A História dos Transportes é uma daquelas variedades temáticas da historiografia
com tamanha amplitude que pode fornecer objetos de pesquisa nos mais variados campos
e com a potência significativa de uma vasta tradição em que se encontram trabalhos
fundantes da Ciência Histórica. Entretanto, a temática segue renovada em enfoques,
recortes, fontes e métodos com alto valor explicativo e interpretativo ante às questões
suscitadas em nosso tempo.
Hoje, o ser humano pode se deslocar com frequência, velocidade e conforto
inéditos. Enquanto o turismo espacial” torna-se realidade e os capitais circulam
fisicamente com desenvoltura aprimorada pela tecnologia, massas de seres humanos têm
a experiência prejudicada no deslocamento de si, de suas coisas e ideias. Reforça-se,
portanto, os transportes como questão quando se constata a latência da presente
contradição: vivemos em sociedades constrangidas e desmotivadas, quando não,
simplesmente, impedidas de circular e usufruir de forma qualificada, social e
ambientalmente responsável, dos meios e infraestruturas de transportes produzidas,
operacionalizadas e preservadas pelo seu próprio trabalho. E isto torna-se ainda mais
evidente quando os deslocamentos (ou a simples tentativa) extravasam as fronteiras
nacionais. Os trabalhos em História dos Transportes têm uma valia ímpar para a
demonstração de realidades distintas, a partir das quais os nossos problemas podem ser
recolocados, mas, também, pesquisam objetos que alcançam o presente e tem importância
explicativa sobre os acúmulos e problemáticas atualmente encontrados.
O dossiê que organizamos em Faces da História atraiu e reúne os resultados em
forma de artigo da produção científica mais recente que encontram diálogo com os
transportes em perspectiva histórica no trânsito e a mobilidade de pessoas, objetos
materiais e ideias, bem como na construção social, política e econômica de suas condições
materiais, organizacionais e institucionais. Em nosso dossiê, sobrelevam-se estudos
monográficos sobre algumas ligações que se tornaram experiências pioneiras para o
deslocamento do ser humano pelo espaço. A correlação da criação dos meios de
transporte com o desenvolvimento dos sistemas de mobilidade encontrou ampla gama de
enfoques temáticos que puderam se centrar em aspectos sociais, políticos, econômicos,
culturais ou simplesmente encontraram uma intercessão entre estes.
Na proposta do dossprocuramos aqueles estudos e pesquisas que contribuíssem
para a historiografia na necessária tarefa de farejar o humano, da singularidade do
indivíduo à multiplicidade das coletividades, se deslocando, mantendo e adaptando ou
radicalmente transformando as condições objetivas e subjetivas de seus transportes.
Originalmente, abrimos os recortes cronológico e espacial sem delimitação exata
embora houvesse certa preferência por aqueles trabalhos com o recorte no Brasil, no todo
ou em partes ; os trabalhos que recebemos reafirmam recente tendência da temática
em todo mundo e concentram-se na contemporaneidade (séculos XIX e XX), formando um
conjunto que pode ser identificado espacialmente na Lusofonia, com artigos sobre o Brasil,
Portugal, Angola e Moçambique, bem como suas conexões atlânticas.
Entendendo a relação dialética entre tempo e espaço, objetivamos não apenas
reunir trabalhos que tratem da experiência e resultados do deslocamento humano, mas,
também, que enriqueçam o conhecimento sobre as sociedades pretéritas que criaram
meios e estabeleceram sistemas de transporte relevantes para sua circulação e
reprodução, com resultados que nos alcançam no presente. Para tanto, em termos modais:
selecionamos quatro textos sobre rodovias ou sobre o rodoviarismo no Brasil; três textos
sobre ferrovias e/ou patrimônio ferroviário; dois textos sobre aviação comercial e
aeroporto; e um texto sobre transportes terrestres urbanos, que ultrapassa a divisão entre
modais. A bem dizer é, de fato, um dossiê que privilegia uma história dos projetos,
execuções e funcionamentos de ligações de média e longa distância, sendo urbano por
exceção e nas reflexões sobre as infraestruturas terminais, especialmente sobre o meio
ambiente e patrimônio que a concernem.
Os nove artigos selecionados constituem rica amostra do conjunto diverso em
temáticas e objetos que a História dos Transportes pode oferecer. Os trabalhos contam
com apoio e releitura de alentada bibliografia, refletem sobre a teoria e inovam na
interpretação dos processos históricos que abordam. Os artigos neste dossiê são, ademais,
exemplos da multiplicidade de possibilidades metodológicas e de fontes a serem
mobilizadas para História dos Transportes, sendo esta claramente instrumentalizada para
o entendimento de estruturas sociais, processos históricos e fatos de relevo que
encontram ressonância na mobilidade dos homens, suas coisas e ideias.
O dossiê é aberto pelo artigo de Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, o texto apresenta
profícuo debate sobre as possibilidades de conexões atlânticas nos estudos sobre o
patrimônio ferroviário. O autor desenraiza o conhecimento sobre o patrimônio histórico-
cultural português e o coloca em diálogo com a História dos Transportes, das empresas
ferroviárias e de sua cultura organizacional em Portugal e no Brasil; o segundo artigo é de
autoria de Luciana Maria Santiago Baldoino e chama atenção pelo objeto: a origem de uma
das pioneiras estradas de rodagem no nordeste brasileiro. O texto sobreleva a importância
da organização empresarial para construção da estrada Ilhéus-Itabuna (1922-1932) e a
situa nos debates sobre a infraestrutura para o escoamento do cacau na região de maior
produção no Brasil; o terceiro artigo é de Bárbara Braga Penido Lima e trata dos projetos,
orçamentos e da discussão política sobre a construção de ferrovias em Minas Gerais nas
primeiras décadas republicanas. Interessante é o caminho que a autora faz entre a História
Política e a História Econômica na correlação entre expectativas discursivas, perspectivas
de progresso e a execução fática da expansão ferroviária no estado; o quarto artigo é de
João Henrique Zoehler Lemos e importa da geografia conceitos e métodos de interesse
para a perspectiva histórica de seu trabalho sobre a construção do sistema de transporte
rodoviário na Fronteira Sul, abrangendo as fronteiras internacionais dos três estados da
região. Importa ressaltar que o enfoque do artigo é o transporte de passageiros; o quinto
artigo é de Cláudia Barbosa e o texto aborda uma infraestrutura fundamental para se
entender a História dos Transportes no século XX e que, ainda, é pouquíssimo explorada
pela historiografia, a saber: os aeroportos. A autora aborda a construção do Aeroporto
Internacional Tancredo Neves (Confins), na década de 1980, sob uma perspectiva que o
coloca como ordenador urbano da Região Metropolitana de Belo Horizonte e em tensão
com a unidade de conservação ambiental que o abriga; o sexto artigo é de Danilo Moreira
Leite e contextualiza o desenvolvimento do transporte rodoviário de cargas na segunda
metade do século XX, partir de um balanço historiográfico e da análise sobre a
consolidação socioprofissional dos caminhoneiros; o sétimo artigo é de Eduardo Simba
Rash e Jeremias Muachissene e centra-se na análise sobre o significados sociais do
patrimônio industrial ferroviário em Moatize (Moçambique). O texto dispõe de cartografia
e iconografia que auxiliam na leitura sobre a polissemia e significâncias úteis das estações
e linhas ferroviárias para a memória cultural coletiva na região central moçambicana; o
oitavo artigo é de Tiago Monteiro e coloca a História dos Transportes em intercessão com
a História das Relações Internacionais. O autor trabalha com a implantação das primeiras
linhas aéreas que ligavam o Brasil ao continente africano pela aviação civil regular,
centrando sua análise na atuação da South African Airways (SAA) e da VARIG, bem como
de seus estados nacionais, que ligaram o Brasil à Angola e à África do Sul; o nono artigo é
de Elvis Patrik Katz e evidencia a construção da estrada da Produção, no Rio Grande do
Sul, através dos discursos do então governador Leonel Brizola e de depoimentos orais
colhidos junto aqueles que participaram da construção e transitaram pela estrada em seus
primeiros anos, entre 1956 e 1969.
Esse número também conta com instigante entrevista com o professor Daniel
Castillo Hidalgo (ULPGC-ESP). Daniel foi orientado por Miguel Suárez Bosa, a quem
dedicamos este doss em homenagem póstuma por sua importância para o
desenvolvimento da historiografia sobre os transportes na Europa, em África e nas
Américas.
O dossque ora se apresenta é uma iniciativa inédita de Faces da História, pela
inexistência de grupos de estudos, associações ou publicações dedicadas à História dos
Transportes no Brasil, como existem em outros países, reunindo-se na International
Association for the History of Transport, Traffic and Mobility e publicando os resultados
de suas pesquisas no Journal of Transport History. Embora esteja presente nos escritos
dos primeiros historiadores e seja tradicionalmente inscrita nos grandes campos da
historiografia, a História dos Transportes acabou dispersa e conta com raros espaços de
exposição e debate acadêmico exclusivos para o seu fazer, diminuindo sua potência
reprodutora e criadora.
Enxergamos grande articulação nos estudos sobre transportes em áreas do saber
em que os historiadores poderiam dialogar, tais como a geografia, a economia, o
urbanismo, a engenharia, o direito, a sociologia e até as comunicações, mas a falta de
centralização na organização da produção acadêmica sobre a História dos Transportes no
Brasil esvazia as possibilidades de diálogo dos historiadores para além de suas cercanias
na própria disciplina. Portanto, oferecemos este dosscomo impulso no sentido de atrair
ao estudo e organizar aqueles historiadores interessados na pesquisa sobre a História dos
Transportes.
Thiago Mantuano (UESC)
Doutor em História (PPGH-UFF) e Professor de História do Atlântico no
Programa de Pós-Graduação em História do
Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (UESC)
https://orcid.org/0000-0003-1347-2018
Raphael Castelo Branco da Silva (PPGH-UFF)
Doutorando em História (PPGH-UFF) e Professor de História dos Transportes
da Pós-Graduação em História do Rio de Janeiro (IPN).
https://orcid.org/0000-0003-2434-5161