Crime, raça e cidadania: a tensão em torno de direitos por
meio da imprensa em Salvador durante a Primeira República
(1890-1930)
Crime, race and citizenship: the tension around rights through the press in
Salvador during the First Republic (1890-1930)
SOUZA, Osnan Silva*
https://orcid.org/0000-0002-7141-8696
RESUMO: Pretendo, por meio deste artigo,
analisar e apresentar como em Salvador, durante
a Primeira República, segmentos das camadas
populares majoritariamente negra fizeram da
imprensa um espaço de denúncia de
arbitrariedades policiais, como agressões físicas e
prisões ilegais. Nesta pesquisa, a imprensa é
refletida enquanto uma plataforma de disputa de
narrativas e de discursos, na qual, embora a
linguagem dominante tenha vigorado com
grande força, diversos sujeitos buscaram debater
e pôr em prática outras perspectivas, sobretudo
em relação àqueles que eram acusados de furtos,
que foram timas de ões policiais e que se
encontravam estereotipados nas páginas dos
jornais e detidos nas unidades prisionais. Trata-
se, com efeito, de um trabalho que intenta
discutir uma das formas de protagonismo negro
no pós-Abolição.
PALAVRAS-CHAVE: Primeira República; Crime;
Pós-Abolição; Imprensa.
ABSTRACT: Through this article, I intend to
analyze and present how in Salvador, during the
First Republic, segments of the popular classes
made up overwhelmingly of black people
turned the press into a space for denouncing
police arbitrariness, such as physical assaults,
theft charges, and illegal arrests. In this research,
the press is reflected as a platform for the dispute
of narratives and speeches, in which, although
the dominant narrative has been control for a
long time with great force, several subjects
sought to debate and put into practice other
perspectives, especially concerning those who
were accused of theft. These people were victims
of police actions and found themselves
stereotyped on the pages of newspapers and
detained in prison units. This is, in effect, a work
that attempts to discuss one of the forms of black
protagonism in the post-Abolition era.
KEYWORDS: First Republic; Crime; Post-
Abolition; Press.
Recebido em: 25/07/2024
Aprovado em: 28/04/2025
* Mestre em História pela Unicamp (Campinas SP). Doutorando em História pelo PPGH CECULT Unicamp
(Campinas São Paulo). Bolsista pela CAPES. E-mail: o202916@dac.unicamp.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
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Considerações Iniciais
Em 1905, de acordo com o Diário de Notícias uma pessoa conceituada dirigiu-se à sua
redação, levando consigo um jovem negro, o menor de idade Laudelino Ramos, “cujo corpo,
cruelmente seviciado, é um excelente corpo de delito contra os abusos e arbitrariedades da
nossa polícia”. Logo após a ocorrência de um furto na Baixa dos Sapateiros, localidade que
compunha o centro de Salvador, o rapaz foi preso acusado de cumplicidade e levado à unidade
policial. Durante o interrogatório, Laudelino protestou a sua inocência ao delito de que era
acusado. Ainda assim, foi posto atrás das grades, de onde foi retirado no dia seguinte para ser
“barbaramente espancado a sabre e a junco, conforme tivemos a ocasião de verificar as
muitas sevícias que o seu corpo apresenta”. Esses castigos não foram, porém, capazes de
arrancar informações ou a confissão do crime. Os policiais, então, “meteram-no em um banho
frio e, em seguida, fizeram-no voltar ao xadrez transido de dores”. Assim, durante quatro dias,
o jovem “ali ficou desventurado no mais cruel abandono, curtindo os sofrimentos do bárbaro
castigo que lhe fora infringido”, até que “uma pessoa graduada fez com que ele fosse
restituído à liberdade”. Na ocasião, o jornalista acentuou: esse ato de selvageria foi levado
ao conhecimento do chefe de polícia que, depois de contemplar os muitos ferimentos que
ostenta o corpo de Laudelino, o mandou submeter a exame médico legal e ordenou
instauração de um inquérito” (Diário de Notícias, 18 abr. 1905, p. 1).
Embora não saibamos se Laudelino teve alguma reparação na área jurídica pelo que teria
sofrido, podemos apreender que houve uma movimentação nesse sentido. Cidadãos se
movimentaram não apenas para retirá-lo da prisão, mas foram à imprensa expor o caso. Isso
evidencia que os envolvidos não se contentaram com a liberdade do rapaz; queriam justiça
social e lutar contra os abusos sofridos. É lúcido afirmar que para ir à unidade policial reclamar
a ilegalidade da prisão do menor de idade, a pessoa “graduada” fora procurada por outros
indivíduos que estavam insatisfeitos e preocupados com a situação do rapaz. Em poucas
palavras, havia uma rede social atuando contra o que considerava ser uma arbitrariedade
policial. Os efeitos da mobilização podem ser vislumbrados no título que o Diário de Notícias
deu à sua matéria “Polícia que espanca” e na abertura de um inquérito, ordenada pelo
chefe de polícia.
Na perspectiva daqueles que enfrentaram a violência da polícia (e outras problemáticas
sociais), a imprensa poderia ser um canal legítimo e eficaz, e podemos visualizar que o jornal
não apenas deu espaço às reclamações, mas criticou com seriedade as ações da polícia. Nesse
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sentido, são sustentados os argumentos da imprensa do período republicano que a punha
como uma grande aliada das classes populares (Barbosa, 2010). No entanto, as questões
históricas são mais complexas. Continuemos, portanto, com o Diário de Notícias. Em 1913,
após a ocorrência de outro furto, dessa vez no Bairro Comercial à época o centro financeiro
de Salvador , numa joalheria cujo proprietário é descrito como um conceituado negociante,
essa mesma folha glorificou a polícia por invadir locais de moradia e circulação de populares,
apontando-os como esconderijos de ladrões, além de tratar de maneira banal a prisão de uma
série de sujeitos, já postos sob suspeição:
A polícia vencendo. Continua o dr. Castro Lima em pesquisa sobre o grande roubo
da Casa Ferraz. O sr. dr. Castro Lima deu busca no botequim n. 18, ao Pilar e de
propriedade do espanhol Evaristo, nada apurando; diligência que tornou efetiva no
prédio n. 20, à mesma rua e de propriedade do espanhol Diogo, verdadeiro
valhacouto de desclassificados, gatunos e mulheres. Foram presos sete indivíduos.
Estes indivíduos foram recolhidos à estação da Sé, à disposição daquele delegado, a
fim de apurar-se a suspeição que sobre os mesmos (Diário de Notícias, 31 jan.
1913, p. 1).
Não é uma característica peculiar ao jornal. Podemos verificar tal movimentação em
outros veículos do período: os periódicos que denunciavam a violência policial, a situação de
miséria e fome vivida pela população de Salvador e outras mazelas sociais eram os mesmos
que convocavam (e parabenizavam) as forças policiais e outros órgãos do Estado a prender
jovens empinando pipas ou vendendo balas nos bondes, pois eram apontados como ladrões
em potencial (supostos “gatunos”); eram os mesmos que louvavam as invasões de locais de
habitação popular, caracterizando-os como esconderijos de “vagabundos” ou centro de
propagação de doenças, dentre outros estereótipos (Barbosa, 2014; Oliveira, 2020; Souza,
2023).
Pretendo, dessa forma, analisar e refletir como segmentos das classes populares de
Salvador, durante o período republicano, fizeram da grande imprensa comercial uma
plataforma composta por diversos jornais complexos e multifacetados, mas que constituía e
propagava a linguagem dominante um espaço de luta por direitos e cidadania, sobretudo
para aqueles que eram acusados de crimes contra a propriedade, que se encontravam no
cárcere (legal ou ilegalmente) e que eram vítimas das ações policiais. Para tanto, debruço-
me sobre um corpus documental constituído por alguns dos principais jornais do período: A
Notícia, A Tarde, Cidade do Salvador, Correio do Brasil, Diário de Notícias, Gazeta de Notícias,
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Jornal de Notícias e Pequeno Jornal. Encontramos nesse material não apenas as breves
notícias, mas artigos de opinião, depoimentos, queixas, reclamações, imagens, ilustrações,
charges, cartas, fragmentos de requerimentos e ofícios jurídicos, dentre outros elementos
que nos possibilitam a construção de uma pesquisa crítica e reflexiva.
Sabemos que a linguagem da imprensa se constituiu por uma perspectiva racista, que
estereotipava e criminalizava os trabalhos, hábitos e posturas da população negra de
Salvador (Reis, 2000). Com efeito, trata-se da linguagem dominante (Losurdo, 2010). Isso nos
exige uma análise do discurso, mas também uma leitura a contrapelo da visão que se tentava
construir concernente aos segmentos das classes populares: grupos que estariam
caminhando na contramão da ordem, da civilização, da higiene e do progresso, por isso
deveriam ser monitorados, controlados e reprimidos (Leite, 1996).
É lícito, então, que levemos em consideração as observações feitas por Petrônio
Domingues atinente ao Protagonismo negro. Para refletir sobre a postura do negro após a
abolição, o autor observou que, desde as vésperas do 13 de maio e no decorrer do século XX,
muitos intelectuais, inclusive de perspectivas antagônicas seja por uma visão abertamente
racista, seja por abraçar a linguagem dominante , acabaram por apresentar os afro-
brasileiros no sentido do “atraso”: aqueles indivíduos que teriam uma inclinação genética e
cultural ao crime e ao alcoolismo; sujeitos aversos ao progresso e à civilização. Domingues
criticou a “abordagem no plano do ‘devia ser’, na direção da normatização” e que subestima
e não apreende “a capacidade de autodeterminação dos negros, bem como os significados
polissêmicos das diferentes experiências históricas” (Domingues, 2019, p. 9-16). O historiador
enfatiza que, mesmo em condições desfavoráveis, os negros procuraram “elaborar e
reelaborar seus próprios mecanismos de sociabilidade, política, cultura e lazer, a partir de
distintas racionalidades, lógicas e possibilidades”. Somos chamados, portanto, a uma análise
mais crítica, a partir do ponto de vista mais plural e analítico, na qual o negro é considerado o
“principal protagonista de sua história e, ao mesmo tempo, como sujeito histórico, que
contribuiu para a produção de narrativas” (Domingues, 2019, p. 121).
I
muito os historiadores têm dado grande atenção à imprensa brasileira, sobretudo
entre a segunda metade do século XIX e a primeira do XX. A partir de múltiplas perspectivas e
metodologias e com enfoques distintos, os pesquisadores apontam a atuação (através) da
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imprensa no cenário político, social e econômico. Embora haja muitas percepções conflitantes
em relação a essa plataforma de comunicação, parece haver um certo consenso atinente às
transformações sofridas pelos jornais a partir do final dos oitocentos e no decorrer do século
XX (Sodré, 1966; Barbosa, 2010).
Algumas dessas mudanças podem ser verificadas na atenção dada pelas folhas a
determinadas temáticas. Em Salvador, por exemplo, surgiram e se intensificaram colunas
como “crônicas das ruas”, “trabalhadores”, “queixas e reclamações”, “a gatunagem”,
“desordem”, “como eles operam”, “com a polícia”, etc. Jornais como o A Tarde, A Capital, A
Notícia e Diário de Notícias dedicaram longos artigos e estamparam diversas fotografias de
indivíduos das camadas populares nas primeiras páginas. O profissional (já chamado de
repórter) ia às ruas e às feiras entrevistar trabalhadores ambulantes e consumidores; cobria
greves e tensões entre patrões e empregados, visitava delegacias com o objetivo de ouvir os
reclusos e delegados. Em poucas palavras, os jornalistas passaram, de maneira cada vez mais
veemente, a participar do cotidiano popular da cidade de Salvador. Essa incursão no mundo
das ruas (bem como no mundo do trabalho, ou em bares, presídios, etc.) dava-se, muitas
vezes, de modo ambíguo: ao mesmo tempo em que concediam a palavra aos grupos
subalternos, os periódicos os apresentavam sob a ótica do atraso civilizacional os
responsáveis pela propagação de higiene, devido à falta de higiene; aqueles que tinham uma
inclinação à criminalidade e à desordem; sujeitos cujo trabalho e divertimento se
configuravam um obstáculo ao progresso, por isso deveriam ser alvos de repressão policial
(Barbosa, 2014; Oliveira, 2020; Souza, 2023).
Longe de se configurarem como uma plataforma democrática, na qual todas as
perspectivas tiveram as mesmas oportunidades, os jornais foram espaços de discursos
multifacetados e até conflitantes. Um único veículo poderia constituir-se em uma esfera de
disputas, tanto externas quanto internas. Além das posições de diferentes figuras públicas que
podiam expor as suas ideias, a publicação de um jornal demandava o trabalho de vários
profissionais capazes de “encaminhar de maneira aberta ou encoberta suas próprias posições
diante do jogo político”, ainda que precisasse “interagir com as posições dominantes” (Barros,
2019, p. 275). José D’Assunção de Barros (2019, p. 275) aponta para os periódicos como
“instrumentos e campos de lutas, conjuntos polifônicos formados por muitos textos” uma
produção multiautoral, na qual diversos autores tentam se comunicar com diversos leitores.
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Trata-se de um fenômeno que pode ser registrado em outras cidades do Brasil. Ao
examinar as relações entre a imprensa carioca e os trabalhadores na República, Leonardo
Pereira rechaçou a movimentação que aponta os jornais apenas como propositores de um
discurso pedagógico que tentava controlar e disciplinar os trabalhadores”. O autor argumenta
que as condições históricas impossibilitaram que o jornalismo tivesse uma posição apenas de
criminalizar as manifestações populares. Havia uma forte atuação por parte da classe
trabalhadora para assumir um protagonismo maior nas páginas e, além disso, os empresários
almejavam aumentar os seus lucros por meio das vendas dos impressos. Os jornais poderiam
ver-se obrigados a adotar posições mais complexas do que a da “simples afirmação dos
interesses dos grupos empresariais que os controlavam”. A tensão entre o programa editorial
dos patrocinadores e as expectativas de grupos leitores resultaria “na polifonia que
caracterizava os jornais do período” (Pereira, 2016, p. 3).
No mesmo jornal que se uma denúncia à carestia e à fome que castigavam a população
da cidade, vê-se também um chamamento à repressão policial contra mulheres com crianças
de colo pedindo esmolas (Souza, 2019). O crime contra a propriedade ocupa um local de
destaque nessa imprensa. Tanto o volume de matérias publicadas diariamente quanto os seus
aspectos linguísticos são indícios de tal fato. Em sua avidez para conter a criminalidade,
sobretudo quando a vítima era um membro das classes mais privilegiadas da sociedade,
jornalistas tratavam com banalidade a prisão de dezenas de sujeitos, que passavam a ser
representados com um ar de suspeição, quando não eram referidos como gatunos ou
vagabundos.
Para analisar tal problemática, voltemos a um evento analisado na introdução, o roubo
à joalheria Casa Ferraz. A matéria em questão refere-se ao crime que mobilizou a polícia a
realizar diversas buscas atrás de pistas, e inquietou também outros jornais. A Gazeta de
Notícia estampou na primeira página de várias edições o título “Grande roubo ou roubo
misterioso. Um caso complicado”. Parece que alguns dos motivos que fizeram com que o
crime ganhasse grande destaque na imprensa baiana foram os fatos de ter sido levado uma
avultada soma e de a ourivesaria pertencer ao “sr. Plínio Pedreira de Couto Ferraz,
conceituado comerciante entre nós” (Gazeta de Notícias, 28 jan. 1913, p. 1; Gazeta de
Notícias, 27 jan. 1913, p. 1).
No decorrer das diligências policiais, esta folha tratou de maneira banal a prisão de três
rapazes negros João Archanjo de Oliveira, Justino de Oliveira e Pedro Bispo de Lima , presos
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e mantidos numa unidade policial a partir das ordens do elogiado delegado Castro Lima. Fora
necessária a intervenção do rábula negro Cosme de Farias, junto ao juiz da Vara Criminal,
solicitando o habeas corpus dos jovens. Dizia o requerimento: “nenhuma pessoa, em face da
legislação em vigor, pode ser presa para prestar esclarecimento à polícia, constituindo a prisão
dos ditos menores um abuso, tanto mais quanto já são decorridos 5 dias” (Gazeta de Notícias,
31 jan. 1913, p. 2).
Se porventura formos ao final da década de 1890 e nos atermos ao Jornal de Notícia, o
visualizaremos rebater as críticas feitas à polícia por aqueles que se opunham às prisões de
três menores negros José Antônio da França, Alfredo Nascimento e Lauro Cunha , após uma
professora de piano ter sua carteira furtada, quando utilizava um dos bondes que circulavam
na cidade. Depois de noticiar que os jovens estavam detidos na unidade prisional da Piedade,
centro de Salvador, o articulista argumentou com certa condescendência:
sobre essa prisão, ouvimos logo comentários “como a polícia tinha sido cruel”; “que
os meninos tinham sido presos, enquanto os gatunos adultos gozavam de
impunidade etc.”. Hoje, porém, podemos anunciar que esses menores são
responsáveis pelo furto referido, tendo o dr. Moura encontrado em poder deles a
carteira roubada, mas sem a quantia que se supõe ter sido desviada em partilha
entre os mesmos (Jornal de Notícias, 25 out. 1898, p. 1).
É possível supor que as críticas do jornalista se dirigiam a colegas ou algum indivíduo
que utilizou um outro jornal para manifestar as suas indignações contra as prisões dos
menores. Esse fato pode evidenciar a disputa de narrativas que havia na imprensa baiana. É
interessante observar que, para o Jornal de Notícias, o fato de supostamente ter se
comprovado a culpabilidade dos rapazes presos pela polícia invalida os argumentos daqueles
que se opuseram às detenções arbitrárias. O que estamos assistindo é que, para esse veículo,
a polícia tinha prerrogativa de realizar detenções sem maiores cuidados. Com efeito, é o que
segue o articulista em seu artigo:
esses larápios menores representam o triste fruto da falta de educação e cuidado
dos seus pais ou responsáveis, e que devido à mais completa ausência de
providências, eles estreiam inconscientemente na carreira do mal, adquirindo
facilmente essa prejudicial soma de maus hábitos, que a ignorância faz prender-lhes
ao espírito, impulsionando-os pela estrada da corrupção, do vício e do crime, em
prejuízo seguro na geração de amanhã (Jornal de Notícias, 25 out. 1898, p. 1).
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O autor do texto centra forças em relacionar o crime cometido pelos menores à
educação oferecida por sua família. Seguidamente, faz uma relação entre o atraso
civilizacional enfrentado pela cidade e a criminalidade. Ambos teriam uma relação de
mutualidade. Ademais, são reconhecidos problemas estruturais, como a negligência do
Estado para elaborar e pôr em práticas políticas públicas efetivas que atendam às demandas
sociais, porém essa problemática fica em segundo plano. Independentemente dos problemas
sociais, para a folha, deve a polícia agir de modo enérgico, inclusive para encontrar possíveis
parceiros desses jovens presos:
e como não ser assim, se o nosso progresso exibe-se unicamente na tolerância pelo
jogo público e na diminuição de escolas e na falta de colônias e estabelecimento de
ensino prático, etc.? Não pese isso, porém, para que a autoridade deixe de cumprir
o seu dever, procurando descobrir os aliados a esses menores, levando no
conhecimento do poder competente a necessidade de afastar-se do caminho errado,
em que vão essas crianças, a quem uma forte corrigida poderá dar ainda ingresso no
seio dos que trabalham pelo e engrandecimento da Pátria (Jornal de Notícias, 25 out.
1898, p. 1).
Esse movimento de apontar e relacionar um caso de furto a problemas estruturais que
permearam a sociedade baiana, mas logo em seguida destacar que isso não deveria invalidar
a repressão policial, pode ser detectado também em uma matéria do A Notícia, de junho de
1915. Esse jornal trouxe naquele ano em seu título a frase “A crise do estômago”, para apontar
que “Manoel Felisberto Simões é daqueles que não podem suportar a consequência da crise”,
porquanto “quando tem fome não escolhe meios”. O homem foi preso no momento em que
estaria conduzindo um furto, isto é, uma caixa de sardinhas. A breve notícia é encerrada de
maneira escarnecedora: “as sardinhas iam ser comidas e o águia foi para o xadrez” (A Notícia,
15 jun. 1915, p. 4). O veículo reconhece o problema. Este e outros impressos durante toda a
República publicaram reportagens tratando sobre a fome e a carestia que castigavam a
população de Salvador, bem como demonstrou pessoas mendigando o pão, manifestações de
trabalhadores contra a falta e o aumento de alimentos de necessidades básicas (Santos, 2001).
No entanto, o jornalista optou por não levar em frente uma reflexão crítica atinente à conexão
existente entre os dois fenômenos: o furto e a fome (Souza, 2019).
A ação de jornalistas no sentido de exigir a repressão de segmentos populares não se
deu apenas em momentos de ocorrência de crimes. Os divertimentos e as formas de trabalho
da população pobre e negra de Salvador também foram alvos. Se porventura voltarmos ao
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Diário de Notícias, o veremos anunciar que “há uma casa para qual se faz precisa a visita da
polícia devido a uma quadrilha de gatunos em promiscuidade com um bando de vagabundos
que ali dão ao divertimento das arraias, promovendo de quando em vez distúrbios” (Diário de
Notícias, 29 jan. 1913, p. 1). Nesse caso, a diligência policial deve ser feita não para fazer
buscas de algum “suspeito” ou encontrar pistas de algum crime, mas porque quem está ali se
divertindo são “gatunos”, isto é, indivíduos que cometem furtos.
Três anos depois, podemos ver mais uma vez os jovens que empinavam pipas no radar
desse mesmo jornal: “já começa a estúpida mania das arraias de que tanto gostam os
desocupados garotos dessa atrasada terra”. Nesse sentido, “[...] a polícia deve intervir para
que se acabe de vez com esse feio e pernicioso divertimento” (Diário de Notícias,16 abr. 1917,
p. 2). Inicialmente, parece que o impresso está alegando que existem gatunos, isto é, ladrões,
se divertindo com pipas, por isso há uma oportunidade de a polícia prendê-los. Todavia, esses
homens são gatunos e vagabundos justamente porque estão empinando pipas. Do mesmo
modo, vê-se que alguns anos depois, mesmo com a utilização de outro termo, desocupados,
as arraias, ou melhor, os garotos pobres divertindo-se, permanecem como um caso de polícia.
Até aqui centramos luz na linguagem utilizada pela imprensa após a ocorrência de um
furto e mesmo diante de divertimentos populares. Vejamos, então, como o discurso
criminalizador se apresentou quando a polícia não esteve à procura de suspeitos, após
ocorrência de crimes, e quando os “alvos” dos jornalistas estavam, na verdade, trabalhando.
No início do ano de 1913, o jornal Gazeta de Notícias (17 fev. 1913, p. 1) encabeçou em uma
matéria de primeira página o título “menores vendedores de bilhetes de loterias e jornais”.
Tratava-se de um artigo de opinião, no qual foi feita uma denúncia acerca do “abuso
inqualificável desses menores vendedores de jornais e revistas, balas de açúcar e bilhetes de
loteria, saltando diabolicamente nos bondes que transitam pelas ruas” (Gazeta de Notícias,
17 fev. 1913, p. 1). Assim o faziam com a pretensão “de que melhor saída darão ao seu
comércio junto aos passageiros desses veículos”. O articulista recorreu à iminência de um
furto e ao suposto incômodo causado à população para evocar a presença da força policial:
“pensamos que a ativa polícia do ilustre sr. dr. Álvaro Covas não deve consentir nas amostras
desses horríveis camelôs, os quais ficaram muito bem internados em um estabelecimento
disciplinar, se o tivéssemos”. A insatisfação do jornalista atinente ao trabalho daqueles jovens
no transporte público e o chamamento à ação policial se justificavam no argumento de que
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esses “[...] menores dos jornais, dos bilhetes e das balas passam sempre ao furto” (Gazeta de
Notícias, 17 fev. 1913, p. 1).
O que podemos vislumbrar é que o furto constitui, muitas vezes, uma retórica para exigir
controle social (e racial) e repressão. Se diante de tal crime, os periódicos sentiam-se à
vontade para banalizar prisões arbitrárias, na sua ausência, recorre-se à suposta iminência: as
brincadeiras e mesmo as atividades laborais deveriam ser reprimidas, porquanto seriam um
estágio para o ataque à propriedade alheia. Os jornais que compunham a grande imprensa
buscaram levantar barreiras entre pobres e negros e o acesso à cidadania. As ações, moradia
e formas de vida desses sujeitos foram criminalizadas de maneira sistemática. Na análise da
última fonte, visualizamos a própria Gazeta de Notícias alegar que os supostos incômodos
causados pelos menores advinham de seus esforços para comercializar o seu material
vinham de suas atividades laborais. Percebemos, portanto, que a imprensa de Salvador tinha
uma grande disposição para criminalizar as ações dos jovens negros. O seu trabalho, o seu
lazer e outras manifestações deveriam ser repreendidos, porquanto já seriam criminosos em
potencial. Tal linguagem evidencia o racismo que permeou nos periódicos de Salvador durante
a república.
Hostil era o modo como os jornais abriam e discorriam essas reportagens: “um covil de
desclassificados” é o título que a Gazeta de Notícia deu à sua matéria, em setembro de 1912,
na qual ovacionou a invasão policial num prédio frequentado por um público de baixa renda
no Cais Dourado, distrito do Pilar. Para a Gazeta, “a polícia age com segurança e acerto”,
porquanto foram realizadas prisões de onze homens “suspeitos”, “dentro os quais
reconhecem imediatamente quatro gatunos reincidentes” (Gazeta de Notícias, 27 set. 1912,
p. 2). Tratava-se de uma pensão, de propriedade de um espanhol, a qual muitas pessoas
poderiam dormir pagando uma pequena quantia. Na noite da incursão, cerca de quarenta e
cinco indivíduos dormiam no local todos foram apontados como suspeitos pela polícia e pela
imprensa. Escreveu o jornalista:
aquele prédio é uma verdadeira estalagem, em miserável estado de asseio, sendo
que os indivíduos dormem pelo chão em esteiras de tábua, em promiscuidade com
aleijados e enfermos. O referido espanhol Diogo de tal, que explora o lenocínio, foi
intimado a não continuar em semelhante crime, sendo necessária a visita da higiene
do Estado àquele pardieiro que constitui séria ameaça à saúde blica. Os presos
foram recolhidos ao posto policial da Sé, à disposição do sr. dr. chefe de polícia
(Gazeta de Notícias, 27 set. 1912, p. 2).
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Observemos como a imprensa apresenta a suposta insalubridade do ambiente como um
elemento de justificativa para as prisões, como se uma política sanitária estivesse
intrinsecamente ligada ao cerco de pensões populares e à detenção de dezenas de indivíduos.
Ignora-se completamente a situação socioeconômica da população de Salvador, o número
expressivo de moradores de rua, negligências do governo, dentre outras problemáticas sociais
e políticas, outrora abordadas pelo próprio jornal. As garantias teóricas das quais falara
Cosme de Farias são completamente vilipendiadas pelas forças de segurança do Estado e
com o total apoio da imprensa, que, nesse caso, argumenta de modo feroz e exige ações mais
eficazes, criminalizando locais ocupados por populares, relacionando-os à falta de higiene e a
um esconderijo de “gatunos”. Impressiona a quantidade de suspeitos apresentados pelo
jornal: quase cinquenta. Mais de uma dezena é presa, e não aparece no periódico a imputação
de nenhum crime específico; apenas são os homens tachados de suspeitos e gatunos.
Nesse sentido, prudentes são as observações de Domenico Losurdo (2010, p. 15):
“quanto mais vaga a acusação, tanto mais fácil para sua validade se impor de modo unilateral
e tanto mais inapelável se torna a sentença pronunciada pelo mais forte”. Embora o eminente
filósofo italiano tenha centrado luz em fenômenos geopolíticos, no imperialismo
estadunidense e aliados, as suas observações sobre o uso da linguagem como um instrumento
de poder e opressão são pertinentes. Em A Linguagem do Império, somos levados a refletir
como categorias vagas, como terroristas, fundamentalistas, extremistas e outras, vêm sendo
utilizadas ao longo da história para legitimar invasões de países, prisões e massacres de
diversos povos.
Durante o início do período republicano, Salvador vivenciou uma série de reformas
urbanas, sobretudo a partir de 1912, durante a gestão estadual de José Joaquim Seabra (1912-
1916) (Silva, 2013). Os periódicos eram a plataforma na quais jornalistas e outros sujeitos
interessados, como médicos, acadêmicos e políticos, utilizavam para enaltecer as mudanças,
demolições de edifícios coloniais, construções de novos bairros, ampliação e revitalização de
ruas, até então estreitas. Mas também eram canais usados para denunciar as contradições
dos governantes em relação a tais reformas como a falta de atenção dada aos “loucos” e a
pessoas mais necessitadas; bem como o caráter limitado das mudanças e a necessidades de
intensificar o processo e os hábitos populares, que eram apontados como grandes
empecilhos para a cidade alcançar ao grau de modernidade que se desejava (Leite, 1996).
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Embora as notícias de crimes contra a propriedade não tenham sido fruto de mero
sensacionalismo, o discurso contra a criminalidade sobretudo os ataques à propriedade
constitui-se um grande trunfo da linguagem dominante para exigir medidas de controle social
e racial. O ato de caracterizar alguém de gatuno, busca invalidar qualquer tipo de contraponto,
que o indivíduo que furta merece, na verdade, ser punido com toda a severidade da lei, e
deveria estar preso. Em seu exame sobre as tentativas de controle racial e as estratégias de
vivência e sobrevivência dos negros em Salvador, Sílvio Humberto Cunha asseverou que o
jornalismo se movimentou no sentido de firmar-se como um órgão fiscalizador e regulador da
vida da cidade, da população negra e pobre, apontando quem e o que era criminoso. Seriam
os periódicos baianos: “os olhos e as vozes das elites baianas [...] a imprensa, além de lócus
privilegiado das disputas políticas da sociedade, vai atuar como uma espécie de órgão
regulador da gente negra, da gente pobre, dos tipos da cidade, pois era através dela que se
reconheciam os tipos perigosos” (Cunha, 2004, p. 228).
Essa não é uma percepção peculiar aos pesquisadores da imprensa baiana. Em seu
Retrato em Branco e Negro, no qual uma análise acerca das representações dos negros nos
jornais paulistas durante a segunda metade do século XIX, Lilia Schwarcz demonstrou que
esses sujeitos apareciam na imprensa por meio de diversas lentes, mas sempre sob
perspectiva racista, estereotipada, estigmatizada ou subalterna. Havia “o negro das
ocorrências policiais, o negro violento que se evadiu, o negro que é centro de notícias
escandalosas”, escreveu Schwarcz, “[...] o negro dependente e serviçal que é oferecido
enquanto peça de bom funcionamento ou mesmo negro objeto de discurso dos editoriais
científicos” (Schwarcz, 2017, p. 155). Em Recife, Sylvia Couceiro observou que, via de regra, os
repórteres estigmatizavam “a presença dos populares na cidade, reduzindo seu papel ao de
desordeiros, vagabundos e criminosos”. Na cidade pernambucana, o cotidiano foi
representado pela imprensa como imoral e violento. Tal cobertura refletiu as aspirações das
elites locais, como o desejo de ações policiais mais enérgicas “no sentido de coibir hábitos e
condutas considerados incompatíveis de uma cidade que crescia e se modernizava” (Couceiro,
2003, p. 231).
II
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Durante o período republicano, sobretudo nas principais capitais do país, o problema da
criminalidade ocupou grande espaço na imprensa brasileira e se tornou uma das grandes
preocupações dos governantes. Em São Paulo, Ana Gomes Porto (2013, p. 283-284), por
exemplo, enfatizou que “houve um aumento das notícias de crimes contra a propriedade a
partir de 1900” reportadas pela imprensa. Algo semelhante também se vislumbra no Rio de
Janeiro. Esse foi um dos motivos de Ana Vasconcelos Ottoni (2012) denominar a sua pesquisa
O Paraíso dos Ladrões: crime e criminosos nas reportagens policiais da imprensa entre os anos
1900-1920. Não apenas a imprensa do início do século passou a dar mais atenção aos crimes
ocorridos, mas há, com efeito, um investimento financeiro maior nas polícias, que passam por
um processo de reorganização dos seus quadros, no sentido de se tornarem mais bem
qualificadas, o que nem sempre atende aos interesses dos seus planejadores.
Até que ponto o aumento da divulgação de crimes pode ser tratado apenas como um
sensacionalismo? Em Salvador, a preocupação com a propriedade e a percepção de que era
“insuficiente o número de policiais para fazer a segurança da cidade, sobretudo à noite, fez
com que se criasse a guarda noturna, um “serviço privado de segurança pago por
comerciantes e moradores” (Barbosa, 2014, p. 65-66), principalmente os localizados no Bairro
Comercial. em 1912, quando a Guarda Civil foi criada, a instituição podia dispor de
departamentos especializados como o Gabinete de Identificação e Estatística (Oliveira, 2020,
p. 32). “Atenta ao desafio de reprimir a criminalidade numa sociedade mais complexa”,
escreve Henrique Oliveira, o “regulamento da Guarda Civil escolheu o crime de roubo sem
violência, chamado no período de gatunagem, para ser controlado pelo método da
individualização através da memorização” (Oliveira, 2020, p. 32).
Em meio à atuação da imprensa e da polícia em relação ao combate à criminalidade,
vislumbramos uma série de discursos favoráveis à repressão, os quais apontavam a
necessidade de se prevenir os furtos com prisões em massas. Por isso, via-se os jornais
divulgando com legitimidade dezenas de prisões. Diante de um furto de um relógio, por
exemplo, dez, vinte, trinta ou mais indivíduos eram detidos, sob a legenda de gatunos.
Contudo, sobretudo no que diz respeito aos menores de idade, muitos homens utilizaram a
própria imprensa para refletir acerca do estado desses jovens em contrapelo à linguagem
dominante. Vimos que o Cosme de Farias atuou para libertar três jovens negros presos sem
provas, após a ocorrência de um furto. Vejamos o que o rábula negro asseverou em relação à
situação desses pequenos rapazes e o modo como deveriam ser tratados:
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[...] dezenas de menores famintos e maltrapilhos vagam dia e noite pelos principais
distritos desta capital. É tempo de ser extinta esta desgraça, atestado cruel da incúria
dos governos que se foram. Faço destas colunas um apelo muito sincero aos
senhores deputados estaduais no sentido de apresentarem na câmara um projeto
de lei. Os menores desamparados que estão em demanda do lodaçal do crime,
palmilhando a estrada do vício, precisam ter um braço protetor que os ampare
enquanto é cedo, apontando-lhe o caminho da honra e do dever. Pelo futuro da
Bahia, senhores deputados! Pela infância desgraçada (Gazeta de Notícias, 06 nov.
1912, p. 3).
Observemos que o líder popular centra as suas críticas aos governos anteriores,
isentando, portanto, a gestão vigente. Era um homem da política, com aliados e adversários
partidários. Isso, porém, não diminui a contundência de seu apelo. Farias estava ciente da
importância social e política das folhas. Eram nesses locais que diariamente se liam denúncias
de crimes supostamente cometidos por menores, prisões de jovens acusados de furtos ou
exigência para que fossem presos antes que cometessem crimes. É por meio da própria
Gazeta de Notícias que o rábula negro destacou outra perspectiva atinente aos menores: não
se fala em repressão prévia aos futuros ladrões, mas de cuidado estrutural para que tenham
a oportunidade de usufruir da cidadania: “a Bahia carece ter, com máxima urgência, uma
Escola Correcional, onde os pequenos vagabundos tornem-se homens de bem, por meio da
instrução e do trabalho” (Gazeta de Notícias, 06 nov. 1912, p. 3).
Embora tenha feito um discurso que caminhou na contramão da linguagem
dominante, Farias não se viu solitário. O chefe de polícia Antônio Souza, ao relatar sobre “a
malta de menores vadios e peraltas, que se entrega à prática de todos os vícios, atira pedras,
incomoda os transeuntes e promove desordens de todas as espécies”, salientou que seria
“indispensável a instituição de uma colônia agrícola onde não aprendam eles a trabalhar,
como recebam uma educação regular”. assim poderiam ser cidadãos de família, “[...]
necessário[s] à pátria” (Secretaria de Polícia, 1895, p. 50).
Eloquentes são as propostas de José Gabriel de Lemos Britto. Em uma série de artigos
publicados no A Notícia em 1915, que pouco menos de uma década depois farão parte da sua
trilogia Os Sistemas Penitenciários do Brasil, Lemos Britto posicionou-se como grande
defensor de uma reforma no sistema carcerário e no Código Penal que proporcionasse aos
menores um tratamento mais cuidadoso nos âmbitos dos processos judiciais. Esses jovens,
em seu argumento (que recorria à psicologia), não têm, “mesmo quando normais, um
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funcionamento perfeito das válvulas destinadas a manter o equilíbrio das paixões e impulsos
naturais”. Assim, perguntou: “aplicar a estes [menores] as mesmas penas que visam os
homens feitos não será um absurdo?” (A Notícia, 03 mar. 1915, p. 3). Refletindo sempre a
partir de uma ideia de civilização e progresso e nos termos de uma corrente da criminologia,
apontou que o menor era um ser em formação e que precisa de amparo.
Britto desassociou radicalmente a mentalidade que resultaria nas ações infantil da
adulta. O parlamentar dizia que a sociedade poderia ver o adulto como um delinquente, pois
já teria o conhecimento das leis, as faculdades intelectuais desenvolvidas, experiência de vida
e maior facilidade de domínio sobre as paixões, exceto em alguns casos de doenças que
afetariam o cérebro, e os menores não tinham esses elementos psíquicos a seu favor. Convicto
de que eram esses sujeitos grandes vítimas das mazelas sociais do Brasil, propôs uma reforma
no Código Penal quanto à punição e à criação de um tribunal para menores com caráter
humanista e paternalista:
A. Considerar os menores até 14 anos irresponsáveis.
B. Dos 14 aos 18 empregar medidas educativas, visando sempre salvar o menor
delinquente, jamais punir.
C. Para os menores de 18 a 21 anos, determinar que o juiz tenha sempre em vista
o móvel do crime, e tanto aqui como no que refere aos menores de 14 a 18 anos,
levar em consideração o desenvolvimento intelectual do acusado, além de seus
precedentes domésticos e dos daqueles que o formaram e em cujo meio vivia.
D. Admitir para os menores a pena de liberdade fiscalizada, restrita pelo Estado de
acordo com a gravidade do caso e o caráter do acusado.
E. Retirar do júri o julgamento dos menores, dando-os a juízes ou tribunais
especiais (A Notícia, 06 mar. 1915, p. 3).
Britto criticou veementemente a ideia de punir. Educação, trabalho e amparo eram o
caminho. É interessante reparar, como já disse, o caráter paternalista imaginado e planejado
por ele em um possível tribunal para menores. O juiz seria um magistrado especializado. Um
juiz-pai: “esses juízes têm a missão de se tornarem familiares com esse mundo misterioso e
quiçá impenetrável que é a alma infantil. Será um juiz calmo, amoroso, dedicado ao seu
sacerdócio. Juiz-Pai, eis a expressão que melhor o deveria caracterizar” (A Notícia, 10 mar.
1915, p. 2). O pensamento de Lemos Brito é extremamente significativo, porquanto propõe
um projeto estruturalmente diferenciado dos argumentos e denúncias em relação aos
menores diariamente publicizados nos jornais baianos, esmagadoramente pautados na
repressão. Se Cosme de Farias fala em braço protetor, Brito, em Juiz-Pai. Ambos trazem uma
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ideia de cuidado, amparo e proteção social. Atualmente, um grande bairro de Salvador e a
penitenciária do estado da Bahia são, respectivamente, batizados com os nomes de Cosme de
Farias e Lemos Brito.
1
É possível captar discursos grandiloquentes vindos também de personagens anônimos.
Em 1920, empenhado em refletir sobre A Gatunagem no Mercado Modelo”, um articulista
do jornal A Manhã destacou que “o número de meninos vagabundos que ali fazem ponto é
extraordinário e aumenta a cada dia que passa” e apontou para a necessidade de criação de
uma escola correcional. Para o autor do texto, o fato de ter havido crianças “acomodadas com
a vida errante, roubando tudo que lhes está ao alcance das mãos” e que “crescem analfabetas
e estúpidas, porém, muito hábeis no crime e na podridão dos vícios”, “entregues ao mais
absoluto abandono e na prática dos roubos e dos furtos de todas as espécies” era “culpa do
governo que cooperou para esse resultado” podemos detectar uma evidente indignação ,
“[..] pois foi ele quem o quis, uma vez não criando uma escola, uma colônia especial, onde se
pudesse internar todos os menores delinquentes e vagabundos” (A Manhã, 09 jun. 1920, p.
3).
Igualmente contundentes são as denúncias que foram feitas pelo Correio do Brasil a uma
prática que o periódico denominou de desinfecção policial. Em um contexto no qual diversas
vozes utilizaram a imprensa para bradar por controle social, prevenção aos crimes por meio
de prisões e repressão, o articulista do referido veículo colocou-se firmemente na oposição
de se aprisionar os indivíduos e enviá-los para outras regiões do país de maneira ilegal. Se
porventura apreendermos o termo “desinfecção”, perceberemos que autor denuncia um
processo de eliminação e limpeza de determinado grupo social. As reflexões indicam que não
se tratou de um caso isolado, mas de uma série de eventos que vinha se desenrolando
algum tempo:
acham-se presos para averiguações: Irineu Caetano da Silva [...] Anna Maria de Jesus
Martinho, José dos Reis e Manoel Theodoro de Souza (...). Não sabem agora nossos
leitores em que ficam essas averiguações? Ficam sempre na imoralíssima
incomunicabilidade, com que ultimamente a polícia capea suas arbitrariedades, para
terminar com o desaparecimento do preso, que ninguém sabe por que milagre se
eclipsou de qualquer dos postos policiais, onde muitas vezes grande número de
pessoas viu o mesmo ter ingresso. Talvez os acima indicados tenham melhor sorte
de que tantos outros que m sido obrigados a deixar os pátrios lares, embarcados
1
Não obstante a homenagem, essa instituição carcerária está estruturada numa lógica oposta ao que pregava o
homenageado.
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contra a vontade, com destino a outros portos, e com a nota de “embarcados
voluntariamente”. Efetivamente essa medida merece o nome de “desinfecção
policial”, à falta de outra que o respeito ao público manda que nos calemos (Correio
do Brasil, 21 out. 1903, p. 1).
Movimento semelhante pode ser vislumbrado em um eloquente texto do periódico
Correio do Brasil, no ano de 1903: mais uma vez um furto acontece e “um cidadão foi
indigitado, por simples suspeita, como autor”. Levado à unidade policial, foi-lhe infligido como
processo preliminar “um castigo bárbaro e estúpido de tomar banho frio, completamente
vestido, notando-se que teve de conservar as roupas assim encharcadas durante uma noite
inteira!”. As torturas não se encerram por aí. Durante a madrugada, o sargento do
destacamento o fez sair do xadrez, aplicando-lhe novos castigos, dessa vez ferindo-o com o
sabre. “No fim de tudo, bem castigado o pobre coitado pelos carrascos da polícia” o
articulista transmite uma evidente indignação –, “reconheceu-se que de forma alguma era o
culpado do crime que lhe imputavam” (Correio do Brasil, 18 set. 1903, p. 1). O autor da
denúncia traz para o centro do debate o problema da legalidade.
desde quando é permitido à polícia, a um simples sargento irresponsável, aplicar
castigos corporais aos presos que estão sob a sua guarda? Quem deu a esses
bárbaros os foros do tribunal para que, o sumariamente (...) julguem os seus
presos e lhe apliquem incontinente as penas, que as suas mentes desregradas
desapiedadamente inventaram? [Esses] hábitos (...) indicam a barbárie de nossa
educação e mantém no espírito do estrangeiro a repulsa que tem manifesta por
nossos costumes! (Correio do Brasil, 18 set. 1903, p. 1).
Em um longo artigo, o jornalista tocou no ponto dos direitos dos cidadãos que estavam
sendo violados e exigiu mudanças precisas: seria necessário que providências sérias “sejam
tomadas a esse respeito, sem o que brevemente nos veremos todos abandonados das
garantias que a Constituição nos promete e sujeitos às mais escandalosas e cruéis tragédias
policiais” (Correio do Brasil, 18 set. 1903, p. 1). No seu argumento, o problema seria estrutural:
estariam os policiais reproduzindo as violências sofridas dentro das corporações por parte dos
seus superiores. Ademais, com ar de desesperança, apontou que as coisas não mudariam e
que outros indivíduos voltariam a ser espancados nas dependências policiais, justamente
porque era um procedimento interno:
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como poderão ter estes soldados da nossa polícia a noção precisa dos seus deveres
e de obediência à lei, quando estão a ver a cada dia rasgada essa mesma lei por
aqueles de quem recebem recomendações e ordens? Como respeitaram eles o
sagrado direito à liberdade, quando estão a ver todos os dias, segundo consta-nos,
a deportação, a praça forçada no exército, executados por meio de embarques
inesperados e clandestinos dos presos das diversas estações policiais? (Correio do
Brasil, 18 set. 1903, p. 1).
Os acusados de furtos sofreram diversos tipos de abusos e tiveram uma série de direitos
vilipendiados, o que provocou reações. É significativo o espaço dado pelos jornais a indivíduos
que alegavam ter sido presos injustamente e àqueles que tinham o objetivo de expressar e
pôr fim às suas agruras na prisão. Em maio de 1905, os detidos escreveram, pela segunda vez,
ao Diário de Notícias, solicitando a intervenção dos jornalistas “junto aos poderes
competentes, no sentido de cessar essa tortura pela fome a que vivem ali constantemente
submetidos”. O articulista não se limitou a apenas apresentar as queixas e reclamações
daqueles rapazes, mas as corroborou com uma dura crítica: “não basta a esses desgraçados
viverem empilhados em cúbicos infectos, privado de ar e de luz, na maior promiscuidade de
idade e de condições?!”. Questionou mais: “[...] até quando, nas nossas cadeias públicas,
vigorará esse regime inquisitorial de tortura pela fome?!” (Diário de Notícias, 01 mai. 1905, p.
1).
Farias, ciente do desrespeito com os presos e do não cumprimento da lei, recorreu às
instituições de Estado para assegurar que as necessidades dos detidos não fossem
negligenciadas. Podemos vislumbrar esse fato em sua ação numa mande outubro de 1915,
em que se movimentou para garantir o direito dos reclusos à alimentação:
[o rábula negro] solicitou do dr. intendente municipal providências no sentido de ser
fornecida a competente alimentação aos presos: Jacinto Gomes da Costa Leite, João
Pedro dos Santos, José Augusto de Souza, Cyrilo Correia de Andrade e José Ribeiro
dos Santos, que se acham recolhido à casa de correção e morrendo à fome. Todos
esses indivíduos estão sendo processados pela justiça (A Notícia, 5 out. 1914, p. 2).
O jornal caracterizou a atuação do ativista negro como um pedido justo. Sabemos que
estamos lidando com uma personalidade atuante, sobretudo na esfera jurídica. Farias não
apenas atendeu em seu escritório, no qual recebia as demandas da população, bem como
procurou casos nos quais pudesse exercer a sua militância. De todas as frentes sociais em que
agiu, a defensoria gratuita foi uma das principais. Exercendo as suas atividades antes da
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sistematização das defensorias públicas no país, o rábula “interveio em mais de 30 mil
processos, sempre na defesa de réus denunciados em casos de infrações penais e em causas
cíveis”. Mônica Santos afirma que o que lhe deu notoriedade foi justamente a sua persistência
na defesa de indivíduos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, o “[...] volume de
causas que assinou gratuitamente e por ter desafiado a conjuntura vigente” (Santos, 2005, p.
41).
Estamos visualizando que presos e outros sujeitos recorriam sempre que possível às
redações jornalísticas. É lícito ter em mente que as ações do rábula foram provocadas também
pela movimentação daqueles que estavam sofrendo com as mazelas das unidades prisionais
(e talvez de algum ente) e que tinham consciência que poderiam reivindicar a partir dos
dispositivos legais. A posição de acusado ou condenado de ter agido fora da lei nem de longe
embaçou a ideia que as suas prerrogativas deveriam ser atendidas. Foi o sentimento de
injustiça e a certeza de que os seus direitos estão sendo pisoteados que fez Benedict Pujol,
preso a quase uma semana, sem nenhum procedimento formal em andamento, escrever em
julho de 1892 ao Jornal de Notícias. Para o homem, as instituições não poderiam tratar um
cidadão mesmo este sendo acusado de atividades fora lei comtodos fora do panorama
legal:
senhor redator: estou aqui há cinco dias fechado no xadrez dos marinheiros, em um
caixote, sem ar e com todas as privações. Sou estrangeiro e acusado por furto. Peço
a V. para pedir ao sr. dr. chefe de polícia que me faça o favor de dar uma solução
qualquer, seja eu culpado ou não. 5 dias sem mandado de prisão! Creio que a lei
brasileira não tolera tanto tempo para se decidir se um homem, se culpado, tem de
sofrer uma prisão tão rigorosa. É dado à humanidade da parte do senhor redator se
dignar e interessar por esta plica. Xadrez dos Marinheiros, 14 de julho de 1892.
Benedict Pujol (Jornal de Notícias, 15 jul. 1892, p. 1).
O apelo é acompanhado por um protesto do jornalista, que endereça a notícia ao chefe
de polícia: “[...] não cogitamos no crime de que Pujol é acusado; mas, é de Justiça proceder
contra ele de acordo com a lei e não conservá-lo tantos dias preso, num caixote sem ar e com
todas as privações” (Jornal de Notícias, 15 jul. 1892, p. 1). Notemos que para uma carta ou
uma denúncia com esse tipo de origem chegar à imprensa foi necessária uma pequena rede:
alguém que tomasse conhecimento da circunstância e das demandas dos detidos e as levasse
para a publicização. Pode surgir a dúvida se a situação dos presos não fora constatada a partir
das visitas que os próprios jornalistas faziam nas delegacias em buscas de informações para
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criar notícias. Porém, quando se tratava de informações coletadas diretamente pelos
repórteres, por meio do trabalho dos seus profissionais, os jornais faziam questão de
acentuar.
Esse movimento que destacava outras perspectivas e exigia direitos e justiça para
aqueles acusados de furto não fora composto apenas por ações de líderes populares,
intelectuais e por parte daqueles que tinham acesso à tinta da imprensa. Cidadãos comuns
atuaram no sentido de abrir e ampliar os espaços na imprensa para denunciar as mazelas
sociais. Com efeito, foi o posicionamento de homens e mulheres que se sentiam ofendidos e
com os seus direitos ultrajados dentro das unidades prisionais que fez as reclamações se
propagarem na imprensa e nos âmbitos jurídico e social para que providências fossem
tomadas. Foi a postura de Adelino José do Sacramento, detido por sete dias, que alegou ter
sido preso ilegalmente e estar morrendo à fome, que fez com que o Diário de Notícias desse
o título “prisão ilegal” à sua denúncia, fazendo-a chegar ao chefe de polícia, que ordenou a
sua soltura (Diário de Notícias, 17 out. 1908, p. 1).
Estamos na presença de uma sociedade na qual uma série de violações de direitos
sociais, civis e jurídicos. As vítimas desses vilipêndios buscaram se mover a partir de caminhos
possíveis para frear violências, garantir julgamentos justos, com base na legislação em vigor,
bem como assegurar a sua liberdade e, como vimos, o direito de ter alimentação, mesmo
encarcerado. Ao registrar que a população de diversas cidades baianas, diante da
arbitrariedade policial, acionou diversos órgãos, como a própria secretaria de segurança
pública do Estado ou outras estâncias da justiça Alisson Barbosa anotou os resultados
alcançados. Ao serem provocados, magistrados ordenavam um posicionamento imediato do
chefe de polícia; jornalistas manifestavam-se a favor dos queixosos e autoridades policiais
prometiam e tomavam algumas medidas. Para se ter ideia, por exemplo, os protestos
populares contra violência da polícia forçaram a implementação de um “artigo em todos os
postos policiais, contendo uma proibição de praças armados entrarem em botequins”
(Barbosa, 2014, p. 108).
Muitas pesquisas têm apontado para a sagacidade e perspicácia de escravizados, libertos
e diversos segmentos negros e pobres da sociedade na luta por liberdade e direitos. Ana Flávia
Magalhães Pinto, nesse sentido, empenhou-se, dentre outros caminhos, em debater raça e
cidadania às vésperas da Abolição, e refletiu como ações a exemplos de fugas e suicídios
dramáticos de simples sujeitos que não aceitaram permanecer na condição de escravizados
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minaram significativamente o sistema escravocrata. Eram movimentos que chamavam
atenção da opinião pública, mobilizavam a imprensa, constrangiam os senhores e inquietavam
ainda mais àqueles que atuavam contra o instituto da escravidão (Pinto, 2014, p. 187-189).
Em sua discussão com outros historiadores, Pinto questionou a imagem que fora
construída de José do Patrocínio como um sujeito conciliador, representando muitas vezes os
interesses da elite financeira do país. Essa conclusão teria sido fruto de uma análise um tanto
empobrecida dos discursos do jornalista carioca. A autora invoca atenção para não examinar
um discurso descolado da complexidade de sua conjuntura, ignorando outras atuações do seu
orador. Dessarte, seria necessário levar em consideração a acuidade de Patrocínio, bem como
a sua atuação política, para ter em mente que as suas palavras faziam parte de um jogo de
retórica, cujo interesse era angariar mais simpatizantes à causa defendida e enfraquecer a
legitimidade do lado oposto”. É refletido ainda que se em certos espaços o ativista buscou
diálogo com as classes abastadas, em outros, estreitou relações com outros segmentos. Assim,
somos convocados a fender o “costume de reduzir a experiência coletiva negra oitocentista à
escravidão” e a “[...] enxergar o alcance da participação popular de negros livres e libertos nas
páginas da imprensa abolicionista” (Pinto, 2014, p. 202-203).
Considerações finais
Este artigo foi um meio para refletir e apresentar uma parte das disputas que se
desenrolou na imprensa em Salvador durante a Primeira República, no contexto do pós-
Abolição. É possível detectar uma linguagem dominante estruturando os jornais baianos: um
discurso racista, que estereotipava e criminalizava as expressões e manifestações das classes
populares. Nesse cenário, o furto sobressai como um arsenal, o qual jornalistas utilizavam
para reclamar o controle social e racial, que se materializava em invasões de moradia
populares, prisões sem provas, péssimas condições no cárcere e detenções ilegais.
Observamos, nesse sentido, uma rearticulação do racismo no Brasil entre o final do século XIX
e início do XX. No entanto, a luta das massas populares deu-se de maneira audaciosa, no
sentido de utilizar as condições históricas e criar brechas e oportunidade para fazer da própria
imprensa um veículo de reivindicação por direitos. Os líderes populares, sujeitos que tinham
perspectivas antagônicas do que geralmente era propagado nos periódicos, bem como os
sujeitos acusados de furtos e presos, aproveitaram do relevante papel da imprensa no período
republicano para reclamar por garantias constitucionais e denunciar violações de direitos.
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Insisto que não é lícito, porém, visualizar a grande imprensa como um ambiente no
qual as mais diversas correntes de opinião tinham chances de serem difundidas. Embora não
sejam poucos os discursos a contrapelo da linguagem dominante, os estudos têm
demonstrado que os jornais de Salvador se caracterizaram não obstante a sua polifonia
justamente por sua linguagem racista, de repressão à cultura afro-brasileira, que contribuiu
direta e significativamente com as múltiplas formas de violências sofridas pela população
negra e pobre da capital baiana. Podemos refletir que é um problema caro também aos nossos
dias, como bem refletiu o historiador e militante comunista negro Jones Manoel:
A Rede Globo hoje é a emissora da diversidade. Defende pautas antirracistas. Ao
mesmo tempo defende um programa econômico profundamente neoliberal que
lasca a vida da população. A Globo defende o teto de gastos, que acaba com o
investimento público em saúde e educação. Defende a reforma trabalhista, que
gerou mais de 50 milhões de trabalhadores na informalidade, a contrarreforma da
previdência que vai deixar milhões de trabalhadores sem aposentadoria; defende as
políticas de privatização na Petrobras, que dispara o preço do combustível e que tem
impacto inflacionário direto no preço de alimentos e aumenta a fome no país. A
Globo defende os interesses da minoria rica dominante. Ela defende diversidade,
mas ao mesmo tempo defende um projeto econômico que joga negros e negras para
a miséria, para o trabalho preconizado (Manoel, 2024).
Guardadas as devidas proporções, as análises desenvolvidas sobre o cenário atual pelo
militante negro nos ajudam a refletir sobre a complexidade da imprensa ao longo da história.
Mas, acima de tudo, nos impede de cair num labirinto de não enxergar as forças em jogo e
não esquecer que antes de serem empresas de comunicação, os jornais eram empresas com
interesses políticos e econômicos. Eram veículos que estavam inseridos numa lógica de
alianças e oposições partidárias; eram propagadores dos ideais higienistas e outros
pensamentos das camadas dominantes do período.
Referências
Fontes
Jornal de Notícias, Salvador, 15 jul. 1892.
Jornal de Notícias, Salvador, 25 out. 1898.
Correio do Brasil, Salvador, 18 set. 1903.
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Faces da História, Assis/SP, v. 12, n. 1, p. 21-45, jan./jun., 2025
Correio do Brasil, Salvador, 21 out. 1903.
Diário de Notícias, Salvador, 18 abr. 1905.
Diário de Notícias, Salvador, 01 mai. 1905.
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