. 44).
Na pesquisa, em vista da complexidade de tal discussão conceitual, optou-se por
utilizar a denominação: Patrimônio Industrial Ferroviário, conceito calcado na ampla
gama de bens e práticas culturais ferroviárias legitimadas pelo IPHAN e por Cartas
Patrimoniais internacionais ligadas ao Patrimônio Industrial, como a de Nizhny Tagil.
Essa última determina que as “[...] razões que justificam a proteção do patrimônio
industrial decorrem essencialmente do valor universal daquela característica, e não da
4
“O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é uma autarquia federal vinculada ao
Ministério do Turismo que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Cabe ao Iphan
proteger e promover os bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações
presentes e futuras. Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional. Disponível em:
https://www.gov.br/iphan/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/apresentacao. Acesso em: 27
mar.2023.
singularidade de quaisquer sítios excepcionais” (TICCIH, 2003). Tal detalhe é importante,
pois a organização privada RUMO, concessionária que herdou a maior parte do que
sobrou da infraestrutura ferroviária rodante do país, fundada em 2008, também foi
analisada, detectando-se no seu discurso um distanciamento de tal conceituação.
5
Situação que possibilitou enxergar algo aquém de um entendimento técnico destoante,
revelando, na verdade, a falta de conscientização da importância da prática de
preservação cultural institucional para uma gestão organizacional mais inteligente e
sustentável.
Nesse sentido, é relevante salientar que, no rastro de retomada econômica pós-
COVID-19, vários projetos de investimentos nos ramos de transportes ferroviários estão
sendo revistos em ambos países e todas essas propostas têm em comum a busca pelo
desenvolvimento sustentável, principalmente em consonância com a agenda das
propostas internacionais de redução da temperatura global e da preservação ambiental,
com o objetivo de rever ou restabelecer o equilíbrio das formas de produção e consumo
em todo planeta.
É consenso entre a comunidade científica a necessidade urgente de diminuição de
emissão de CO2 e outras medidas pautadas para um desenvolvimento econômico
integrado e inteligente. Nesse sentido, a ideia de energia limpa” possibilitada pelas
ferrovias é ponto fulcral no discurso de retomada de tais práticas, por isso, um dos
objetivos da pesquisa e do artigo aqui apresentado é analisar e construir propostas em
perspectiva Atlântica em cooperação entre Brasil e Portugal, que possibilite e facilite, a
partir de tais instituições, a implementação de atividades de desenvolvimento
sustentável, por meio de programas de preservação do patrimônio cultural, da memória,
do meio ambiente, de desenvolvimento de igualdades sociais, de melhores condições de
trabalho e da garantia aos direitos humanos.
Para tanto, partiu-se da hipótese que, na contemporaneidade, as organizações
coorporativas, como as indústrias ou as empresas, não deixaram de ser um território
poderoso, mas hoje devem ser pensadas como uma extensão da sociedade, impactando e
sendo impactada pelas comunidades que as cercam, ou seja, hoje, aquilo que as
5
Pertencente ao grupo COSAN, empresa de capital aberto do ramo do agronegócio, a denominada Rumo
Logística se autodefine como: “a maior operadora de logística ferroviária independente do Brasil, cruzando
o país de Norte a Sul, através de nossos quase 14 mil km de linhas, ligando as principais regiões produtoras
com os três principais portos do país”. A partir de sua fundação adquiriu a Malha Norte, Malha Oeste,
Malha Sul e Malha Paulista das concessões originais da RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) e o trecho
central da Ferrovia Norte-Sul. Na página institucional da empresa salienta-se, ainda, que: Administramos
milhares de quilômetros de malha ferroviária no Brasil. Temos como missão transportar produtos para as
principais regiões com total eficiência, prezando pela qualidade, diversidade e com foco em tornar o país
mais capacitado para o desenvolvimento econômico” (TRANSPORTES FERROVIÁRIOS, 2022b).
instituições são ou significam, não é ditado por elas, mas sim por entes envolvidos à
sua realidade, direta e indiretamente. Tal fato, aliado aos apelos para uma retomada
econômica verde pós-covid e ao aumento dos danos ambientais nos últimos anos, está
fazendo com que os clientes se tornem mais conscientes acerca da importância da
preservação dos ambientes natural e edificado nos quais estão inseridos. Tudo isso
auxilia que as empresas e demais instituições governamentais e não-governamentais se
mostrem mais preocupadas a atender uma agenda sustentável mais ampla, que vise
também a preservação da memória, do patrimônio cultural (material e imaterial), e o
desenvolvimento das questões sociais, étnico-raciais e de igualdade de gênero. Tal
amplitude do conceito de sustentabilidade teve como marco a Cúpula das Nações Unidas
sobre o Desenvolvimento Sustentável de 2015, quando os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) foram pensados para além da base tradicional apoiada nos três pilares
(desenvolvimento econômico, desenvolvimento social e proteção ambiental), passando a
dialogar com as metas de 2030, estabelecidas a partir da agenda mundial.
6
Nas linhas abaixo apresentaremos os primeiros resultados da pesquisa que visa
pensar atividades de gestão sustentável de empresas ferroviárias a partir de atividades
de preservação de seu patrimônio cultural organizacional. Tal trabalho prescindiu da
criação de um método a fim de ser aplicado especificamente a partir da investigação e
sistematização do Patrimônio Ferroviário Industrial da extinta FEPASA e a da CP, com
vistas ao incentivo aos programas sociais e de sustentabilidade a serem desenvolvidos
nas próprias instituições ou em organizações herdeiras de tal “cultura ferroviária”. Para
tanto, o escrito estará divido em três partes: a discussão a respeito do Patrimônio
Industrial e Patrimônio Ferroviário, apresentação das considerações levantadas a partir
da criação do método de abordagem criado para investigar a chamada “cultura
ferroviária atlântica” e, por fim, primeiros resultados/ponderações finais.
A Questão do Patrimônio Industrial Ferroviário: relevância e impacto da Pesquisa
Diante da realidade econômica, social e ambiental que impactou o mundo com a
onda pandêmica em 2020, é redundante afirmar a magnitude e a importância de
iniciativas que visem o desenvolvimento sustentável, foco das abordagens da pesquisa a
6
a agenda mundial adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável
em setembro de 2015, apresentou 17 objetivos e 169 metas a serem atingidos até 2030. Essas “novas”
propostas previstas tiveram um caráter mais detalhado na área social, entre elas, ações mundiais nas áreas
de: erradicação da pobreza, segurança alimentar, agricultura, saúde, educação, igualdade de gênero,
redução das desigualdades, energia, água e saneamento, padrões sustentáveis de produção e de consumo,
mudança do clima, cidades sustentáveis, proteção e uso sustentável dos oceanos e dos ecossistemas
terrestres, crescimento econômico inclusivo, infraestrutura, industrialização, entre outros
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015).
partir do estudo e propostas de preservação e divulgação do Patrimônio Industrial,
especificamente do Patrimônio Ferroviário. Nesse sentido, dentre as atuais discussões
acerca do Patrimônio Industrial, destaca-se a questão do impacto do meio ambiente pelo
processo de industrialização, o que coloca a pesquisa desenvolvida em tal campo de
análise.
7
Segundo o conceito difundido em 2003 pelo The International Committee for the
Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH), órgão vinculado ao International
Council of Museums and Other Sites (Icomos), por meio da Carta de Nizhny Tagil, o
Patrimônio Industrial:
[...] compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico,
tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam
edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de tratamento e de
refino, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização
de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infraestruturas,
assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas
com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação (TICCIH,
2003).
O legado do estudo do Patrimônio Industrial teve seu início na Inglaterra na
década de 1950, devido à destruição das fábricas durante a Segunda Guerra Mundial.
8
No
Brasil e em Portugal, a questão ganhou força nos anos 1980, estando ligada diretamente
à Arqueologia Industrial. Desta disciplina, o estudo do Patrimônio Industrial manteve,
além das questões técnicas interligadas ao processo de preservação, como a constituição
de inventários, documentação e restauro de peças móveis e imóveis, o consenso de que
tais bens culturais representam relevantes implicações nos processos da vida do homem
e na construção do atual estado da sociedade (BERGERON; DOREL FERRÉ, 1996).
7
Eduardo Romero de Oliveira (2021, p. 42, grifo nosso) salienta que as novas dinâmicas da industrialização
nas sociedades do século XX, abrem duas frentes à conservação do patrimônio industrial. “A primeira é a
que diz respeito à circulação e distribuição. As infraestruturas físicas, processos de trabalho e tecnologia
mobilizada para a moderna distribuição em massa dos produtos [...] A segunda frente considera a
dimensão ambiental; isto é, os efeitos das atividades industriais sobre os ecossistemas e seres vivos.
Como tratamento temático ou problema de conservação, a compreensão da industrialização na
sociedade contemporânea exige perpassar pelos impactos ambientais. O que tem implicações na
identificação dos vestígios industriais (e alterações ambientais), no juízo atribuído ao seu
reconhecimento (“monumento ao progresso”), nas condições de reutilização de locais (p. ex.
contaminados) ou custos de recuperação (energia).
8
Segundo Ronaldo André Rodrigues da Silva (2018, p. 119): “As origens do conceito de patrimônio industrial
remontam aos anos 1950 do século XX, quando o termo arqueologia industrial foi popularizado por Michel
Rix, apesar de suas origens se apresentarem ao final do século XIX. Dentre os precursores se tem o
português Francisco de Sousa Viterbo que publicou em 1896 o artigo “Arqueologia Industrial Portuguesa:
Os Moinhos”, um dos primeiros a utilizar a expressão “arqueologia industrial”, fazendo dela uma nova
disciplina para pesquisadores e educadores em relação aos restos e remanescentes do passado das
atividades industriais, memórias das pessoas, das técnicas e da tecnologia.
Nesse momento, ficou evidente também, a relação do estudo do Patrimônio
Industrial com a museologia. Nos rastros da Nova Museologia e da Ecomuseologia
9
(VARINE, 2000, p. 62) assistiu-se em Portugal o despertar para a musealização de
espaços industriais (Cf. MATOS; SAMPAIO, 2014, p. 99).
10
Por um bom tempo, o tema
sofreu o desinteresse dos pesquisadores pelo fato de não ter o devido distanciamento
cronológico (o que para alguns estudiosos do passado é imprescindível) e por sua
característica utilitarista.
Mas, a partir de 1980, o Patrimônio Industrial se tornou sinônimo de “‘novo
território’, chamando a atenção para o seu potencial, inclusive em termos da reutilização
dos seus espaços para novas funções, dando-lhes uma ‘segunda vida’, entre as quais as
de carácter museológico” (MENDES, 2012, p. 2). Além disso, com a ênfase dada ao social
pela Nova Museologia, o estudo de tais bens culturais ganhou mais destaque, pois se
mostrou mais próximos das comunidades em que estavam inseridos. Foi nessa década
que tal ideia, aliada ao processo de desindustrialização em Portugal, estimulou a
reconversão dos edifícios abandonados e a planificação do tecido urbano:
O abandono da actividade industrial foi, em vários casos, acompanhado pela
realização de estudos e intervenções arqueológicas em espaços industriais,
muitas vezes associados a processos de classificação e projetos de revitalização
(regeneração) urbana, que permitiram a criação de novos espaços culturais e
museológicos. (MATOS; SAMPAIO, 2014, p. 100).
Nos rastros da arqueologia industrial, as investigações ganharam importância a
partir do momento em que ficou claro que o Patrimônio Industrial era um precioso
instrumento para entender a sociedade moderna, s-revolução industrial. Tais
considerações nos possibilita perceber como os vestígios da industrialização “permitem
recuperar uma atividade industrial que se realizou no tempo e no espaço, que expressa
um modo particular de como as pessoas trabalhavam (e ainda trabalham) na nossa
sociedade, de como este trabalho industrial impactou na vida social” (OLIVEIRA, 2020, p.
9
Em caráter global o paradigma do museu dito “enciclopédico” começou a ser questionado no final dos
anos 1960 e refletiu-se na Declaração da Mesa Redonda de Santiago no Chile, em 1972, organizada pelo
ICOM (International Council of Museums). A partir dos anos 1980, essas novas experiências museais
abriram caminho para o Movimento Internacional da Nova Museologia, que no final do século XX, ajudou a
concretizar a ideia do museu construído por muitos e para todos, preocupado em se repactuar com o
presente, com o progresso e, para além disso, com o futuro (JESUS, 2018, p. 22-23). Nesse contexto que
Hugues de Varine (2000, p. 62) conceituou e popularizou o termo Ecomuseu, a partir da concepção do
museu como um espaço que extrapola o modelo tradicional de uma instituição focada na coleção e entre
paredes, abrangendo o seu território numa interação do patrimônio com a comunidade local.
10
O conceito de musealização utilizado está de acordo com o de Stránský (1995, p. 28-29), que pode ser
entendido por: “une expression de la tendance humaine universelle à préserver, contre le changement et la
dégradation naturels, les éléments de la alité objective qui représentent des valeurs culturelles que
l’homme, en tant qu’être culturel, a besoin de conserver dans son propre intérêt.”
417). Desta forma, nota-se uma extrapolação do próprio conceito de monumento
edificado, contemplando, também, as práticas culturais, laborais ou não, realizadas em
tais espaços industriais, pois “a partir dos estudos do patrimônio industrial e de sua
preservação, compreende-se a industrialização e as técnicas de produção de um período,
seus maquinários e instalações, bem como a história social da classe operária” (PAES,
MOURA, 2022, grifo nosso).
Mesmo ganhando tal amplitude, atualmente muitos desses suportes de memória
referentes ao Patrimônio Industrial se mantiveram esquecidos, outros se perderam por
não serem preservados, principalmente quando deixaram de ter a sua função utilitária.
Caso exemplar é o complexo ferroviário brasileiro, bens que servem como testemunho
de um período da história da arquitetura marcada pela transposição de estilos e de
materiais, como a alvenaria de tijolo (chamada também de alvenaria inglesa), o ferro, e
outras estruturas industrializadas, que representaram a racionalização e auxiliaram no
estabelecimento de inovadoras práticas construtivas (KUHL, 2010, p. 25). Aos poucos,
tais bens foram gradualmente sendo esquecidos com a opção pelas estradas de rodagem
no planejamento de Governos Desenvolvimentistas dos anos 1960, situação semelhante
o que ocorreu em Portugal (HAGATONG, 2015).
No entanto, em ambos os países nas duas últimas décadas, houve um processo de
interesse de preservação desse patrimônio, muito em virtude da já citada retomada
utilitarista de tal processo modal. Mas nessa retomada uma questão delicada reside no
fato de que o estudo do Patrimônio Industrial ainda está profundamente atrelado à
retórica da perda e à questão monumental-arquitetônica. Seria mais oportuno que a
variabilidade dos indícios ligados à memória ferroviária pudesse ser definida como parte
do patrimônio industrial do transporte, visto “que nos últimos dois séculos, o transporte
é uma atividade humana que também se transformou no mundo industrial a ponto de
assumir características industriais neste período”. (OLIVEIRA, 2020, p. 424). Com isso,
defende-se que o estudo do Patrimônio Industrial Ferroviário, sua preservação e
divulgação deva dar uma maior relevância à dimensão social, pois é a sua identificação
com a comunidade é que vai lhe garantir sobrevida. Ou melhor, de acordo com as
discussões de História Pública, tal premissa deve vir antes da retórica da perda,
justamente para garantir a preservação, pois
[...] podemos afirmar que é por meio dessas apropriações (do social) que eles
(os patrimônios) são reinseridos na vida contemporânea, que ganham espaço
de discussão, que são desnaturalizados [...] [e. assim que] A História Pública,
entendida não como campo disciplinar com métodos e objeto próprio, mas
como espaço para debates, cede espaço para as reflexões sobre patrimônio
cultural. Talvez sua potência esteja justamente em incluir as intervenções do
presente na discussão acerca da produção de sentidos históricos empreendida
por órgãos públicos voltados à seleção e preservação de bens qualificados como
históricos e culturais em nome de um coletivo imaginário baseado em uma
suposta identidade comum (BAUER; BORGES, 2019, p. 55, grifo nosso).
A relação do Patrimônio Industrial com as “intervenções do presente” sugeridas
por Letícia Bauer e Viviane Borges deve ocorrer justamente pela necessidade de
aproximá-lo das questões sociais. Mas, ao nosso ver, isso só vai acontecer se operarmos
a extrapolação do seu conceito fechado na ótica monumental e exclusivamente edificada,
questão que segundo Henry-Pierre Jeudy (1990, p. 07) não está de acordo com as novas
conceituações de Patrimônio Cultural, marcado pelo que chama de “crise da
monumentalidade”: “Ao invés de ser considerado uma aquisição, o patrimônio apresenta-
se como conquista e apropriação social, desafiando assim a regularidade burocrática da
classificação em Monumentos históricos”. O mesmo pode-se dizer do Patrimônio
Industrial, que na Carta de Nizhny Tagil, salienta-se que “o patrimônio industrial se
reveste de um valor social como parte do registro de vida dos homens e mulheres
comuns e, como tal, confere-lhes um importante sentimento identitário” (TICCIH, 2003,
item 2, inciso ii). Ao nosso ver, desta forma, ou seja, entendido na sua integralidade,
inclusive social, o Patrimônio Industrial Ferroviário se torna integralmente parte do
Patrimônio Cultural.
Nesse sentido, um ponto relevante levantado na pesquisa é o reconhecimento da
importância do estudo e divulgação dessa leitura ampla referente ao Patrimônio
Industrial Ferroviário em Portugal e no Brasil, que leva em conta as histórias dos modos
de fazer, das relações sociais e das atividades laborais referentes às empresas
ferroviárias. Algo que deveria ser óbvio, que a empresa ferroviária, em caráter global,
foi um divisor de águas no que se refere aos hábitos culturais e sociais, principalmente
os laborais, aperfeiçoando práticas de trabalho em diversas áreas como a mecânica e a
metalurgia.
11
Paralelamente a esse avanço tecnológico, a exploração da mão de obra no
complexo ferroviário foi uma prática anexa, própria dos processos de industrialização,
que é convenientemente esquecida nas propostas de preservação da memória e
patrimônio ferroviário.
12
11
A ferrovia ocasionou uma diversificação de novas formas de trabalho que era voltado quase
exclusivamente à agricultura (LAMOUNIER, 2012, p. 23) De acordo com Liliana Bueno dos Reis Garcia
(2005, p. 18) as oficinas ferroviárias “aglutinaram uma série de atividades relacionadas à montagem,
reparo, manutenção e até mesmo à produção de inúmeros componentes para as locomotivas, carros e os
vagões, demandados pela ferrovia.
12
Segundo Claudio Batalha (2007, p. 109) “explorar os trabalhadores até seu esgotamento, [...] era, do
ponto de vista dos empregadores, uma política bastante racional, por mais imoral que ela possa nos
parecer”. se havia pequenas concessões na relação patrão-empregado, tal prática ocorria como
estratégia para continuar o processo de exploração da mão de obra trabalhadora (SEGNINI, 1982, p. 62).
Diante de tal circunstâncias, é relevante destacar o trabalho de Ana Lúcia Duarte
Lanna, que, ao criar o banco de dados Ferrovia, cidade e trabalhadores: A Conquista do
Oeste (1850-1920), situou um caldo cultural de trabalhadores ferroviários em
agremiações criadas pelo grupo e, a partir destas, evidenciou algumas relações
“estabelecidas com a empresa, marcadas pelo paternalismo e constituição de uma
identidade de família ferroviária” (LANNA, 2016, p. 505). Além disso, localizou um rol de
funcionários que eram subcontratados e não apareciam nos registros da Companhia
Paulista (LANNA, 2016, p. 516). Assim, se nem mesmo a memória dos empregados
registrados foi devidamente referida em projetos de recuperação do Patrimônio
Ferroviário, o que dizer desse potente manancial de informações funcionais acumuladas
em um campo memorial ferroviário pouco explorado e desprezado pela própria
instituição. Da mesma forma, a pesquisa feita por Aline Zandra Vieira Bartcus (2012, p.
37) a respeito do estudo do Museu Ferroviário da Companhia Paulista de Jundiaí, com
uso da história oral, conseguiu demonstrar a importância dos modos de fazer para o
Patrimônio Industrial Ferroviário, enfatizando que:
[...] devem ser conservados os objetos, mas também e fundamentalmente os
modos de fazer. Portanto, o patrimônio industrial é a soma de bens materiais,
documentais e também de uma dimensão imaterial extremamente rica que
completa a preservação dos remanescentes industriais”.
13
Outra pesquisa relevante nesse sentido é a de Tamires Sacardo Lico (2018, p. 12)
para quem a estação da Companhia Paulista era “um local de encontros e despedidas [...]
considerada um espaço de socialização”, capaz de auxiliar a compreender o cotidiano
dos trabalhadores nos canteiros de obras, “as relações vivenciadas por eles e a
existência de escravos na construção da linha férrea, mesmo com o veto legal do
trabalho escravo” (LICO, 2018, p. 14).
Situação que justifica-se pensar o Patrimônio Industrial Ferroviário como “os
bens imóveis, bens móveis, acervos documentais, além do patrimônio imaterial,
representado pelos costumes, tradições e outras influências [...]” (MORAES, OLIVEIRA,
2017, p. 19). No entanto, entre os especialistas, tal amplitude ainda gera certa confusão,
segundo Eduardo Romero de Oliveira, na Carta de Riga de 2005, documento
internacional aprovado pela European Federation of Museum & Tourist Rail
13
“Localizado no Complexo de Oficinas FEPASA, o Museu atualmente é um patrimônio tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN [...] No ano de 2004, parte do acervo
documental que estava depositado em Jundiaí foi transferido para o bairro do Bom Retiro, na cidade de São
Paulo, sob a responsabilidade da RFFSA. Com esse deslocamento, permaneceram em Jundi o acervo
material do museu, e os documentos e livros que compõe o arquivo e a biblioteca do espaço que,
atualmente, passa por um processo de catalogação” (BARTCUS, 2012, p. 16).
internacional, de 2005, uma hierarquia do “patrimônio ferroviário”, (OLIVEIRA, 2020,
p. 436), pois para ele os objetos, edifícios e sítios históricos não são identificados e
protegidos por sua representatividade tecnológica, para ele o documento “[...] é enfático
ao designar o material rodante como o “patrimônio ferroviário” por excelência. Tanto na
conceituação inicial quanto ao longo do documento, as referências são de preservação
dos elementos mecânicos e manutenção de sua funcionalidade (art. 3) [...]” (OLIVEIRA,
2020, p. 234-235). Em outro texto, juntamente com Ewerton Henrique Moraes, afirma
que tal concepção expressa na carta: “diverge de nossa interpretação sobre o tema ao
ficar restrito aos objetos históricos, seus significados e a história dos meios de
transporte”, ou seja, distante da percepção mais ampla de patrimônio industrial e
ferroviário (MORAES; OLIVEIRA, 2017, p. 25). Ao estender seu olhar às Cartas
Internacionais mais recentes, Oliveira, ainda, reconhece tal contradição, mas é enfático
em salientar a evolução desse olhar estendido do Patrimônio Ferroviário:
A redação de diversas cartas patrimoniais no âmbito internacional para além
da difícil coerência conceitual entre elas aponta para a multiplicação de
valores culturais que deveriam ser reconhecidos atualmente. Multiplicação que
também incide sobre os tipos de bens culturais [...] Dentre os rios tipos de
vestígios industriais destacamos aquele patrimônio industrial do transporte
relativo aos “meios de transporte e todas as suas estruturas e infraestruturas”
(TICCIH, 2003), sendo que associações ferroviárias e documentos
internacionais destacam a importância da preservação do “historic railway
equipment” (FEDERAIL, 2005). Declaração posterior (TICCIH / ICOMOS, 2011),
admite que o patrimônio industrial refere-se à conservação das dimensões
tangíveis e intangíveis da industrialização (o saber-fazer, a memória e vida
social) a Carta de Riga observava que preservar um objeto ferroviário é
também manter a memória associada. Isto implica que o patrimônio do
transporte considere, por exemplo, desde os aspectos da prática profissional
até a memória do trabalho (OLIVEIRA, 2020, p. 418).
Em Portugal, especialistas compartilham de tal visão:
A sua matéria patrimonial, refere-se aos bens resultantes da actividade
ferroviária, cujo o valor se reconheceu socialmente. Este é assim, considerado
tanto tangível como intangível. O tangível, permite a análise histórica dos bens
imóveis, onde se incorporam as estações de caminhos-de-ferro, as pontes, os
túneis e todos os edifícios ligados à viabilização da ferrovia; e os bens veis,
como as locomotivas, vagões e equipamentos em geral. O intangível refere-se à
memória do povo que viveu durante o desenvolvimento dos caminhos-de-ferro,
os costumes e tradições em torno das vivências na ferrovia, bem como os
saberes dos trabalhadores. (MACEDO, 2019, p. 9).
Assim, além de concordar com tal leitura ampla acerca do Patrimônio Industrial
Ferroviário, a partir de um trabalho de investigação comparativa-colaborativa, notou-se
variáveis relevantes para se pensar em uma “cultura ferroviária atlântica” que unem
Brasil e Portugal no compartilhamento dessa rica memória ferroviária, que deve ser
melhor preservada, mas também, principalmente, instrumentalizada de forma mais eficaz
em prol de um desenvolvimento sustentável. Por isso, além de propostas de recuperação
e a salvaguarda de tais práticas e bens culturais, enxergar o potencial de ação que a
definição ampla de Patrimônio Ferroviário e “cultura ferroviária atlântica” possuem é de
suma importância nesse novo momento pós-pandemia. Tal hipótese ganhou
materialidade na pesquisa a partir do momento que se identificou semelhantes heranças
dentro das organizações escolhidas para a pesquisa, mas, por outro lado, constatou-se,
também, que essas memórias têm em comum o fato de não serem valorizadas e, por isso,
não aparecerem, tanto em Portugal, como no Brasil, em inventários, projetos de
salvaguarda ou centros de referências específicos.
Primeiros Passos de Investigação e a ideia de uma “cultura ferroviária atlântica”
Para que o procedimento de pesquisa tivesse êxito, propôs-se um todo de
abordagem. Tal iniciativa se apoiou no diálogo entre saberes de disciplinas diversas e
seus diferentes instrumentos e métodos. A partir dessa articulação, estabeleceu-se um
percurso teórico-prático, que buscou instrumentalizar a relação entre a arquivística, a
crítica historiográfica, a museologia, arqueologia industrial, a gestão do conhecimento e a
ciência da informação para selecionar, classificar e inventariar os bens patrimoniais,
lugares de memória e práticas culturais das empresas mais significativas para o projeto.
O conceito básico adotado nessa operação foi a hermenêutica, ou seja, a interpretação
crítica de textos, signos, imagens, documentos escritos, documentos tridimensionais,
bens edificados, informações e experiências.
14
Deve-se destacar que tal prática não é
uma operação epistemológica simples, pois prescinde de uma leitura transdisciplinar que
requer a utilização de contribuições metodológicas da História, como a análise crítica
documental; das interpretações dos registros arqueológicos da Arqueologia Industrial,
Histórica-Culturalista, New Archaeology/Arqueologia Processual e s-Processual; os
métodos de organização, classificação e gestão da informação, próprios da arquivística e
da ciência da informação; e a utilização do processo de musealização, apropriação e
socialização dos objetos e sua relação com o homem em um cenário espacial, próprios da
museologia. Ainda, à seleção e leitura crítica de documentos e monumentos, próprios da
historiografia, foram adotados métodos da História da Arte e Arquitetura, como, por
exemplo, as abordagens pré-iconográfica, iconográfica e iconológica e os conceitos do
estudo do Patrimônio Industrial, Arquitetura, Geografia e Nova Museologia, que definem
14
O conceito de experiência aqui pensado dialoga com o de Edward Thompson para quem ela é
“determinada em grande medida pelas relações de produção em que nasceram” (THOMPSON, 1987, p. 13).
os bens arquitetônicos, conjuntos urbanos e/ou ambientais como acervos museológicos,
frutos e portadores de relações sociais de um determinado espaço, contexto ou tempo
histórico. E, por fim, adotou-se práticas da história oral, da antropologia cultural, análise
do discurso e sociologia participativa para estudar o patrimônio imaterial, práticas e
experiências diversas, ocorridas dentro das empresas, como, por exemplo, formas de
trabalho, técnicas construtivas, sociabilidade interna e sua relação com temas sociais
como gênero, diversidade étnica e cultural.
A aplicação de tal método criado ainda se encontra em estágio inicial na pesquisa,
mas foi possível começar a identificar um grande potencial de musealização
(salvaguarda, preservação e difusão-comunicação) de bens e práticas culturais dentre a
“memória ferroviária” do Patrimônio Industrial dos dois países. De acordo com essa
chave de leitura, notou-se em tais iniciativas mais similaridades que diferenças, situação
que possibilitou definir a ideia de uma “cultura ferroviária atlântica”.
Nesse sentido, além de trabalhar com o Patrimônio Industrial Ferroviário da
extinta FEPASA julgou-se ser relevante buscar o entendimento da RUMO LOGISTICA a
respeito de tais bens culturais e possíveis planejamentos para preservação, divulgação e
recuperação de seu patrimônio cultural, pois acredita-se que, mesmo não tendo o
controle a respeito dos bens considerados Patrimônios Culturais Ferroviários, a partir do
momento que a organização dominou as estradas de ferro ativas no país, acabou sendo,
querendo ou o, também, herdeira de tal memória, compartilhando, assim da
responsabilidade de sua divulgação e preservação. Assim, aventou-se na pesquisa que a
concessionária poderia, inclusive, colher os bônus que tal prática de cunho sustentável
poderia resultar. Mas deve-se salientar que até o momento em que foi escrito esse artigo
não identificamos o interesse ou conhecimento da empresa em desenvolver uma política
sustentável por meio da preservação, salvaguarda e divulgação do Patrimônio Industrial
Ferroviário. Algo que acreditamos ser possível desde que tal operação se constitua de
forma profissional e ética, e não voltada exclusivamente para o mercado, possibilitando
que o retorno econômico seja um meio e não um fim. O indício de tal desinteresse está
no comunicado a respeito do Patrimônio Industrial Ferroviário presente na página
institucional da RUMO:
Em cumprimento ao disposto no Decreto 10.161, de 09/12/2019, relativo ao
processo de extinção do contrato de arrendamento, divulgamos as informações
necessárias, informando ainda o endereço eletrônico coama@antt.gov.br para
envio de quaisquer manifestações e dúvidas sobre o assunto. É sabido que a
criação e o desenvolvimento da ferrovia provocaram inúmeros reflexos na
economia e política do país, bem como na história, na engenharia, na
arquitetura e na cultura, transformando lugares e relações sociais. A Rumo
entende pela necessidade da preservação e difusão da memória ferroviária
brasileira, constituída pelo patrimônio artístico, cultural e histórico do setor.
Apresentamos, a seguir, listagem dos bens móveis que possuem vocação e/ou
importância histórica, tendo em vista se tratarem de bens tombados e/ou
em processo de tombamento (SOBRE..., 2022).
O Decreto 10.161 citado fez parte da revisão do contrato de concessão feito
entre a União, por meio da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e a
RUMO LOGÍSTICA a respeito aos bens ferroviários móveis e imóveis:
[...] regulamentando a extinção de contratos de arrendamento de bens
vinculados a contratos de parceria do setor ferroviário e a alienação ou a
disposição dos bens móveis ferroviários inservíveis do DNIT (Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transportes), arrendados ou não, localizados na
faixa de domínio de ferrovia objeto de contrato de parceria (BRASIL, 2019).
Ou seja, uma regularização a fim de colocar termo de cessão à concessionária de
alguns desses bens ferroviários. No entanto, nos chamou a atenção o desprezo com que
tal conjunto patrimonial denominado “inservíveis” foram tratados:
Tal medida permitirá que diversos bens móveis ferroviários (vagões e
locomotivas arrendadas), atualmente de posse da concessionária, e sem
utilização (inservíveis), possam ser retirados de pátios ferroviários ao longo da
malha administrada pela concessionária, promovendo verdadeira limpeza
dessas áreas com a remoção e desfazimento desses bens inservíveis, permitindo
um uso mais racional desses pátios para operação ferroviária, bem como
beneficiando diversas comunidades lindeiras à ferrovia - seja do ponto de vista
de saúde pública com a redução de potenciais focos de acúmulo de água, seja do
ponto de vista de segurança, reduzindo também locais de difícil acesso para as
forças de segurança pública locais (BRASIL, 2019, grifo nosso).
Fica claro que o Decreto que pareceria ser um aditivo no sentido regulatório em
prol da União, na verdade foi uma forma de desonerar a concessionária de bens
ferroviários que fizeram parte do contrato e não estavam mais em situação de uso.
Assim, não é mera coincidência que após tal comunicado na página institucional da
RUMO encontra-se uma lista de bens móveis ou imóveis da “memória ferroviária
brasileira” que “que possuem vocação e/ou importância histórica” (SOBRE..., 2022). Ou
seja, fica claro, ao cruzar as informações do Decreto com o comunicado da empresa, que
a RUMO mesmo utilizando o conceito criado pelo Iphan para valoração de bens
ferroviários
15
e tendo divulgado acreditar “[...] na necessidade da preservação e difusão
15
O termo “memória ferroviária” utilizado pela RUMO em tal comunicado, foi uma apropriação do conceito
de atribuição de valor feita pelo Iphan a fim de valorar os bens ferroviários. Segundo Lucas Neves
Prochnow (2014, p. 11-14) a construção de tal conceito é um sintoma da crise dos monumentos e do
surgimento dos novos patrimônios, momento no qual o órgão passou a rever suas práticas institucionais e
da memória ferroviária brasileira”, ao publicar uma listagem específica de bens, teve
como objetivo, a partir do comunicado, além de estar cumprindo uma decisão judicial,
passar um claro recado que a concessionária não está interessada na preservação e uso
de tais bens ditos “inservíveis”, mesmo eles tendo relevância cultural, transferindo,
assim, essa responsabilidade ao órgão federal (SOBRE..., 2022). O que demonstra,
mesmo de forma sutil, um desinteresse ou um suposto desconhecimento da
potencialidade organizacional em qualquer processo de preservação e tratamento de tal
Patrimônio Ferroviário por parte da empresa.
A partir do posicionamento da RUMO, pode-se constatar que o entendimento de
Patrimônio Industrial Ferroviário na visão da empresa (ainda que cite em seu
comunicado o termo “memória ferroviária” apropriada do IPHAN) está vinculada à visão
restrita de tais bens como monumento e sua excepcionalidade. Além disso, o fato da Lei
11.483 de 31 de maio de 2007 atribuir ao Instituto do Patrimônio Histórico Artístico
Nacional (IPHAN) “a responsabilidade de receber e administrar os bens móveis e imóveis
de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta Rede Ferroviária Federal SA
(RFFSA)” (OLIVEIRA, 2012)
16
, pode ter contribuído para que a empresa tenha se
esquivado de projetos ligados ao Patrimônio Ferroviário.
17
Tal situação levanta dúvidas acerca da dimensão da gestão sustentável propalada
pela empresa, pois, como vimos, a amplitude da conceituação de política sustentável na
atualidade está intimamente ligada ao processo de sistematização e classificação do
Patrimônio Cultural e por extensão também ao Industrial Ferroviário, que, dentre os
dezessete objetivos sustentáveis pontuados pela ONU, ao menos três estão diretamente
ligado ao tema, como, por exemplo, a ODS 7 Energia limpa e acessível; a ODS 9
renovou-se conceitualmente: “Foi através da enunciação da categoria memória ferroviária que o Estado
iniciou a patrimonialização dos bens móveis e imóveis oriundos da extinção da Rede Ferroviária Federal
S.A. RFFSA [...] A patrimonialização dos bens ferroviários partiu da admissão de que a memória
ferroviária equivalia ao patrimônio ferroviário e, assim, que o patrimônio ferroviário era a própria memória
ferroviária, um valor intrínseco e imanente [...] [mas] enquadrar algum bem ou prática dentro do conceito
de “memória ferroviária” não era garantia de tombamento”.
16
“A RRFSA acabou por ser extinta pelo governo federal em 22 de janeiro de 2007 [...] Conforme o texto
legal, o IPHAN ficou responsável pela gestão e perpetuação da Memória Ferroviária. Em função disso, tem
sido realizado desde 2007, um trabalho de levantamento patrimonial por parte da Inventariança, para
identificar, valorar e transferir bens e objetos a outros órgãos” (OLIVEIRA, 2012, p. 7).
17
A RUMO apresenta em sua página institucional uma política de sustentabilidade, mas em nenhum
momento relaciona tal questão com o Patrimônio Industrial Ferroviário: “Queremos ir cada vez mais longe.
E para colaborar com o crescimento do Brasil, estamos investindo em Environmental, Social and
Governance (ESG), assumindo o papel de protagonista na logística brasileira e oferecendo uma matriz de
transporte sustentável para o setor. O primeiro passo para essa realização foi dado em 2020, quando
divulgamos os nove compromissos para o desenvolvimento “verde” da companhia. Seguimos com a
atualização da nossa matriz de materialidade e agora identificamos mais dois compromissos, que também
estão correlacionados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das
Nações Unidas (ONU). Todos o alinhados aos Nossos Valores e Metas e que, uma vez em prática,
conseguem contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais ética e igualitária.
(SUSTENTABILIDADE, 2022).
Indústria, Inovação e Infraestrutura e a ODS 11 Cidades e Comunidades Sustentáveis
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015). Assim, ao negligenciar um tratamento
mais cuidadoso com seu Patrimônio Industrial, empresas deixam de ter acesso às
informações de sua cultura organizacional, ponto relevante em propostas de políticas
organizacionais de sustentabilidade, que auxiliam a esclarecer iniciativas esquecidas
ou não declaradas, que podem ter deixado heranças não tão positivas, mas que devem
ser trabalhadas e repensadas em um contexto de mudança em favor de uma gestão
sustentável.
O descaso de parte dessas memórias ficou claro, por exemplo, no
desconhecimento do relevante papel dos trabalhadores subcontratados nas empresas
ferroviárias paulistas, salientado graças à pesquisa de Ana Lanna (2016, p. 516), ou outras
mais assertivas, como a diversidade e a especialidade dos modos fazer ferroviários de
tais funcionários por muito tempo esquecidos e destacados na pesquisa de Aline Zandra
Vieira Bartcus (2012). Práticas que, segundo a pesquisadora podem identificar a
formação de uma “identidade ferroviária”, construída a partir da “fusão do trabalho com
as atividades cotidianas, fossem [elas] sociais ou culturais (BARTCUS, 2012, p. 120).
18
Assim, de acordo com a proposta metodológica criada para a pesquisa, tais memórias
(mesmo que representem questões delicadas do passado) não devem ser abandonadas
pelas empresas que a herdaram, pois podem auxiliar na resolução de algumas de suas
demandas no presente, como, por exemplo, a implantação de uma gestão organizacional
sustentável.
Por isso, acredita-se que essas práticas destacadas não devem ser apenas
conhecidas, mas também, a exemplo das pesquisas citadas, desveladas e
problematizadas, para que possam contribuir para que as empresas, superando
equívocos do passado, empreguem programas de uma gestão empresarial diferenciada,
focando em atitudes, como: a diminuição de emissão de CO2 a fim de diminuir efeitos
climáticos (ODS 13), o incentivo de um desenvolvimento econômico com a produção
visando consumo sustentável (ODS 12) e melhores condições de trabalho, com vistas ao
desenvolvimento social (ODS 8).
Foram consultadas ries documentais na APESP (Arquivo Público do Estado de
São Paulo), no CMU (Centro de Memória da Unicamp) e, principalmente, no Museu
Ferroviário de Jundiaí, nas quais encontrou-se informações sobre a administração e
18
Nesse sentido Bartcus (2012, p. 120) salienta que “em sua maioria, os trabalhadores moravam muito
próximos as empresas (as vilas ferroviárias), e além disso, não são difíceis de encontrar registros de
festividades destinadas aos ferroviários, ou então clubes da categoria e as próprias escolas
profissionalizantes, enfim uma quantidade de espaços culturais em que se reuniam, além é claro dos
próprios sindicatos”.
funcionários da Companhia Paulista. Informações que ajudaram a evidenciar a história
dos trabalhadores da instituição, sujeitos históricos quase sempre invisíveis quando se
pensa na preservação, resgate e divulgação da sua memória organizacional e do seu
Patrimônio Industrial. A partir do contato com parte de tal documentação, notou-se a
existência de um rico manancial de informações referentes não só ao mundo do trabalho,
mas ao cotidiano, militância política e demais práticas interligadas à memória da história
ferroviária paulista, iniciativas ainda pouco abordadas pelos núcleos de memória, como a
do próprio Museu Ferroviário de Jundiaí.
19
A situação não é diferente do outro lado do Atlântico, pois em Portugal os
chamados caminhos de ferro surgiram a fim de dotar o Estado de um aparelho de
transportes mais rápidos e de maior eficiência, haja visto que até a segunda metade do
século XIX, “os eixos fundamentais dos transportes portugueses eram constituídos pela
cabotagem na orla marítima e pela navegação fluvial” (SERRÃO, 1962, p. 269). As
ferrovias seriam o jeito mais rápido de atrelar Portugal ao resto da Europa, como
também, retomar o protagonismo do porto de Lisboa por intermédio das ligações
ferroviárias, em relação ao embarque para as viagens atlânticas (MACEDO, 2019, p. 11).
Assim, pode-se dizer que da mesma forma que no Brasil, as ferrovias tiveram em
Portugal um grande impacto econômico, social e cultural. No entanto, mesmo tendo um
órgão responsável pela preservação de tal Patrimônio, seus impactos sociais, ainda, são
pouco detalhados nas atividades de divulgação e preservação da memória ferroviária da
CP.
20
Na página institucional “Cultura Ferroviária” existe uma aba denominada
“História”. Ao clicar no link “Antigos membros”, encontramos um banco de dados com
biografias de funcionários da empresa, acompanhadas de suas fotografias (PORTUGAL,
2023a). A questão é que os funcionários estão representados pelos seus Presidentes e
não nenhuma menção aos demais trabalhadores e trabalhadoras de mais de cem anos
de instituição. Outro ponto notado na pesquisa é que nesse mesmo banco de dados, nas
19
Após um processo de revitalização o Museu Ferroviário de Jundiaí foi reaberto em setembro de 2022,
com o nome de “Expressa”. Notou-se que por mais que houvesse um esforço de que, através de uma nova
exposição, pudesse dar voz aos trabalhadores, principalmente nas denominadas “estações interativas”
(como por exemplo a simulação de como era o trabalho de um engraxate), a narrativa expográfica
mantinha, ainda, o foco numa leitura conservadora, calcada nos bens materiais móveis e imóveis, ou na
ligação com nomes da líderes da política internacional do passado, com o propósito de entender como
enxergaram a empresa ferroviária. O lugar dos trabalhadores como sujeitos históricos desse passado
ferroviário é até mencionado, mas em papel secundário. Desta forma, é possível afirmar que o
protagonismo continua restrito aos bens materiais e a uma narrativa acerca da história ferroviária datada e
marcada por um discurso de grupos sociais dominantes. Conferir a página institucional do Museu
ferroviário. Disponível em: https://cultura.jundiai.sp.gov.br/espacos-culturais/museu-ferroviario/. Acesso
em 03 fev.2023.
20
“Com a criação da Fundação Museu Nacional Ferroviário Armando Ginestal Machado, pelo DecretoLei
38/2005, de 17 de fevereiro, a CP, enquanto membro fundador, transferiu para ali a gestão e preservação
do património histórico cultural ferroviário português - exposto nos dez espaços museológicos que
mantinha abertos ao público e preservado em depósitos vários, composto por veículos, iconografia diversa
- e documentação(PORTUGAL, 2005b).
galerias de fotos da “Cultura Ferroviária”, fica claro que a ideia que se tem de Patrimônio
Ferroviário es ligada profundamente aos bens materiais, pois das cinquenta e nove
fotos apenas uma, nomeada: “Interior de Posto de Manobra e Encravamento de Agulhas”,
apresenta um trabalhador, mesmo assim sem identificação (PORTUGAL, 2023a).
O conteúdo de uma narrativa institucional excludente e conservadora é também
notada na pesquisa dos bancos de dados dos fundos documentais do Arquivo da CP, nos
quais, pelo que se pesquisou, apenas dois tratam de trabalhadores, os fundos privados
doados pelo próprios agentes: António da Silveira Bual (1855-2000), engenheiro chefe do
serviço de Tração e Eletricidade, que, em 1944, foi promovido a subdiretor e, em 1949, a
diretor da CP; e Augusto Cerveira (1934-2003), nomeado engenheiro adjunto no Serviço
de Material e Tração em 1947, que passou para os quadros da CP nos serviços de
Oficinas, Material e Tração, onde foi diretor. (PORTUGAL, 2005b). Nota-se que a grande
massa de operários, trabalhadoras mulheres, maquinistas estão perdidas e caladas
dentro do que a empresa considera “Patrimônio Ferroviário”. O que obscurece parte da
história social e cultural dos chamados “caminhos de ferroportugueses, encapsulando
seus sujeitos, suas práticas, tensões de ordem étnico-raciais, de gênero e classe nos seus
bens materiais ou sob a supremacia de seus dirigentes. Algo que não contribui para
projetos da ordem da sustentabilidade, pois impossibilita ter acesso a um campo da
memória, que temos que acessar se quisermos abordar historicidade e a pluralidade das
práticas que marcaram e talvez ainda persistam, de alguma forma, na cultura
organizacional de tais empresas e que, por isso, compõem, mesmo que
involuntariamente, parte do seu Patrimônio Industrial.
O pior, nesse sentido, é que a banalização de tal caldo de cultura organizacional,
contribuiu para que parte dele tenha sido, mesmo inconscientemente, naturalizado e
materializado em práticas que acabaram se tornando falsos hábitos adquiridos, o que se
pode perceber com a falta da devida valorização à cultura trabalhadora, o que ocorre até
hoje na organização, como se pode apurar na investigação a partir dos bancos de dados
referentes aos fundos e coleções da CP.
Assim, se um compartilhamento atlântico de uma cultura ferroviária ampla
entre os dois países, a sua negligência e subutilização para fins de divulgação,
preservação e políticas sustentáveis também são pontos agregadores entre as
organizações de Portugal e Brasil. Diante disso, enxergar e revisar tal Patrimônio
Industrial Ferroviário pela lente das práticas culturais, experiências e memórias,
prescinde de um olhar crítico ao passado e em relação às heranças mantidas, mas além
disso, também, daquelas deliberadamente esquecidas, a fim de abandonar, mudar ou
adaptar processos seculares de exploração, marginalização social, produção, consumo e
de outras atividades humanas que colaborem para o desequilíbrio social, ambiental e
econômico da atualidade.
Primeiros Resultados e Ponderações Finais
Dentre várias iniciativas alcançadas após a aplicação do método criado, destaca-
se a identificação de um grande potencial de musealização (salvaguarda, preservação e
difusão-comunicação) de bens e práticas culturais nas empresas ferroviárias dos dois
países. Tais iniciativas apresentam mais similaridades que diferenças em ambos os lados
do Atlântico, o que possibilitou definir a ideia de uma “cultura ferroviária atlântica”.
Alguns pontos em comum encontrados após uma primeira análise da cultura
organizacional das instituições foi a ênfase dada à monumentalidade dos bens edificados,
dos bens móveis e de práticas culturais ligadas à gestão executiva. Por outro lado, notou-
se que a cultura dos trabalhadores manuais, as tecnologias, as relações sociais, dentro e
fora das empresas ferroviárias, situações de grande impacto nos dois países, não são
valorizadas e estão pouco evidentes nos vários suportes de memória das empresas.
Mesmo assim, a partir do método proposto foram encontrados os primeiros resquícios
de experiências, práticas e culturas de tais grupos. Informações que não estão evidentes,
mas, sim, diluídas na documentação escrita, tridimensional, oral e demais fontes
documentais das empresas. Deve-se destacar que a prática investigativa se encontra em
fase inicial e, futuramente, tais evidências serão sistematizadas (transcritas no caso das
entrevistas orais) e devidamente armazenados, a fim de construir instrumentos de
pesquisa, como, por exemplo, inventários e bancos de dados. No entanto, é possível
afirmar com clareza que tais práticas estão intencionalmente olvidadas e outras ainda
serão esquecidas, pois não são declaradas e, muitas vezes, deliberadamente ocultadas. O
que nos permite algumas conclusões preliminares, como, por exemplo, que tais
instituições não enxergaram, ainda, o potencial de divulgação e preservação dessas
iniciativas, por isso temem exteriorizá-las. De acordo com tal visão panorâmica busca-
se, ainda na pesquisa, por meio do todo adotado, evidenciar que se tais práticas
fossem desveladas, ajudariam a enxergar e compreender seus impactos no passado e
seus reflexos no presente, possibilitando, a partir de adequações, melhoramentos e/ou
abandonos, traçar metas para buscar um crescimento produtivo e econômico inteligente.
Nesse caso, o intuito é que o método possa se tornar algo além de um mero
instrumento de pesquisa e tenha também uma função prática em reduzir o impacto da
reestruturação produtiva de tais instituições, podendo, assim, auxiliar na antecipação de
possíveis problemas gerados por práticas introjetadas, mesmo que inconscientemente,
na cultura organizacional das empresas e que foram permanentemente normatizadas ao
longo dos tempos. Assim, acredita-se que tudo isso pode ser facilitado por meio de um
diagnóstico e de recolhimento de informações advindas da implantação ou adequação de
um organizado espaço de memória empresarial que vise a preservação, guarda,
classificação e difusão da cultura organizacional das instituições.
Para tanto, é objetivo delinear, como parte do produto da investigação, propostas
de implantação e ou melhoramento de lugares de memória ferroviária para ajudar a
difundir as atividades de tais instituições ao longo da História, bem como as múltiplas
possibilidades de, a partir daí, adotar programas de sustentabilidade. Além disso,
pretende-se também fazer sugestões de atividades de cunho educacional, pesquisa e
extensão a fim de debater o polêmico tema que virou campanha na Europa, ou seja,
voltar a priorizar a mobilidade por meio de trens ou comboios, pois trazem menos
impactos ambientais que as turbinas dos aviões. Além disso, também a sugestão de
investimento em “turismo sustentável” a partir de processo de musealização do
Patrimônio Cultural e do ambiente (cidades, bairros, vilas) em que estão inseridas as
empresas.
21
Um dos programas propostos baseou-se em recuperar adequadamente os
bens culturais de tais espaços a fim de incentivar tal tipo de turismo em destinos, que,
muitas vezes, não são os pontos de atração mais ilustres dos países, mas que, também,
têm muito a oferecer e receber, ou seja, destinos turísticos não convencionais, pouco
visitados e que podem auxiliar a divulgar a marca da empresa e seu trabalho e, em
contrapartida, trazer novas alternativas de ganhos econômicos e de desenvolvimentos
sociais, culturais e na infraestrutura interna das próprias cidades, bairros ou vilas.
Nessas propostas destaca-se atividades que cooperem, também, com o turismo
regenerativo, uma nova conceituação que visa incentivar a atividade turística com o
melhoramento do destino visitado, como, por exemplo, estimulando a escolha de museus
e hotéis que direcionem parte do lucro para avanços sustentáveis de tal ambiente e
comunidades específicas.
22
Tudo isso nos possibilita a pensar em um projeto de
“Turismo Cultural Atlântico Ferroviário Regenerativo”, que vise, também, refletir formas
das empresas e instituições contribuírem para um turismo internacional Brasil-Portugal
sustentável, a fim de divulgar culturas regionais de ambos países e contribuir para o
21
Utiliza-se o conceito de turismo sustentável usado no “Plano de Ação para o Desenvolvimento do
Turismo em Portugal para o período de programação comunitária 2014-2020”, que teve como sua principal
caraterística não o “mero apelo aos visitantes externos, mas sim uma política para a implantação de uma
estrutura que pudesse receber o turista de forma sustentável, beneficiando, também, o desenvolvimento
social interno” (JESUS, 2020, p. 103-104).
22
O conceito de turismo regenerativo pode ser definido pelo fato de viajantes e empresas não
prejudicarem o planeta com o deslocamento turístico, pelo contrário, compensarem os danos causados
(através de programas de neutralização de carbono, por exemplo), e promoverem melhorias na e para a
comunidade visitada e inclusive gerando formas de recuperar o Patrimônio Cultural e ecossistema local, ou
seja, tornar um lugar melhor do que ele era antes.
desenvolvimento do espaço e da sociedade que recebem tal fluxo turístico. O que difere
muito da ideia de “turismo de massa”, marcado pelo consumismo e fetichismo dos bens
culturais.
23
Outra atividade a ser referenciada foi o início da criação de um tipo específico de
plataforma digital, um blog com landing page, que é, basicamente, uma página de
cadastro para receber e ter acesso à webinars, por meio da qual também pretende-se
aproveitar para obter dados úteis de seus visitantes para investigação e divulgação da
pesquisa por meio de cursos e palestras, a fim de dialogar com a comunidade a partir do
conceito de História Pública. Nesse caso, depois de pronta a página, o objetivo é que se
torne um dos instrumentos da pesquisa quantitativa ou qualitativa e tenha uma dupla
função, ou seja, a partir das conceituações de História Pública, se torne um espaço de
compartilhamento, gestão de resultados da pesquisa e um local de engajamento de
cidadãos, sociedade civil e usuários finais, podendo ser utilizado como um ambiente
auxiliar de construção do conhecimento histórico. No que se refere à difusão acadêmica
é importante frisar que tal plataforma visará também possibilitar o diálogo com os pares
acadêmico sem busca de troca e difusão de conhecimentos.
Através de tais iniciativas realizadas, pode-se confirmar a hipótese que o
Patrimônio Industrial, a meria e a cultura institucional devem ser compreendidas
como conceitos que irão balizar a construção de instrumentos de recuperação
(inventários, sistemas de informação, bases de dados repositórios digitais) e manutenção
de informações com vistas à organização e à gestão organizacional sustentável, sendo
essencial para produção do conhecimento, inovação, tomadas de decisões e mudanças. O
que justifica a proposta de ter criado um método de pesquisa, calcado não na
identificação, descrição e preservação de tais bens ferroviários edificados e escritos,
como também, na identificação das mais diversas experiências ocorridas no passado
institucional de cada empresa, informações que, por sua vez, estão presentes nos
documentos escritos, mas também nas memórias, nos conhecimentos tácitos e nas
demais práticas laborais ainda mantidas nas organizações. Por outro lado, deve-se estar
atento para o fato de que tais iniciativas também vão se desenvolver na atualidade,
momento marcado pela realidade política econômica neoliberal e o processo de
globalização, na qual o consumismo passou a ser a iniciativa definidora de quase tudo, o
que obviamente contribui para a fetichização do bem cultural. Assim, ao mesmo tempo
em que os contornos da pluralidade se aplicam à patrimonialização, os bens culturais,
23
A ideia de turismo de massa adotada aqui é aquela referente às práticas que se apropriam dos espaços
turísticos, principalmente ligados ao turismo cultural, para fins especificamente fetichistas e
mercadológicos (PEIXOTO 2017, p. 218-219).
mesmo aqueles que conceituamos como parte de uma cultura ferroviária atlântica,
tornam-se cada vez mais mercadológicos.
Tais questões foram evidenciadas quando se aprofundou a investigação sobre a
relação entre corporações e sua memória empresarial, notando-se, nas empresas
visitadas, que ao buscarem salvaguardar sua cultura, muitas vezes, acabaram por torná-
la, unicamente, produto para consumo. Por exemplo, notou-se em trabalhos de campo
em Portugal, casos em que o Patrimônio Industrial Ferroviário material e imaterial foram
utilizados em projetos de turismo de massa que, em última instância, concretiza a ideia
de fetichização do Patrimônio e “a espetacularização dos lugares” (URRY, 2001, p. 208).
Situação que ganhou ainda mais espaço a partir do momento em que as pessoas
começaram a ter mais mobilidade com o meio de transporte, rapidez e comodidade que
proporcionou o gosto pelas viagens como utilidade de lazer (CARMONA, 2012, p. 39-40).
Por isso, não se deve descartar o risco que após o processo de desenvolvimento de
propostas por meio de preservação, musealização e de restauro desse Patrimônio
Industrial, este seja apropriado como mercadoria, deixando-se de lado o
comprometimento com a história, a memória e o desenvolvimento sustentável.
Nesse sentido, questiona-se se essas empresas estarão interessadas em dar esse
adequado tratamento e valor ao seu passado por meio de seus bens culturais? A resposta
recebida até então é que depende como tal proposta é apresentada em cada organização,
situação que varia de acordo com a própria cultura empresarial. Iniciativa delicada, pois,
além de morosa e tecnicamente muito especializada, têm o objetivo de reparar erros do
passado e demonstrar para a sociedade que suas práticas refletem ações compatíveis
com novos valores da atualidade. Tal prática mexe nas feridas de outrora, que, muitas
vezes, são evitadas de serem lembradas e, na maior parte das instituições, prefere-se
que se percam no esquecimento. Por outro lado, elas também têm potencial de
reverberação em 2023, pois, no Brasil, o Decreto 11.245 de 21 de outubro de 2022, foi
editado a fim de tratar “da organização do transporte ferroviário e do uso da
infraestrutura ferroviária em território nacional, de forma a possibilitar novas
oportunidades de investimentos” (BRASIL, 2022). em Portugal, desde 2021,
sistematizou-se um Plano Nacional Ferroviário com a expectativa que possa entrar em
vigor em 2023.
Por tudo isso, na verdade, notou-se, com a pesquisa, que esse processo deve ser
pensado de acordo com uma proposta de iniciativa integrada que articule políticas de
caráter ambiental, social, econômica e cultural em perspectiva internacional atlântica.
Um desafio quando se trata do Patrimônio Cultural Industrial ou de bens culturais
ligados às empresas transnacionais que têm como principal meta o sucesso econômico.
Mas nenhuma outra realidade é possível, por isso, deve-se prezar por uma conjunção
harmoniosa entre preservação/musealização integrada do Patrimônio Cultural Industrial,
sua divulgação e função social, e a contrapartida econômica de tal operação. Nesse
sentido, a preservação e a restauração de suportes de memória em empresas ligadas ao
Patrimônio Ferroviário Industrial, assim como o olhar crítico para o passado sob a
perspectiva do esquecimento, podem auxiliar tais instituições a se reposicionar dentro
de uma nova realidade e a retomar sua razão de ser na contemporaneidade, ou seja,
concretizar e/ou promover a evolução da comunidade em que está inserida, não apenas
sob o aspecto material, mas também moral, social e ético. A questão econômica será,
nesse sentido, um destino automático de tal processo e não deve obscurecer o fato que o
desenvolvimento sustentável tenha como principal objetivo deixar para a humanidade
vindoura a herança recebida de nossos antepassados. Proposta que foi
demasiadamente criticada, pois, para alguns, o desenvolvimento atendia aos interesses
do mercado, relegando à questão social o papel de coadjuvante de todo processo.
Assim, com a urgência dos novos tempos, as corporações empresariais, como
aquelas ligadas ao transporte, têm que assumir a grande responsabilidade do momento,
ou seja, o incentivo e o apoio de uma pauta de desenvolvimento sustentável que
contribua com a preservação do planeta, o que faz com que o estudo crítico do
Patrimônio Industrial Ferroviário e da cultura organizacional empresarial deixe de ser
uma escolha e se torne uma necessidade.
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