Embranquecer para civilizar: ideologias racistas na
Belle Époque carioca
Whiten to civilize: racist ideologies in Rio de Janeiro’s Belle
Époque
REZENDE, Fábio de Brito*
https://orcid.org/0000-0003-2555-9153
RESUMO: O presente texto propõe um debate
acerca da consolidação de ideologias racistas e
suas instrumentalizações na ocupação da cidade
do Rio de Janeiro, no contexto das reformas
urbanas da década de 1900. Partindo de obras
que discutem as políticas de branqueamento da
nação (Santos, 2022; Moura, 1988) e a ideologia
da Higiene (Chalhoub, 1996), junto a outros
autores e autoras que desvelam o cenário das
relações raciais no Brasil da Primeira República,
analisamos os discursos construídos sobre as
populações negras e mestiças do país
vinculadas à “insalubridade” e ao “atraso” , em
um momento de profundas mudanças na outrora
capital da República. Com isso, alinhamos o
debate entre a relação destes discursos com as
ações políticas e a efetiva produção da
urbanidade republicana carioca no decorrer do
século XX, que afetam a população da cidade até
hoje.
PALAVRAS-CHAVE: Primeira República; Rio de
Janeiro; ideologias racistas; reformas urbanas.
ABSTRACT: The present text proposes a debate
regarding the consolidation of racists ideologies
and their instrumentalizations in the occupation
of the city of Rio de Janeiro, within the context of
urban reforms in the 1900s decade. Drawing on
works that discuss the policies of racial whitening
of the nation (Santos, 2022; Moura, 1988) and the
ideology of Hygiene (Chalhoub, 1996), alongside
other authors who reveal the landscape of racial
relations in Brazil during the First Republic, we
analyze the discourses constructed about black
and mixed-race populations of the country
associated with "unhealthiness" and
"backwardness" during a period of profound
changes in the former capital of the Republic.
With this we align the debate between these
discourses and political actions, as well as the
effective production of Rio de Janeiro's
republican urbanity throughout the 20th century,
which continues to affect the city's population to
this day.
KEYWORDS: First Republic; Rio de Janeiro; racist
ideologies; urban reforms.
Recebido em: 31/07/2024
Aprovado em: 21/04/2025
* Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Centro de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET), Rio
de Janeiro-RJ, doutorando pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Guarulhos-SP. E-mail:
fabrez@hotmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
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Considerações Iniciais
No fim do século XIX, dois eventos abalaram os paradigmas da sociedade brasileira: a
Abolição de 1888 e o Golpe Republicano de 1889 (Santos, 2022). Alicerçada pelos ideais do
“amor por princípio, da ordem por base e do progresso por fim” de Benjamim Constant, a
República constituiu, unida à Abolição, possibilidades da jovem república brasileira livrar-se
das estruturas históricas até então dominantes. Nesse contexto, a escravidão e a monarquia
dariam espaço a um novo projeto de nação, inspirado em diversas experiências ocidentais,
como a francesa e a estadunidense, purgando a nação do “atraso” em direção a um país
“moderno”.
Ademais, no contexto da consolidação de relações de trabalho não mais dependentes
do trabalho forçado, a construção retórica da sociedade brasileira, no decorrer do século XIX,
se fez através de um repertório ainda fortemente balizado no legado da escravidão, sendo os
negros da nação apontados como “âncoras” que atrasavam o tão almejado progresso
nacional. Nessa época, notam-se as influências de ideologias racistas (Souza, 2022), que
buscavam a legitimação da superioridade branca por meio de teorias pseudocientíficas
disseminadas, principalmente, nos campos antropológico e criminal. Dessa forma, conhecidas
como racismo científico, podemos defini-las como:
[...] uma ideologia disseminada em todo o Ocidente, e não uma crença pontual dos
organizadores de freak shows e zoológicos humanos que arrastavam multidões por
onde passavam. A raça, que até o final do século XVIII era um termo referente a uma
espécie de mito de superioridade social e política dos grupos dominantes, ganhou uma
roupagem pseudocientífica ao longo do século XIX para justificar a escravização, a
colonização e a dominação exercida por parte da população branca ocidental. Foi o
racismo científico que deu respaldo moral e teórico para projetos de colonização na
África e na Ásia, que pautou as leis Jim Crow nos Estados Unidos e que organizou os
pilares da recém-inaugurada República do Brasil (Santos, 2022, p. 180).
Além disso, podemos apontar que a construção da jovem república democrática
brasileira, nos últimos instantes do século XIX, não se fez balizada em ideais igualitários: “O
que se observa nos primeiros quarenta anos da experiência republicana brasileira foi a
edificação de um Estado nacional que manteve a exclusão racial, social e política como
engrenagem básica de seu funcionamento” (Santos, 2022, p. 183). Tomando as normas
eleitorais vigentes à época como exemplo as que excluíam do processo eleitoral, tanto para
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votação quanto para candidaturas das mulheres, dos mendigos e dos analfabetos , o
exercício da cidadania no Brasil era vetado a uma grande maioria de sua população,
independente de gênero
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ou raça.
Ainda assim, a questão racial permaneceu como um mecanismo de controle social
central para a produção do projeto de nação da República brasileira. O “problema” do negro
no Brasil, que surgiu no horizonte das elites dirigentes do país no decorrer do século XIX,
conforme as estruturas escravistas perdiam força por meio não apenas de leis, como
também por meio da mobilização de fugas e de compras de alforrias, auxiliadas por negros
libertos , continuou a assombrar os afãs civilizatórios dos governantes republicanos, após a
assinatura da Lei Áurea.
Os homens que comandaram a Primeira República brasileira eram herdeiros daqueles
que exerceram o poder no Império do Brasil. E eles deixaram bem nítido que o fim da
escravidão não seria a extinção da marginalização econômica, social e política da maior
parte da população. Se a República trouxe uma série de mudanças na organização do
Estado brasileiro, a raça continuou sendo justificativa da segregação e da
discriminação. Outros mecanismos de exclusão foram criados. A partir de 15 de
novembro de 1889, o racismo também se fez “coisa pública” e continuou ditando as
regras do jogo (Santos, 2022, p. 185).
Dois elementos podem ser destacados como explicativos dos primeiros anos da
República brasileira. Primeiramente, a persistência da marginalização da população negra do
país, efetivada por meio de ideologias racistas que relegavam aos negros a pretensa
incapacidade de se ajustarem aos novos horizontes da vida republicana, e pela aplicação de
mecanismos legais, como os códigos de lei que ficavam conhecidos popularmente como as
“Leis da Vadiagem”, presentes no primeiro Código Penal republicano do Brasil, de 1890.
Embora tais códigos não contivessem, explicitamente, uma conotação racial, versando apenas
sobre “os vadios e os capoeiras”, ambos os termos eram frequentemente utilizados para
referir-se aos negros que circulavam pelos espaços urbanos da nação. Como vadios”
podemos identificar a massa da população, predominantemente negra, que vivia da
informalidade nas capitais urbanizadas do país e migrava constantemente (tanto no interior
das cidades quanto entre as províncias nacionais) em busca de novas oportunidades de
1
Ainda que seja importante destacar a agravante na questão de gênero, por conta da proibição do voto feminino.
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trabalho, enquanto os “capoeiras” eram cotidianamente noticiados como bandos de
desordeiros que viviam a causar sobressaltos entre os cidadãos de bem.
O segundo ponto digno de nota foi a massiva imigração ocorrida durante o período da
Primeira República. “Entre 1887 e 1930, aproximadamente 3,8 milhões de imigrantes
desembarcaram no Brasil, a imensa maioria de origem europeia” (Santos, 2022, p. 189),
concentrada, predominantemente, nas atuais regiões Sul e Sudeste. Nesta última, o maior
assentamento de imigrantes ocorreu na província de São Paulo, não apenas com a anuência
do Estado, mas também com auxílio financeiro, “[...] por meio de políticas públicas que
facilitaram a viagem e a instalação de imigrantes” (Santos, 2022, p. 189) para a expansão da
economia cafeeira. Em outras palavras, o governo brasileiro subsidiou a imigração europeia
ao Brasil.
É importante questionarmo-nos se tal volume imigratório seria realmente necessário
para a composição da força de trabalho no país, sem perder de vista que parte da população
negra, após a Abolição, escolheu conscientemente afastar-se dos trabalhos anteriormente
realizados por meio da instituição escravista (Santos, 2022). Considerando a população negra
integrada em diversos postos de trabalho e os negros que viviam na informalidade nos
centros urbanos brasileiros, muitos dos quais trabalhavam no campo, importa-nos refletir
como estes dois processos (a marginalização dos negros e imigração de brancos) são
interligados, encontrando um caminho possível em Moura (1988):
Essa elite de poder que se auto-identifica como branca escolheu, como tipo ideal,
representativo da superioridade étnica na nossa sociedade, o branco europeu e, em
contrapartida, como tipo negativo, inferior, étnica e culturalmente, o negro. Em cima
dessa dicotomia étnica estabeleceu-se [...] uma escala de valores, sendo o indivíduo
ou grupo mais reconhecido e aceito socialmente na medida em que se aproxima do
tipo branco, e desvalorizado e socialmente repelido à medida que se aproxima do
negro (Moura, 1988, p. 62).
Logo, o processo de imigração predominantemente europeia estava intimamente
interligado com a construção de valores positivos da sociedade brasileira na medida que, no
espectro oposto, residiam os valores negativos desta mesma sociedade, que foram vinculados
às populações negras. Dessa forma, os brancos europeus representavam os ideais de
civilização e modernidade, supostamente trazendo do continente europeu toda uma cultura
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de trabalho, comportamento e manutenção de famílias os “bons genes” necessários para o
processo civilizatório , enquanto os negros representavam apenas o atraso e o desajuste.
A ideologia do branqueamento não passava, apenas, pela substituição da população
negra do país por milhões de imigrantes, como explicitado na participação brasileira no
Congresso Universal das Raças, ocorrido em Londres no ano de 1911. Nesse ínterim, a
miscigenação da população seria uma ferramenta eficiente para o embranquecimento do
Brasil, e a participação de João Batista de Lacerda e Edgard Roquette-Pinto os
representantes brasileiros no evento, que tiveram suas viagens custeadas pelo governo
Hermes da Fonseca torna evidente que a intenção era de embranquecer a população em
cerca de 100 anos, como ilustrado no gráfico a seguir (Imagem 1), publicado em um relatório
de Lacerda:
Imagem 1. Diagrama publicado no relatório de Lacerda (1911)
Fonte: O Congresso Universal das Raças reunido em Londres (1911): apreciação e commentarios. Rio de
Janeiro, 1911, p. 101.
Nessa perspectiva, até o ano de 2012, segundo as estimativas presentes nas pesquisas
de Roquette-Pinto e utilizadas por Lacerda para corroborar sua tese (Souza; Santos, 2012), a
nação brasileira seria predominantemente branca, contando com um pequeno percentual de
indígenas e mestiços, e uma população negra virtualmente inexistente (Lacerda, 1911a). Na
compreensão de Lacerda,
[...] esse processo deveria ocorrer por três motivos principais. Em primeiro lugar,
devido à “seleção sexual”, os mulatos procurariam sempre encontrar parceiros que
pudessem “trazer de volta seus descendentes para o tipo branco puro”, removendo
os aspectos característicos da “raça negra”, inclusive o atavismo. Além disso, a
crescente entrada de imigrantes europeus no país, somada aos problemas sociais, e o
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abandono que os negros foram obrigados a enfrentar desde a abolição, traziam a
perspectiva futura de uma nação inteiramente branca. E num tom comemorativo,
concluía que o Brasil caminhava para ser “um dos principais centros da civilização do
mundo” (Souza; Santos, 2012, p. 754).
Podemos identificar uma representação pertinente deste contexto no quadro A
Redenção de Cam, de 1895, pintado por Modesto Brocos (Imagem 2). Esta pintura, inclusive,
é representada nas primeiras páginas de outro texto de Lacerda, intitulado Sur lés metis au
Brésil “Sobre os mestiços do Brasil”, em tradução livre , ao lado da frase Le Nègre passant
au blanc, à la troisième génération, par l’effect du croisement des races “O negro passando
para o branco, na terceira geração, pelo efeito do cruzamento de raças”, em tradução livre
(Lacerda, 1911b). No quadro, é ilustrada uma família composta por uma mulher negra,
idosa, que aparenta estar agradecendo aos céus por uma benção, uma jovem mulher
miscigenada (que inferimos ser sua filha) com uma criança branca em seu colo e um homem
branco, que aparenta ser seu parceiro, que sorri ao olhar em direção à criança. Existem vários
elementos na pintura dignos de uma minuciosa reflexão, mas aqui nos debruçaremos apenas
nesta cena e no nome do quadro, que em conjunto apresentam um resumo bem sucinto do
discurso da comitiva brasileira enviada a Londres, em 1911.
Imagem 2. A Redenção de Cam (Pintura de Modesto Brocos, 1895)
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural (online)
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O plano era vender o Brasil como uma promessa de futuro, cujo sucesso seria iminente
conforme se tornava um espelho dos ideais eurocentrados de suas elites. Era necessário
expurgar a “mácula” de Cam por meio da “redenção” do embranquecimento, e o pensamento
eugênico, popular na época em escala global (pelo menos até os horrores apresentados pela
prática adotada às últimas consequências pela Alemanha nazista) assegurava que os “genes
fortes” dos brancos eventualmente solapariam os “fracos” genes negros, incapazes de se
adaptar a uma sociedade urbanizada.
Ademais, o branqueamento, como já apontado, não foi conduzido apenas pelo caráter
(supostamente) biológico, mas também por uma imposição comportamental, que poderia
“remediar” os males de raças inferiores através das instituições de ensino. Para isso, a
educação cumpriu papel fundamental na construção dos ideais de progresso nacional,
racialmente orientados. Logo, as escolas serviriam, na visão de seus gestores, como “clínicas”
onde poderiam ser curados os “males” da mestiçagem (Dávila, 2006).
Os alicerces das estruturas educacionais brasileiras, no fim da década de 1910, foram
erigidos sobre o legado histórico de negativação da figura dos negros do país, desajustados
para o esforço de civilização necessário para o nascimento de uma república bem-sucedida.
Nesse contexto, não por acaso, foi cogitada a criação de um ministério conjunto de Educação
e Saúde na época, evidenciando a maneira como o esforço educacional da Primeira República
estava intimamente relacionado às políticas higiênicas do período, proposta animada por
teorias que vinculavam mestiçagem e degeneração, além de uma pretensa predisposição de
indivíduos ao crime (Dávila, 2006). Em suma, tais pensamentos eram racialmente orientados,
e era a negritude que despertaria esta tendência criminosa nos brasileiros. A intervenção
educacional poderia, se não reverter, ao menos suprimir esta predisposição. Novamente, se
faz evidente o papel de destaque dado ao debate racial para a formulação das bases da
sociedade brasileira nos primeiros anos da República:
Quando os intelectuais e funcionários blicos brancos progressistas começaram a
implantar a educação pública universal no Brasil na primeira metade do século XX,
seus motivos e ações foram influenciados pela ideologia racial em três formas gerais.
Primeiro, basearam-se em séculos de dominação por uma casta de colonizadores
europeus brancos e seus descendentes, que mandavam em seus escravos, povos
indígenas e indivíduos de ascendência mista. Durante séculos, essa elite branca
também recorreu à Europa no empréstimo de cultura, ideias e autodefinição.
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Segundo, embora esses intelectuais e formuladores de políticas tivessem se tornado
cada vez mais críticos em relação a essa herança (indo até o ponto de celebrarem a
mistura racial), invariavelmente vinham da elite branca e permaneciam presos a
valores sociais que, depois de séculos de colonialismo e dominação racial,
continuavam a associar brancura a força, saúde e virtude valores preservados e
reforçados por meio da depreciação de outros grupos. Terceiro, como criaram políticas
educacionais em busca de um sonho utópico de um Brasil moderno, desenvolvido e
democrático, sua visão era influenciada pelos significados que atribuíam à raça (Dávila,
2006, p. 23).
Logicamente, a construção retórica dos negros como corpo criminal e sua
inferiorização constante em favor de indivíduos que se aproximassem fenotipicamente dos
brancos surtiu um efeito potente nas populações negras da nação, e entre as estratégias de
sobrevivência e de assimilação à sociedade, surgiu a fuga. Essa fuga não é literal, como a
praticada pelos escravizados que escapavam de seus cativeiros e se embrenhavam na mata
fechada, formando quilombos e resistido tanto quanto podiam à realidade da escravidão. A
fuga aqui mencionada foi a fuga de si mesmos, de suas identidades e pertencimentos. Assim,
era necessário embranquecer, não apenas em uma perspectiva fenotípica, mas também nos
seus hábitos e costumes, agravados pelo legado histórico do colonialismo.
O colonizador luso estabeleceu, no Brasil, um mecanismo neutralizador da consciência
étnica do negro através de uma verbalização democrática. Isto levou a que grandes
segmentos negros, tendo introjetado esta ideologia do colonizador, procurasse passar
por brancos, ou, pelo menos, promover-se na escala cromática que o colonizador
estabeleceu, tendo como modelo superior a ser alcançado o branco. Esta política
fenotípica procurou e procura fazer com que os componentes de grupos específicos
negros fujam das suas origens, procurando assimilar a escala de valores e padrões
brancos (Moura, 1983, p. 126).
Portanto, para essa população que tinha marcada em suas peles a antítese da
modernidade brasileira, tal fuga limitava-se às oportunidades de compor um mercado de
trabalho que relegava a este contingente os trabalhos mais precários, e as piores condições
de habitação. Empurrando-os em direção, primeiramente, dos cortiços e, posteriormente, às
favelas cariocas, a construção de estigmas que ligavam negritude à degeneração, pobreza e
vício se inscreveu –– no século XIX, e além no território da cidade do Rio de Janeiro.
“O Rio civiliza-se”: Ideologia da Higiene na Belle Époque carioca
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Após a Abolição, ocorrida em 1888, o “problema” do negro brasileiro foi ressignificado
a partir dos parâmetros estabelecidos pelas ideologias racistas que influenciavam os cânones
intelectuais e científicos da nação, na virada do século XIX para o XX. Não por acaso, a ideia
de “classes perigosas” surgiu em debates da Câmara de Deputados do Império do Brasil nos
meses seguintes à assinatura da Lei Áurea, refletindo a preocupação da classe política com a
organização do trabalho no pós-Abolição (Chalhoub, 1996).
Inicialmente, o termo “classes perigosas”, surgido no decorrer do século XIX, referia-
se a elementos marginalizados da sociedade pessoas que haviam sido presas, ou que
subsistiam a partir da prática de pequenos furtos e roubos (Chalhoub, 1996). Os ilustres
membros da política brasileira imperial, preocupados com o grande mal que a abolição
pretensamente representava para as estruturas do trabalho da sociedade brasileira,
apressaram-se em cooptar esse termo amplo e abrangente, correlacionando pobreza, vício e
degeneração sob um mesmo guarda-chuva, e operando, até mesmo, “pobres” e “viciosos”
como sinônimos.
[...] para os nobres deputados, a principal virtude do bom cidadão é o gosto pelo
trabalho, e este leva necessariamente ao hábito da poupança, que, por sua vez, se
reverte em conforto para o cidadão. Desta forma, o indivíduo que não consegue
acumular, que vive na pobreza, torna-se imediatamente suspeito de não ser um bom
trabalhador. Finalmente, e como o maior vício possível em um ser humano é o não-
trabalho, a ociosidade, segue-se que aos pobres falta a virtude social mais essencial:
em cidadãos nos quais não abunda a virtude, grassam os vícios, e logo, dada a
expressão “classes pobres e viciosas”, vemos que as palavras “pobres” e “viciosas”
significam as mesmas coisas para os parlamentares (Chalhoub, 1996, p. 21).
Os debates parlamentares em questão, aludiam à formulação de uma legislação que
conseguisse dar conta do mundo do trabalho e controle de corpos brasileiros posteriores à
abolição; ou seja, o germinar das “Leis da Vadiagem”. Como mencionado anteriormente,
apesar de não conter mecanismos explícitos de controle racial nestas legislações, “[...] o
contexto histórico em que se deu a adoção do conceito de ‘classes perigosas’ no Brasil fez com
que, desde o início, os negros se tornassem os suspeitos preferenciais” (Chalhoub, 1996, p.
23). A transição do trabalho escravizado (ainda que, em grande parte, estivesse
virtualmente erradicado na assinatura da Lei Áurea) para o trabalho livre predispôs uma
ressignificação da figura do negro na sociedade brasileira, muito bem sintetizada na pergunta
que Moura (1977) destacada no título de uma de suas obras. Negro: de bom escravo a mau
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cidadão? Suas reflexões sobre o que seria o “mau cidadão” produzido pela sociedade
brasileira durante a República se consolidam através da percepção de que os negros,
descendentes de escravizados, são aqueles que vivem às margens (sociais, econômicas,
regionais) e que nunca foram devidamente assimilados no que poderíamos chamar de
“cidadania brasileira”, justamente pelo legado da escravidão (Moura, 1977).
A construção da condição de inferioridade do negro em relação ao branco na
sociedade brasileira representa uma base retórica que naturalizou a hierarquização social
brasileira e a condição dos negros como base da pirâmide socioeconômica do país. Desse
modo, um agravante que, supostamente, sem os mecanismos de repressão do sistema
escravista, os negros não seriam capazes de competir satisfatoriamente com os brancos, em
todos os aspectos:
A imagem abstrata que os estratos superiores que se julgam brancos têm do negro é
reflexa dessa realidade social, econômica e cultural na qual ele se encontra imerso.
Concluem daí que ele não tem condições para desfrutar da liberdade, pois dissipa-a
na cachaça, no amor livre e na maconha. Para estes estratos, o negro, desde que
conseguiu livrar-se do cativeiro vem demonstrando como, por uma questão de
inferioridade congênita, incurável, não tem condições de competir com o branco, que
é visto como membro de uma raça mais inteligente, limpo, culto, que pauta o seu
comportamento por padrões morais mais elevados aos quais o negro não poderá
chegar (Moura, 1977, p. 19).
Temos, então, duas ideias que se correlacionam. Primeiramente, as reflexões de
Chalhoub sobre a conexão entre pobreza, vício e trabalho, a qual o “não-trabalho” seria o pior
elemento da degeneração social. Em segundo, as dinâmicas abordadas por Moura, que
naturalizavam a inferioridade dos negros na competição com os brancos por melhores
condições de vida, de trabalho e seu desajuste “congênito”, ou seja, geneticamente
estabelecido. Podemos, a partir destas reflexões, desvelar os caminhos que foram tomados
nos discursos políticos do Brasil republicano e na criação de novos mecanismos de controle
social, em substituição ao cativeiro da escravidão, pois considerava-se necessário manter esse
contingente sob controle constante para garantir sua produtividade e sua utilidade na unidade
social brasileira.
Na discussão sobre a repressão à ociosidade em 1888, a principal dificuldade dos
deputados era imaginar como seria possível garantir a organização do mundo do
trabalho sem o recurso às políticas de domínio características do cativeiro. Na
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escravidão, em última análise, a responsabilidade de manter o produtor direto
atrelado à produção cabia a cada proprietário individualmente. Este organizava as
relações de trabalho em sua unidade produtiva através de uma combinação entre
coerção e medidas de proteção e “recompensaspaternalistas uma combinação
sempre arriscada, aprendida no próprio exercício cotidiano da dominação. Com a
desagregação da escravidão, e a consequente falência das práticas tradicionais, como
garantir que os negros, agora libertos, se sujeitassem a trabalhar para a continuidade
da acumulação de riquezas de seus senhores/patrões? (Chalhoub, 1996, p. 23)
As posições, então, variavam entre duas vertentes: a) necessidade de controle estatal
que, de forma paternalista, tutelaria a população negra através da educação e do trabalho de
forma a consolidar sua integração à “civilização” republicana brasileira; b) desajuste
congênito, uma mácula carregada no sangue dos negros, que os predispunha ao crime, ao
vício e, sem mecanismos de domínio que substituíssem as violências do cativeiro, a
ociosidade, para a qual era exigida a ação política na direção de “limpar” a sociedade brasileira
desse mal. Ambas as vertentes eram, logicamente, legitimadas pela disseminação de
ideologias racistas que supostamente comprovavam a inferioridade dos negros e justificava
uma ação enérgica dos mecanismos de controle estatal para que fossem ora “corrigidos”, ora
“expurgados”.
Logo, nos últimos anos do século XIX, foi mobilizado o que Chalhoub veio a chamar de
ideologia da Higiene, que já havia se consolidado no combate aos cortiços durante o Império,
em meados dos Oitocentos, e permeado o debate político brasileiro nas primeiras décadas da
República. Esta ideologia se alicerçaria em duas bases: a primeira seria a crença de haver um
caminho para a civilização, válido para qualquer sociedade, desde que seus líderes se
comprometessem à condução deste processo; a segunda seria a certeza de que este caminho
em direção ao Progresso se firmaria por meio da intervenção na higiene pública (Chalhoub,
1996). O resultado destas operações mentais foi:
[...] o processo de configuração dos pressupostos da Higiene como uma ideologia, ou
seja, um conjunto de princípios que, estando destinados a conduzir o país ao
“verdadeiro”, à civilização”, implicam a despolitização da realidade histórica, a
legitimação apriorística das decisões quanto às políticas públicas a serem aplicadas no
meio urbano. Esses princípios gerais se traduzem em técnicas específicas, e somente
a submissão da política à técnica poderia colocar o Brasil no “caminho da civilização”.
Em suma, tornava-se possível imaginar que haveria uma forma “científica” isto é,
“neutra”, supostamente acima dos interesses particulares e dos conflitos sociais em
geral de gestão dos problemas da cidade e das diferenças sociais nela existentes
(Chalhoub, 1996, p. 35).
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Entendemos que a problemática central desta lógica, revestida de caráter “científico”,
“técnico”, “racional” e “neutro” e mobilizada por médicos, criminalistas e políticos brasileiros,
acabou por rastrear a fonte dos males sociais da nação, encontrando nos pobres este alicerce.
Os pobres representariam, como “classes perigosas”, um duplo risco à sociedade: o de
desorganização do mundo do trabalho e o de degeneração social, correlacionando sua
condição social de pobreza através da “metáfora do contágio” (Chalhoub, 1996). Em resumo,
foi mobilizada uma poderosa analogia que apontava que, da mesma forma que doenças
contagiosas ou pragas, a pobreza tendia a se proliferar sem uma vigorosa intervenção
institucional. Ao mesmo tempo, apontava que as futuras gerações poderiam ser remediadas
por meio da ação governamental, suprimindo a ociosidade dos adultos e intervindo, pela
educação, na realidade dos mais jovens (Chalhoub, 1996).
Outrossim, não apenas de analogias viviam os agentes políticos da época, e a realidade
imposta aos cariocas no decorrer do século XIX foi a disseminação de diversas doenças
contagiosas que assolavam a capital do país. Nesse sentido, Focos de febre amarela e
tuberculose eram frequentemente identificados nas habitações populares dos cortiços,
agravados pelas mudanças na ocupação urbana do Rio de Janeiro, que sofreu um considerável
aumento populacional no decorrer do século. Essa alteração demográfica ocorreu tanto pela
imigração portuguesa quanto pela migração interna de negros livres, libertos, e dos
escravizados “de ganho” que conseguiam meios de subsistência suficientes para alugar uma
cama nos cortiços cariocas, e não mais moravam na residência de seus senhores, garantindo
certa autonomia de vida. Este aumento populacional levou ao agravamento destas epidemias,
e a associação entre pobreza e doença só se fez, para a interpretação dos cientistas da época,
mais evidente.
[...] os pobres passaram a representar perigo de contágio no sentido literal mesmo. Os
intelectuais-médicos grassavam nessa época como miasmas na putrefação, ou como
economistas em tempo de inflação analisavam a “realidade”, faziam seus
diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre inabalavelmente convencidos de
que só a sua receita poderia salvar o paciente. E houve então o diagnóstico de que os
hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habitações
coletivas seriam focos de irradiação de epidemias, além de, naturalmente, terrenos
férteis para a propagação de vícios de todos os tipos (Chalhoub, 1996, p. 29).
Nesse contexto, não eram as condições precárias de habitação que tornavam estes
locais insalubres. A própria existência destes indivíduos era o que predispunha as condições
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de insalubridade identificadas e corroboradas pela quantidade de epidemias que assolavam a
cidade e tinham como epicentro essas moradias. De certa forma, isso isentava o poder público
de sua culpa na histórica negligência referente à oferta de moradias que minimamente
satisfizessem condições dignas de vida para as classes populares da cidade: desde a chegada
da Corte portuguesa ao Brasil, em 1808, o déficit habitacional no Rio de Janeiro foi um
problema que afetou diretamente o cotidiano dos cariocas e dos novos migrantes
portugueses que se deslocaram com a Família Real para a cidade (por volta de 10 mil lusos,
pelas estimativas mais conservadoras
2
). O surgimento e expansão dos cortiços no Rio de
Janeiro, no decorrer do século XIX foi, então, uma estratégia que possibilitou a habitação dos
contingentes mais pobres da cidade em um contexto de aumento paulatino nos custos de
habitação carioca.
Nesse ínterim, considerando o legado histórico de discriminação às populações negras
do Brasil, a construção negativa da população marginalizada brasileira recaiu, com maior peso,
nos negros (como ainda o é, se analisarmos números referentes à violência, mortandade,
encarceramento e oportunidades de trabalho no Brasil organizados pela cor da pele). Para
isso, os estigmas de “vício”, “sujeira” e “insalubridade” foram fortemente relacionados a esse
contingente populacional.
O negro marginalizado [...] é visto através de racionalizações como sujo, incapaz de
disputar com o branco a liderança da sociedade, nos seus diversos níveis. Fazem uma
ligação reificada, para usarmos a terminologia lukacsiana, entre a etnia negra e a
situação de pobreza, exploração e delinquência a que os seus elementos
marginalizados pela sociedade capitalista chegaram, especialmente nas grandes
cidades. A partir daí conclui-se que se ele se encontra presentemente marginalizado e
em situação inferior ao branco, isto se deve fundamentalmente, à sua própria
incapacidade e não às barragens de peneiramento que lhe foram impostas (Moura,
1977, p. 19).
Em adição, na esteira dos esforços de modernização da cidade acelerados pela
instauração da República, foram frequentes as conexões entre os cortiços e as favelas como
áreas “infestadas” pelas classes perigosas. Ou melhor, nas palavras de Campos (2010), um
“[...] espaço criminalizado do Rio de Janeiro”, como aludido no título de seu livro. Os cortiços
eram vistos como incubadoras de doenças e antros de criminosos. Na década de 1890, no
2
Informações referentes ao website Brasil 500 Anos, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Disponível em: IBGE | Brasil: 500 anos de povoamento | território brasileiro e povoamento | imigração de
transição (1701-1850) .
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termo do prefeito Barata Ribeiro, o cerco aos cortiços ganhou renovado vigor, levando à
demolição do mais simbólico cortiço carioca, o Cabeça de Porco, que contou com grande
cobertura da imprensa da cidade, antes e após a demolição. As alusões heroicas ao prefeito
que finalmente “decapitou” o Cabeça de Porco (Figura 3) foram amplamente propagadas em
grandes jornais da época, como o Jornal do Brasil, e um clima de otimismo permeava as
notícias referentes ao simbólico evento. Sem que grande parte destes ilustrados escritores
e dos políticos que tornaram a demolição do cortiço realidade percebessem as
consequências
3
que este ato de expulsão sem nenhuma alternativa de moradia fosse
apresentada, na esteira deste fatídico evento, as favelas assumiriam, nos anos seguintes, o
posto de antagonistas da cidade.
Imagem 3. Capa da Revista Illustrada em fevereiro de 1893
Fonte: Revista Illustrada, Rio de Janeiro, nº 656. fevereiro de 1893, p. 1.
Nos anos seguintes à Guerra do Paraguai (1864-1870) e ao cerco a Canudos (1896-
1897), com o afluxo de veteranos em direção ao morro da Providência (Campos, 2010), a
alcunha de região ocupada por desertores, praças e veteranos violentos animou os discursos
3
Cerca de 400 pessoas ainda residiam no cortiço no dia de sua demolição, apesar de diversas notificações de
despejo terem sido emitidas e ignoradas.
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da imprensa enquanto criavam uma retórica de guerra contra o morro da Favela, que surgiu
na imprensa nos primeiros meses do século XX. Notícias foram publicadas com títulos que
deixavam poucas dúvidas sobre o discurso que se queria construir sobre a Favela: Cenas de
sangue e Favela Vermelha são alguns exemplos constantemente mobilizados para se referir à
rotina dos vagabundos, gatunos, bandidos, navalhistas, capoeiras, viciados, e degenerados
que habitavam aquele “antro infecto” de criminosos.
No decorrer da década de 1900, ao passo que a Favela se tornava notória nas colunas
criminais dos diversos jornais cariocas, outro prefeito da cidade assumiu as rédeas de um
grande processo civilizatório que tornaria o período um marco histórico do Rio de Janeiro.
Unido a um conjunto de ações realizadas pelo presidente Rodrigues Alves, o prefeito Pereira
Passos conduziu um conjunto de reformas que visava transformar a capital brasileira em uma
“Paris dos Trópicos”. Inspirado pelas intervenções realizadas pelo Barão de Haussmann,
prefeito parisiense em meados do século XIX, Passos realizou um conjunto de intervenções
urbanísticas radicais, como o alargamento de diversas vias e a padronização das fachadas dos
prédios. Mais que uma revolução estética, as “Reformas Passos” (como são mais comumente
conhecidas), visavam uma transformação dos usos do espaço urbano carioca.
A transformação da forma urbana visava sobretudo resolver as contradições que ela
apresentava. Era imperativo agilizar o processo de importação/exportação de
mercadorias, que ainda apresentava características coloniais devido à ausência de um
moderno porto. Era preciso, também, criar uma nova capital, um espaço que
simbolizasse concretamente a importância do país como principal produtor de café do
mundo, que expressasse os valores e os modi vivendi cosmopolitas e modernos das
elites econômica e política nacionais. Nesse sentido, o rápido crescimento da cidade
em direção à zona sul, o aparecimento de um novo e elitista meio de transporte (o
automóvel), a sofisticação tecnológica do transporte de massa que servia às áreas
urbanas (o bonde elétrico), e a importância cada vez maior da cidade no contexto
internacional não condiziam com a existência de uma área central ainda com
características coloniais, com ruas estreitas e sombrias, e onde se misturavam as sedes
dos poderes político e econômico com carroças, animais e cortiços. Não condiziam,
também, com a ausência de obras suntuosas, que proporcionavam status” às rivais
platinas. Era preciso acabar com a noção de que o Rio era sinônimo de febre amarela
e de condições anti-higiênicas, e transformá-lo num verdadeiro símbolo do “novo
Brasil” (Abreu, 2022, p. 81).
Para isso, Passos, assim que assumiu a prefeitura, reorganizou a Comissão da Carta
Cadastral da cidade, instituindo uma ordem de recuo progressivo dos edifícios e a
uniformização do alinhamento das ruas da cidade (Abreu, 2022). Tomando como exemplo as
ruas Salvador de e Mem de Sá, que ligariam o Estácio à Lapa, as vias de 17 metros foram
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concretizadas a partir da demolição do morro do Senado e, também, “[...] inúmeras casas que
serviam de residência às populações pobres [...]. Iniciava-se, assim, com impetuosidade, o
processo de renovação urbana das freguesias centrais, que viria a atingir principalmente os
quarteirões operários” (Abreu, 2022, p. 82).
Outras vias do centro urbano do Rio de Janeiro foram reformadas, seguindo normais
similares de largura das vias e causando consequências similares nos processos de expulsão
das classes mais pobres em direção a outras regiões da cidade como cortiços ainda não
saneados e morros como Providência, Favela e Santo Antônio. Para além dos processos de
padronização de edifícios e alargamento das vias, Passos determinou outros processos
intervenções de caráter mais estético nos distritos da cidade:
Quanto a obras de embelezamento propriamente ditas, várias foram as ações
empreendidas por Passos. A Praça XV, o Largo da Glória, o Largo do Machado, a Praça
São Salvador, a Praça Onze de Junho, o Passeio Público, e a Praça Tiradentes, foram
agraciados com estátuas imponentes e/ou tiveram seus jardins melhorados; as ruas
do Centro, Botafogo e Laranjeiras passaram por um surto de arborização e as estradas
do Alto da Boa Vista sofreram várias modificações. Além disso, foram construídos
pavilhões arquitetônicos em determinados pontos da cidade (Pavilhões de Regatas e
Mourisco, em Botafogo, Vista Chinesa, Pavilhão do Campo de São Cristóvão), além de
“um teatrinho Guignol para a petizada” na Praia de Botafogo. Deu-se início, ainda à
construção do Teatro Municipal, em terreno adquirido pela Prefeitura por
551:875$000. Esta obra, que teve toda a sua estrutura metálica importada da França,
era, segundo uma artista francesa em visita ao Rio e presente à inauguração “plús riche
que celui de l’Opera de Paris” (Abreu, 2022, p. 84).
Passos reforçou, também, alguns mecanismos de repressão que, em grande medida,
afetaram as populações negras da cidade. Ao proibir, por mecanismos legais, o comércio
ambulante e a mendicância, afetou duplamente o direito de circulação de negros cariocas no
centro urbano: as quituteiras que vendiam seus produtos nas feiras do centro da cidade
passaram a ser reprimidas pela autoridade blica, enquanto a proibição da mendicância
reforçava ciclicamente a aplicação arbitrária das Leis da Vadiagem (Abreu, 2022).
De forma a destacar o peso que as Reformas Passos tiveram na rotina das camadas
mais pobres do Rio de Janeiro, apontamos a partir de Abreu (2022) que, apenas para a
construção da Avenida Central atual Rio Branco a quantidade de habitações demolidas
varia entre duas e três mil. Novamente, importa destacar que tal processo não foi
acompanhado de políticas públicas que pudessem efetivamente mitigar o déficit populacional
da cidade, que foi agravado pelas próprias ações do poder público na década de 1900. Apesar
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de algumas poucas vilas operárias terem sido finalizadas no período, foram insuficientes para
abrigar tamanho contingente de trabalhadores forçados a se deslocar pelo Rio de Janeiro.
Parte considerável deste contingente passou a ocupar, também, os morros já ocupados
décadas por consequência da histórica negligência governamental para com os grupos
marginalizados da sociedade brasileira. A Favela (que em alguns anos viria a se tornar
sinônimo de habitações precárias espalhadas pelas encostas do Rio de Janeiro, sejam nos
distritos centrais ou nos subúrbios mais distantes), continuou crescendo em tamanho
alimentada pelas dinâmicas de ocupação espacial no contexto das reformas urbanas e
intervenções sanitárias nos cortiços e notoriedade, ganhando cada vez mais destaque nas
colunas criminais dos diversos jornais cariocas. A violência tornou-se rotina (Figura 4), aos
olhos dos escritores que, em grande medida, nunca haviam pisado nos espaços que tão
avidamente criticavam por meio de suas palavras.
Imagem 4. Charge “Prato de todo o dia”
Fonte: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, nº 101. 11 de abril de 1909, p. 1.
Nesse contexto, foram realizadas campanhas sanitárias no morro da Favela, como as
lideradas pelo médico Oswaldo Cruz em 1907, durante a prefeitura de Sousa Aguiar. Essas
campanhas não conseguiram cumprir com seus objetivos (o total saneamento da Favela, ainda
no ano de 1907), mas o sucesso parcial na demolição de um dos setores do morro acabou por
dispersar uma parte deste contingente em direção a outros espaços da cidade. A “sucursal da
Favela” surgiu próxima à estação de Dona Clara, nos subúrbios do Rio de Janeiro (Rezende,
2023), acompanhada pelos discursos mobilizados pela imprensa, de um antro de criminosos
propício à disseminação de vícios, que ameaçavam a moral carioca e a vida dos cidadãos
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corretos. O “Século das Favelas”, como brilhantemente definido por Chalhoub (1996), estava
apenas começando, animado por discursos de “civilização” e “progresso nacional”
racialmente orientados.
É importante ressaltar que as repercussões da ideologia da Higiene não ficaram
temporal e espacialmente alocadas na década de 1900. O discurso higienista esteve presente
em diversos projetos e intervenções urbanísticos que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro
nas décadas seguintes: ainda na década de 1900, a finalização do aterramento do morro do
Senado, em 1906, que deu lugar à atual Praça da Cruz Vermelha; a demolição do morro do
Castelo, ocorrida em 1922, que partia da premissa de melhorar a circulação de ar do centro
urbano (um resquício da teoria dos miasmas, que relacionava maus cheiros a vetores de
doenças), escondendo o fato de ali, também, encontrarem-se assentados uma grande
quantidade de pessoas pertencentes às classes mais pobres da cidade; por fim, a demolição
do morro de Santo Antônio, na década de 1950.
Nesse período, a ideologia da Higiene atuou de forma coordenada com a especulação
imobiliária, na valorização dos terrenos que eram desocupados. O discurso médico e técnico
aliou-se, novamente (assim como havia acontecido décadas antes durante a demolição do
Cabeça de Porco), à dinâmica do Capital para a remodelagem da Capital brasileira.
Considerações finais
O texto propõe reflexões que buscam articular as ideologias racistas que alicerçaram a
produção científica brasileira com os planos de ocupação do espaço urbano da cidade do Rio
de Janeiro na década de 1900, os primeiros passos de uma infante república. Considera-se que
tais pensamentos, que buscavam uma sistematização racional de temáticas como “civilização”
e “progresso” para a construção de uma moderna nação brasileira foram orientadas a partir
de um conjunto de teses, atualmente definidas como racismo científico, que indicavam os
aspectos necessários para o nascimento de um “Brasil do futuro”.
Primeiramente, foi construído o “brasileiro ideal”: branco, europeu, naturalmente
civilizado, moralmente ilibado e capaz de competir no novo mercado de trabalho brasileiro,
que havia superado, enfim, o sistema escravista. Em segundo, estabelece a figura do
“criminoso nato”: negro ou mestiço, de ascendência africana, selvagem por natureza,
propenso ao crime, à preguiça, à promiscuidade, e incapaz de integrar o mundo do trabalho
moderno sem estruturas de controle corporal, como as violências da tortura e do trabalho
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forçado da escravidão. Nos primeiros anos da República, esta hierarquização tomou ares de
política pública com a imigração em massa de milhões de europeus para ocupar os espaços
sociais, os quais os negros nacionais supostamente seriam incapazes de assumir.
Portanto, busca-se apontar algumas ideias: a ideologia do branqueamento apontava
rumos para o progresso nacional diretamente associados ao embranquecimento de sua
população (tanto biológico por meio da imigração em massa de europeus e do incentivo à
miscigenação racial com o propósito de realizar a “Redenção de Cam” quanto
comportamental pela fuga do negro de si na tentativa de integrar o corpo social brasileiro e
pelas instituições educacionais, umbilicalmente conectadas à retórica sanitarista da época); o
embranquecimento da população uniu-se à ideologia da Higiene, que associava a construção
da civilização com as ações de higienização da sociedade, influenciando as políticas de
ocupação dos espaços da cidade do Rio de Janeiro, ainda no Império presente nas políticas
de combate aos cortiços, habitações predominantemente ocupadas por negros e,
novamente, durante a República no cerco ao cortiço Cabeça de Porco e, posteriormente, nas
intervenções da Higiene nas favelas cariocas. As Reformas Passos, que buscavam, além de
uma revolução estética e dos usos da cidade na materialização de uma “Paris dos Trópicos”,
o saneamento do centro urbano do Rio de Janeiro, seriam também diretamente influenciadas
pela “cientificidade” destas ideologias. Dessa forma, a produção do espaço carioca,
fundamentou-se na exclusão de uma massa negra e pobre da população, em grande medida
já marginalizada pelo legado nefasto da escravidão.
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