Da história instantânea ao arquivo infinito: arquivo,
memória e mídias eletrônicas a partir do Center for
History and New Media (George Mason University, EUA)
From instant history to the infinite archive: archive,
memory and digital media as seen through the work of
the Center for History and New Media (George Mason
University, USA)
SILVEIRA, Pedro Telles da
1
Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir acerca da interrelação entre
tecnologias digitais, mídia e experiência histórica. Para isso, estuda-se dois arquivos
digitais desenvolvidos pelo Roy Rosenzweig Center for History and New Media (CHNM),
centro de estudos criado em 1994 na George Mason University, nos Estados Unidos.
Esses arquivos, relacionados aos eventos de 11 de setembro e a passagem do furacão
Katrina, respectivamente, trazem indagações a respeito da relação entre vivência
histórica e o uso dos registros históricos. Mais especificamente, eles parecem dissolver
o contínuo histórico numa série de elementos discretos - os registros históricos
midiáticos -, rechaçando a possibilidade de um entendimento narrativo do passado.
Essa recusa da narrativa os aproxima da reflexão sobre a representação dos eventos
1. Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição pela qual obteve a
Licenciatura em História (2009) e o Bacharelado em História (2013). É também mestre em História pela
Universidade Federal de Ouro Preto (2012). Atualmente conduz pesquisa sobre história digital e escrita
da história sob orientação do Prof. Dr. Fernando Nicolazzi. E-mail para contato: doca.silveira@gmail.
com Endereço profissional: Avenida Bento Gonçalves, 9500, Bairro Agronomia, Porto Alegre – RS. CEP:
91501-970, Caixa Postal 15055.
Recebido em: 26/02/2016
Aprovado em: 19/04/2016
SILVEIRA, Pedro Telles da
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 24-42, jan.-jun., 2016.
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traumáticos contemporâneos; desse modo, procura-se mostrar como os arquivos
digitais do CHNM podem ser estudados à luz dos debates contemporâneos acerca da
memória e da escrita da história.
Palavras-chave: Memória – Internet – Arquivo – Cultura de massa – Evento modernista
– Passado prático
Abstract: This paper seeks to examine the interaction between digital technologies,
media and historical experience. It studies two digital archives developed at the Roy
Rosenzweig Center for History and New Media (CHNM), a research center established
in 1994 at the George Mason University in Virginia, USA. These digital archives, related
to the events of September 11
th
and Hurricane Katrina, raise questions about the
relationship between historical experience and the usage of historical registers. More
specifically, they appear to dissolve the historical continuum into a series of discrete
elements of mediatized historical registers, thus rejecting the possibility of a narrative
understanding of the past. This narrative rejection brings both archives to the fore in
the debate about the representation of contemporary traumatic events. As such, we
attempt to show how the initiatives developed by CHNM can be thought of and studied
in light of contemporary discussions about memory and historical writing.
Keywords: Memory – Internet – Archive – Mass culture – Modernist event – Practical
Past
Enquanto passava suas fitas do formato analógico ao digital, o compositor norte-
americano William Basinski notou a ocorrência de um estranho fenômeno. Conforme
elas eram reproduzidas, as fitas – demasiado velhas – se esfarelavam, desfazendo-se
em fragmentos. O compositor decidiu, então, gravar o som que saía, mantendo-as em
loop contínuo até que estivessem de tal modo comprometidas que se esgotassem.
O problema técnico enfrentado por Basinski ressoou fortemente na esfera
pública norte-americana – e os detalhes pareceriam preparados demais, talvez
inverossímeis, caso um ficcionista os tivesse inventado. O compositor terminara de
registrar a desintegração de suas fitas enquanto gravava em filme, do terraço do prédio
onde morava, o colapso das torres gêmeas do World Trade Center em consequência dos
ataques de 11 de setembro. Entre o pó que se acumulara no apartamento do compositor
e aquele que cobria as ruas do Sul de Manhattan, desvelava-se uma dimensão de
perda, esquecimento, rememoração e persistência que encontra eco no som abafado,
por fim inaudível, das “composições” que Basinski escolheu denominar, bastante
apropriadamente, Disintegration Loops.
Não tardou para que as composições fossem erigidas em símbolo das torres
perdidas. Em setembro de 2011, na cerimônia que marcava os dez anos dos ataques,
elas foram tocadas pela Orquestra Sinfônica de Nova York no próprio Marco Zero. Logo
depois, as composições receberam uma edição de luxo organizada pelo selo independente
Temporary Residence, sendo editadas numa caixa contendo 9 LPs, 5 CDs (incluindo um
com a apresentação ao vivo em Nova York e uma segunda apresentação na Bienal de
Veneza), um livro de ensaios com 144 páginas e a gravação de vídeo original feita por
Basinski no dia dos ataques. A obra do compositor norte-americano se transformara
num inesperado monumento aos ataques de 11 de setembro.
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O trabalho de Basinski e sua repercussão trazem alguns elementos relevantes
para aqueles interessados nas mediações da memória na esfera pública contemporânea.
Enquanto representação de um evento traumático, ele é marcante por sua recusa a
uma figuração direta dos acontecimentos, enquadrando-se numa espécie de estética
que vem ganhando espaço recentemente ao lidar com a representação de eventos
considerados traumáticos;
2
o problema técnico que originou o trabalho não deixa de
funcionar como metáfora para aquilo que Alison Landsberg denominou “memória
prostética” (LANDSBERG, 2004) e que encontra na exteriorização midiática o ponto de
encontro entre a memória pessoal e a coletiva (ASSMANN, 2011, p. 24; HUYSSEN, 2003,
p. 17). Por último, a passagem do analógico ao digital através de uma cópia que pouca
relação tem com o original recorda a transformação identificada por Aleida Assman
na constituição do arquivo contemporâneo, no qual a preservação não se dá mais pela
busca de um portador de dados durável, mas sim pela constante reescrita do registro
que o contém (ASSMANN, 2011, p. 379).
No presente trabalho, gostaria de tomar alguns destes elementos em consideração
para refletir acerca da atuação do Roy Rosenzweig Center for History and New Media
(CHNM), sediado na George Mason University, em Washington, D.C., na criação de dois
arquivos digitais dedicados, um ao 11 de setembro, outro, à passagem do furacão Katrina
por Nova Orleans. Estes arquivos – sites onde se procura recuperar o máximo possível
de registros acerca destes acontecimentos – trazem importantes questionamentos
relativos ao cruzamento entre a vivência histórica contemporânea e a experiência
midiática. Sendo assim, eles são ao mesmo tempo uma resposta e um sintoma de uma
situação onde a memória e a história são vivenciadas, em grande medida, através das
tecnologias de mídia.
Este trabalho está dividido em quatro seções. Na primeira, procedo a uma
apresentação dos dois arquivos aqui estudados assim como da atuação do CHNM. Esta
introdução aos arquivos trará à tona a noção de história instantânea que é captada,
ainda que fugazmente, no discurso dos membros do centro de estudos norte-americano.
Uma segunda seção do trabalho visa compreender o que seria esta noção de história
instantânea tendo em vista as alterações na experiência da temporalidade histórica
ocasionadas nas últimas décadas. Um terceiro momento problematiza a presença do
arquivo como foco não apenas da reflexão mas também da representação cultural mais
ampla a respeito da história. Neste sentido, não é inoportuno que o CHNM crie arquivos
– porém que tipo de arquivos são estes? Por fim, uma quarta e última seção procura
compreender, ainda que brevemente, os objetivos destes arquivos através do confronto
entre sua atuação e o papel reservado à história na esfera pública por meio do conceito,
reelaborado recentemente por Hayden White, de passado prático.
2. Refiro-me, por exemplo, ao Monumento aos Judeus Mortos, em Berlim, com seus (an)icônicos corre-
dores de monólitos, e à capa da revista New Yorker de 24 de setembro de 2011, desenhada por Art
Spiegelman e Françoise Mouly, que depois deu origem ao álbum In The Shadow of No Towers. Um ter-
ceiro exemplo seria o Tribute in Light, instalação artística na qual fachos de luz eram projetados no local
onde estavam as Torres Gêmeas, e que foi reproduzida – intermitentemente – desde março de 2002, na
celebração dos seis meses do ataque, até à inauguração do novo prédio, One World Trade Center, e seu
memorial dos eventos, em 2013. Uma interessante comparação entre o Tribute in Light e o memorial ofi-
cializado aberto recentemente ao público pode ser encontrada em GOPNIK, 2014. A respeito desta “es-
tética” da não-figuração, pode-se pensar nela como um desenvolvimento do memorial de guerra no final
do século XX, os quais passaram da celebração da vitória ao lamento pela perda de vidas, como analisa
KOSELLECK, 2002, pp. 285-325.
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Coletar e preservar
Às 8h46 de 11 de setembro de 2001, o Boeing 767 que operava o voo 11 da American
Airlines, partindo de Boston e com destino a Los Angeles, foi desviado de sua rota,
chocando-se com a Torre Norte do complexo de prédios do World Trade Center, em
Nova York. Enquanto a televisão cobria ao vivo o desenrolar deste primeiro choque,
um segundo avião foi arremessado contra a Torre Sul, dezessete minutos depois. Estes
dois acontecimentos – logo descritos como ataques terroristas – foram seguidos pelo
choque de um terceiro avião contra o edifício do Pentágono, em Arlington, Virgínia, e
pela queda de um quarto avião perto de Shanksville, Pensilvânia, no que se descobriu
depois foi o resultado da tripulação reagindo aos sequestradores que haviam tomado
controle da aeronave. Em seguida, numa das imagens que inauguraram o século, com
um intervalo de uma hora e meia entre si, ambas as torres do World Trade Center
entraram em colapso, desabando sobre o chão de Manhattan.
Para além das consequências sócio-políticas dos acontecimentos daquele dia,
muitas das quais ainda estão presentes – como a instabilidade política no Oriente Médio
e na Ásia Central, o aumento da vigilância governamental e a restrição às liberdades
civis –, outras medidas mais diretas foram tomadas: o espaço aéreo dos Estados Unidos
foi fechado, a Bolsa de Nova York cerrou suas portas até a semana seguinte e a Library
of Congress, junto com o Internet Archive, tomou a decisão de rastrear e armazenar
todo o conteúdo disponível em sites norte-americanos e, depois, em escala mundial,
relacionado aos ataques. Num período de cerca de três meses, os técnicos envolvidos
neste projeto guardaram o conteúdo de 2313 sites e recolheram a referência de outros
trinta mil que abordaram, de uma forma ou de outra, este evento.
3
A decisão de armazenar o conteúdo relativo aos ataques é simultânea à
discussão que se colocou, a respeito da construção de um memorial a eles. De um
lado, os arquitetos e empreendedores com o imperativo de que se reconstruísse mais e
rapidamente; de outro, o consenso que se gerara de que deveria haver alguma espécie
de memorial. No caso concreto de Nova York, chocava-se o “desejo de reconstruir uma
localização imobiliária privilegiada com a necessidade de celebrar os mortos” (HUYSSEN,
2003, p. 158). Ambos os exemplos também demonstram que os acontecimentos já
foram compreendidos como históricos praticamente enquanto aconteciam – porém
enquanto no espaço físico era necessário fazer uma escolha entre a reconstrução e a
comemoração, eventualmente chegando-se a um compromisso entre os dois, o espaço
da internet oferecia a possibilidade de um campo virtualmente ilimitado dedicado à
manutenção em aberto daquela ferida.
Nesse sentido, logo depois, no dia 15 de setembro, foi disponibilizado ao
público o site wherewereyou.org, desenvolvido por dois calouros de universidade
norte-americanos e um aluno de high school trabalhando em conjunto a partir de
localidades diferentes nos Estados Unidos. O site permaneceu ativo pelo intervalo de
um ano, durante o qual coletou 2527 relatos submetidos por usuários registrando suas
impressões a partir da simples pergunta de onde eles estavam naquele fatídico dia.
Estes exemplos ilustram a coincidência, salientada por dois pesquisadores
do CHNM, Roy Rosenzweig e Daniel Cohen, entre os ataques do 11 de setembro e
3. Projeto que pode ser acessado por este endereço: http://lcweb2.loc.gov/diglib/lcwa/html/sept11/sep-
t11-overview.htm.
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uma profunda mudança no uso da Web. Se antes a internet era utilizada para obter
informações ou saber as notícias do dia, configurando um uso passivo, agora ela passava
a ser usada ativamente por indivíduos que produziam conteúdo próprio e procuravam,
com isso, comunicar-se com outras pessoas (COHEN; ROSENZWEIG, 2011, p. 147). Não
é à toa que o rótulo de Web 2.0, o qual designaria a transição de uma internet organizada
segundo um conjunto de páginas estáticas a uma plataforma de criação conjunta entre
computador e usuários, surgiria logo depois.
Outra iniciativa, de maior escala, foi aberta ao público em março de 2002, para
marcar os seis meses dos atentados: o September 11th Digital Archive. Elaborado em
parceria pela City University of New York (CUNY) junto ao CHNM a partir de uma
doação da Sloan Foundation, o September 11th Digital Archive tinha o objetivo, segundo
seus criadores, de
[...] coletar – diretamente de seus donos – aqueles materiais digitais que
não estavam disponíveis na Web pública: artefatos como e-mails, fotografias
digitais, documentos de processadores de texto e narrativas pessoais. Nós
também queríamos criar um depósito central para os muitos e mais frágeis
esforços amadores que já estavam em curso (COHEN; ROSENZWEIG, 2011, p.
147; tradução nossa)
Desde o início, portanto, o site já colocara as diferentes fronteiras que cruzaria
em mais de um sentido – entre o efêmero e o permanente, entre o público e o privado
– e aquela que cruzaria apenas uma vez: entre o analógico e o digital.
A escolha do CHNM para desenvolver o projeto não foi fortuita, tendo em vista
que desde 1994 ele estava envolvido na elaboração de iniciativas que combinavam o
conhecimento histórico e as tecnologias de mídia, como softwares ligados à pesquisa
e ao ensino de história, CD-ROMs e sites. O centro fora criado por Roy Rosenzweig
(1950-2007), que partiria da história social do trabalho em direção ao campo da história
pública, investigando as percepções populares a respeito da história.
4
O September
11th Digital Archive, todavia, se constituiria como o maior projeto no qual o CHNM se
veria envolvido. A experiência prévia de seus pesquisadores tinha sido com a criação
de pequenos sites memoriais, muitas vezes relacionados à história da informática – e,
além das iniciativas próprias do CHNM, o campo da história digital e dos repositórios
digitais de informação histórica nos Estados Unidos era marcado pelo projeto The
Valley of the Shadow: Two Communities in the American Civil War, desenvolvido desde
1993 por Edward L. Ayers a partir de sua tese de doutorado.
5
Ainda assim, o CHNM se
destaca pela carga de reflexão teórica e pelo conjunto de suas iniciativas práticas no
entrecruzamento entre história digital e história pública.
O crescimento do site, reportam seus criadores, foi exponencial. Partindo de
328 submissões em março, ele passou a 1624 em agosto do mesmo ano e, apenas no
dia 11 de setembro de 2002, aniversário dos ataques, recebeu mais de 13 mil diferentes
contribuições. Treze anos após sua criação, o acervo, cujo site não é mais atualizado
mas que ainda pode receber submissões, conta com cerca de 150 mil “objetos digitais”
distribuídos sob a forma de relatos escritos, fotografias, documentos diversos, e-mails,
registros de áudio e vídeo, entre outros (ROSENZWEIG, 2011, p. 148-149).
4. Neste último campo, destaca-se o livro de ROSENZWEIG; THELEN, 1998.
5. http://valley.lib.virginia.edu/
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O sucesso do September 11th Digital Archive motivou os pesquisadores do CHNM
a realizar uma segunda iniciativa, a criação do Hurricane Digital Memory Bank (HDMB).
Em parceria com a University of New Orleans, ele tinha propósitos semelhantes aos
de seu congênere nova-iorquino: coletar o máximo possível de materiais relacionados,
agora, à passagem dos furacões Katrina e Rita pelo Sul dos Estados Unidos. Segundo
seus criadores, “assim que o furacão Katrina atingiu o litoral no dia 29 de agosto de
2005, a equipe do CHNM rapidamente percebeu que se estava vivenciando um momento
muito significativo da história americana”, de modo que era preciso agir rápido para
[...] coletar e preservar o máximo da “história instantânea” destes eventos –
história que estava sendo criada e publicada por milhares de pessoas comuns
em seus blogs pessoais, em serviços de compartilhamento de fotos e no
YouTube (BRENNAN; KELLY, 2009; tradução nossa).
Em comparação com o September 11th Digital Archive, o HDMB é considerado
uma espécie de fracasso por aqueles que o elaboraram, uma vez que reuniu “apenas”
vinte e cinco mil objetos digitais. Entre as razões para este número mais reduzido, os
autores apontam a concorrência com outros serviços de compartilhamento de conteúdo,
como o Flickr e o YouTube, que não existiam em 2001 (BRENNAN; KELLY, 2009). Esta
situação demonstra que o destino dos arquivos digitais acaba por ser determinado
pela concorrência com outros sites e serviços online mas também mostra que um site
como o September 11th Digital Archive pode ser visto como pioneiro na disponibilização
de alguns destes serviços, como o de compartilhamento de fotos, muito embora não
enquadrasse estes serviços na esfera de funcionamento das redes sociais.
6
Estes fatores tornam necessário ao historiador que se preocupe com a divulgação
de seu arquivo digital – que é também, não se pode esquecer, um site de internet. Segundo
Roy Rosenzweig e Daniel Cohen, é preciso elaborar de antemão um plano que preveja
como e quando o site alcançará seus objetivos, às vezes muito antes dele efetivamente
ir ao ar. Também se deve considerar que, “se você consegue ligar seu projeto de alguma
maneira a acontecimentos correntes, um release bem localizado pode atrair atenção da
mídia e aumentar o número de contribuições” (COHEN; ROSENZWEIG, 2011, p. 138). Os
arquivos digitais bem-sucedidos, dessa forma, estão condicionados a acontecimentos
que ainda estão “quentes” na memória de seus espectadores/usuários, seja porque
são recentes – como o 11 de setembro – ou porque possuem forte presença midiática
mesmo após sua ocorrência – a Segunda Guerra, pode-se pensar.
7
Percebe-se que a criação dos arquivos digitais pelo CHNM se aproveita da
existência de uma paisagem midiática condicionada por um conjunto de práticas e
tecnologias – como a gravação em vídeo e seu compartilhamento online – ao mesmo
6. O September 11th Digital Archive e o HDMB parece se assemelhar mais a uma espécie de fórum, um
lugar onde pessoas com interesses em comum podem depositar seus arquivos, do que uma rede social,
uma vez que lhes falta as três características que podem ser utilizadas para definir estes sites: “(1) a
construção de um perfil público ou semi-público dentro de um sistema fechado, (2) a articulação de uma
lista de outros usuários com os quais esses perfis compartilham uma conexão, e (3) visualizar e trocar
sua lista de contatos e aquelas feitas por outros usuários no interior do sistema” (BOYD; ELLISON, 2008,
p. 211).
7. Refiro-me ao projeto, elaborado pela BBC, do arquivo World War 2 People’s War, que coletou testemu-
nhos de veteranos da Segunda Guerra Mundial. Para o site, acessar www.bbc.co.uk/history/ww2peo-
pleswar/.
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tempo que a reitera e a reproduz. Não por acaso, o comportamento dos historiadores
por trás destes sites é o mesmo dos designers, publicitários e empreendedores que
procuram bem-situar suas marcas e estabelecer o lugar de mercado de seus produtos.
Considerações como estas, entretanto, não devem ser vistas como negativas, uma vez
que também dizem respeito à ampliação do campo de trabalho do historiador. Elas não
obstante indicam que os repositórios aqui estudados são parte ativa de uma situação na
qual a história é vivenciada, pessoal e coletivamente, através da mídia.
Memória e história em tempos “quentes”
São dois os traços que parecem unir os eventos que motivaram os arquivos digitais
criados pelo CHNM. Em primeiro lugar, ambos possuem caráter traumático; depois,
ambos contaram com enorme repercussão midiática. No caso do 11 de setembro em
especial, a própria escala global da circulação das imagens o transformou, como lembra
François Dosse, simultaneamente em um acontecimento-mundo e um acontecimento-
monstro (DOSSE, 2013, p. 261), interpelando a todos como espectadores e testemunhas
– e efetivamente desfazendo a distinção entre as duas categorias. Estes eventos são
compreendidos tanto através de sua dependência midiática quanto da extensão da
comunidade que se sente participante deles.
Segundo Aleida Assmann e Sebastian Conrad, atualmente a memória percorre
caminhos que escapam às fronteiras nacionais e alcançam uma esfera pública que
pode ser qualificada de global (ASSMANN; CONRAD, 2010, p. 4). Esta esfera pública
alargada, entretanto, não me parece se configurar a despeito das unidades nacionais,
mas sim através delas, como mais um fator de permeabilidade a desestabilizar, mas
não a descartar, a soberania nacional. Como defende Andreas Huyssen, “ainda que
os discursos memorialísticos pareçam ser globais em um registro, eles ainda estão
fundamentalmente ligados a histórias de nações e estados específicos” (HUYSSEN,
2003, p. 16).
Entre a dimensão global e nacional dos discursos e práticas de memória, parece-me
mais proveitoso constatar a existência de tecnologias de mídia que atuam simultaneamente
como tecnologias de memória (LANDSBERG, 2004, p. 1). Estas tecnologias, como já foi
brevemente apontado acimam, exteriorizam a memória em determinados suportes que
servem como ponto de encontro para a formação de identidades tanto individuais quanto
coletivas (LANDSBERG, 2004, p. 2). Os meios de comunicação de massa e as ferramentas
digitais de comunicação, ainda que estas se baseiem num princípio de customização e
atendimento de necessidades pessoais,
8
alçam à esfera pública o fenômeno, anteriormente
privado, da lembrança, da repressão e do esquecimento (HUYSSEN, 2003, p. 17). Com isso,
a memória deixa de se situar na psique individual e se torna uma forma de representação
ou, eventualmente, um produto.
Essa exteriorização midiática é capaz de gerar tanto uma espécie de memória
espacial e temporalmente vicária (LANDSBERG, 2004, p. 143)
9
quanto permite configurar
8. Segundo Lev Manovich, as novas mídias funcionam segundo uma lógica da personalização que é difer-
ente daquela da cultura de massa, modificação que acompanha a passagem de uma sociedade industrial
para uma pós-industrial (MANOVICH, 2001, p. 30).
9. LANDSBERG, op. cit., p. 143. Embora a autora, na citação a seguir, ainda sustente que o corpo diz
respeito ao espaço próprio à memória, não é possível evitar notar que uma experiência vicária só pode
ser apreendida indiretamente. Com isso, é interessante contrastar este deslocamento da memória para
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uma “comunidade imaginada” que não está mais circunscrita ao espaço geográfico ou
simbólico da nação (LANDSBERG, 2004, p. 8). Como afirma Alison Landsberg, utilizando
seu conceito de “memória prostética”, com ela,
[...] assim como com formas anteriores de recordação, as pessoas são
convidadas a assumir memórias de um passado que elas não viveram. [...] A
memória continua sendo um fenômeno sensorial experienciados pelo corpo,
assim como continua a derivar muito de seu poder através da afecção. Mas ao
contrário de suas formas anteriores, a memória prostética tem a habilidade
de desafiar a lógica essencialista de muitas identidades de grupo. A cultura
de massa transforma memórias particulares em algo mais amplamente
disponível, de modo que pessoas que não tem nenhuma reivindicação “natural”
a ela podem, todavia, incorporá-las em seu próprio arquivo de experiência
(LANDSBERG, 2004, p. 8-9; tradução nossa).
Embora considere que o conceito formulado pela autora parece, às vezes, dever
demasiadamente a uma determinada concepção de memória, quando o destaque
deveria ser o papel midiático destas extensões culturais – as próteses –, ele não
obstante assinala a coincidência entre a circulação dos discursos de memória e a
cultura de massa. Citando Andreas Huyssen mais uma vez, a comodificação do evento
não necessariamente significa sua banalização (HUYSSEN, 2003, p. 18)
10
– e, na medida
em que se reconhece que a memória se transformou também numa representação,
“nós devemos estar abertos às muitas possibilidades diferentes de representar o real
e suas memórias”, de modo que o trauma e o entretenimento ocupam o mesmo espaço
público e não são mutuamente exclusivos (HUYSSEN, 2003, p. 19). Do mesmo modo,
a comunidade “artificial” criada pela circulação imagética não é menos legítima que o
conjunto restrito de indivíduos que foi diretamente afetado por um determinado evento,
algo que a dificuldade de estabelecer qual é o recorte de pessoas a ter sofrido o 11 de
setembro deixa bastante claro.
Essa produção de memória depende, é claro, da produção midiática, de modo
que a lembrança do evento se transforma na recordação da (re)produção midiática
de sua ocorrência. Para tomarmos um exemplo prosaico, as constantes modas retrô
atestam que a memória coletiva das últimas décadas está ligada não apenas aos
acontecimentos políticos mas também aos gostos, músicas, filmes que moldaram a
experiência de determinada geração (REYNOLDS, 2011, p. XXIX). Um exemplo menos
prosaico, contudo, é o dos eventos modernistas.
O historiador norte-americano Hayden White cunhou o conceito de evento
modernista para designar um conjunto de eventos que tomaram lugar no século XX
que desafiavam os modos de representação que a historiografia ou a literatura haviam
tradicionalmente desenvolvido. O argumento central de White era o de que esses
acontecimentos questionavam a fronteira entre fato e interpretação (WHITE, 1999)
e, por conseguinte, não poderiam ser descritos a partir de um ponto de vista que
oferecesse uma visão integral deles ou não poderiam ser conscritos a uma narrativa
fora do corpo com o reencaminhamento da historicidade para o corpo salientada por Shoshana Felman
na condução da prática jurídica. O corpo é o local último da violência e, por conseguinte, também da me-
mória e do testemunho (FELMAN, 2002, p. 9).
10. Nesse sentido, as etapas na transformação de um evento em ícone global, ainda que pertinentes, não
deixam de reproduzir um preconceito a respeito do que seriam os limites “corretos” aos quais determi-
nado evento deve se conter (ASSMANN, 2010, p. 110).
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onde seriam causa ou efeito de um acontecimento anterior ou posterior (WHITE, 1999,
p. 71). Como esses eventos se recusam a encontrar um lugar pacífico numa narrativa,
eles não podem ser adequadamente lembrados tampouco podem ser esquecidos porque,
de certa forma, eles nunca acabaram (WHITE, 1999, p. 69).
O que me parece interessante na concepção trazida por Hayden White é a
percepção, explicitada por Herman Paul, de que “no caso dos eventos modernistas,
sua incapacidade de serem imaginados era um resultado do desenvolvimento sem
controle da tecnologia” (PAUL, 2011, p. 131), ou, como o próprio White abordou em texto
recente, o reconhecimento de que a tecnologia permite atualmente tipos de eventos
que não eram possíveis antes indica que “a própria mudança muda, se não na natureza,
ao menos na história” (WHITE, 2014, p. 47). Embora estas afirmações digam respeito
ao nexo entre desenvolvimento tecnológico e causalidade, eles também podem ser
pensados para a repercussão – ou recepção – desta categoria de eventos históricos.
Com a proximidade da terceira década do século XXI, a reprodução midiática é capaz
de transformar praticamente qualquer acontecimento em um evento modernista, com a
insistente repetição das imagens tornando incerta a “própria distinção entre passado e
evidência” (PAUL, 2011, p. 132). Os eventos não mais se distanciam – se concluem – após
terminados e, por conseguinte, são difíceis de serem narrados ou representados.
Segundo Andreas Huyssen, a memória histórica não é mais o que era, uma vez que
a “fronteira entre passado e presente costumava ser mais forte e estável do que parece
ser hoje” e, como resultado das tecnologias de mídia e de uma cultura museal cada vez
mais presente, o passado está ativo no presente de formas que não eram possíveis antes
(HUYSEN, 2003, p. 1). Esta situação foi trabalhada recentemente por Chris Lorenz, para
quem o quadro atual questiona o pressuposto básico dos historiadores segundo o qual
a perspectiva própria para o conhecimento histórico se dá a partir do distanciamento
temporal (LORENZ, 2014, p. 49). Para o autor, isso denotaria um passado que não se
afasta e que, por esse motivo, se interpenetraria com o presente, transformando a
própria concepção de temporalidade histórica (LORENZ, 2014, p. 52). O entendimento
do tempo histórico como formado por três momentos distintos – passado, presente
e futuro – estaria em xeque e, na falta de um vocabulário adequado a dar conta desta
situação, os diagnósticos seriam em tudo contraditórios. Para alguns, trata-se de um
momento presentista (HARTOG, 2014), para outros, porém, é como se o tempo tivesse
“ficado lento, como um rio que começa a se perder em seus meandros e formar poças”
(REYNOLDS, 2011, p. X). De qualquer forma, diante de um passado que se recusa a
“esfriar”, a memória não poderia ser pensada apenas como uma resposta emocional e
moral ao passado e a história somente como um tratamento crítico e metódico deste
mesmo passado (LORENZ, 2014, p. 54-55). História e memória deixam de ser opostos,
ainda que não se tornem exatamente complementares.
Estas considerações permitem abordar a categoria de história instantânea
visualizada, quase como de relance, no discurso de Sheila Brennan e T. Mills Kelly, os dois
pesquisadores do CHNM responsáveis pelo HDMB. Em sua breve mas incisiva análise
do September 11th Digital Archive, Claudio Fogu nota que o “primeiro aspecto a chamar
a atenção no arquivo digital dedicado especificamente ao evento histórico que define
nossa época é que o principal pedido feito pelos visitantes aos arquivistas foi [...] que
lhes providenciassem um “9/11 FAQ” (FOGU, 2009, p. 109). Ao invés de ser enquadrado
numa narrativa, o acontecimento histórico é reduzido aos “fatos”. Com isso, pode-se
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lembrar do que François Dosse afirmou, também com relação ao 11 de setembro: o
acontecimento, que “até então era privilégio do historiador [...] se reveste agora de um
caráter de exterioridade, de pré-construção, antes de qualquer forma de decantação
temporal” (DOSSE, 2013, p. 263). Essa redução é levada ainda mais longe quando se
considera que os arquivos digitais do CHNM proíbem a inserção de narrativas em seus
acervos documentais (FOGU, 2009, p. 109), de modo que neles não há conhecimento
de segunda mão, apenas testemunhos. Esta proibição ataca diretamente o problema do
evento histórico.
Segundo Hayden White, os fatos são tradicionalmente concebidos como parte
de uma rede discursiva, de modo que fazem referência a outros discursos ou outros
eventos para além do discurso (WHITE, 2014, p. 45),
11
enquanto os eventos estão
contidos no interior dos fatos. Compreendidos enquanto parte de fatos históricos,
os eventos históricos distinguem-se por serem sempre descritos e representados em
função de uma narrativa, pois se não o fossem, acabariam por ser mera enumeração,
uma crônica (WHITE, 2014, pp. 52-53).
12
O evento histórico se caracteriza, portanto, por
ser um ponto de inflexão, pressupondo a articulação entre momentos distintos – um
passado, um presente e um futuro.
No contexto de um passado que não passa, porém, o evento histórico perde
sua relação necessária com a narrativa e, por conseguinte, com a mudança. Torna-se
compreensível, dessa forma, uma categoria como a de história instantânea.
Para compreendê-la, pode-se comparar com a noção de história do tempo
presente. Para esta, é a densidade temporal que define a experiência histórica. O
recorte temporal da história do tempo presente é definido, grosso modo, pela percepção
da contemporaneidade, de modo que enquanto determinado evento ressoar na
consciência histórica do presente ou possuir testemunhas vivas, ele pode ser definido
como presente. No caso de uma história instantânea, porém, a densidade temporal é
substituída pela acumulação de registros. O evento não ganha mais seu significado pela
colocação numa narrativa, mas é dado como um conjunto de “fatos” cujos contornos já
estão delineados, à espera de serem preenchidos por peças como num quebra-cabeças.
A insatisfação dos criadores do HDMB deriva de que, se existe uma identificação entre
acumulação de registros e compreensão do evento, então a existência de registros que
foram perdidos ou que não podem ser reconduzidos ao acervo documental só pode
indicar que o acontecimento se mantém, em última análise, incognoscível.
Este conjunto de elementos, que parte da expansão de uma comunidade
de memória, passa pelo papel da mídia de massa e pelo entendimento da natureza
diferenciada dos eventos históricos contemporâneos alcança, por fim, a própria
compreensão da experiência e da temporalidade históricas atuais. Na próxima seção,
argumentarei que ela leva a uma situação na qual o arquivo se constitui como uma
espécie de escrita da história, ainda que essa escrita mais se distribua no espaço do
que se organize ao longo do tempo; para compreender isso, porém, é preciso delimitar
mais claramente o caráter desta história instantânea com a qual os membros do CHNM
parecem lidar: ela é instantânea não apenas porque é capturada enquanto ocorre mas
também porque ela é, essencialmente, estática, como um instantâneo que congela um
11. Nesta passagem, Hayden White neutraliza e brinca com a asserção de Roland Barthes segundo a qual
os fatos só possuem existência linguística.
12. Aqui Hayden White repete argumento de “The Value of Narrativity in the Representation of Reality
(WHITE, 1987, p. 1-25). A frase de Barthes referida acima constitui a epígrafe deste livro.
Da história instantânea ao arquivo infinito: arquivo, memória e mídias eletrônicas a partir do Center for History
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movimento durante sua execução.
Figurações do arquivo na cultura contemporânea
Em seu Espaços da recordação, Aleida Assman aborda o trabalho de alguns
artistas contemporâneos que tomam o arquivo como tema e/ou forma principal de suas
obras. Anselm Kiefer, Sigrid Sigurdsson, Anne e Patrick Poitier, entre outros, são vistos
como representantes de uma arte sobre a memória, e não mais de uma arte da memória,
de modo que seus trabalhos “não documentam [...] os grandes feitos da lembrança, como
o fazia a mnemotécnica, mas sim contabilizam “o balanço da perda” (ASSMANN, 2011,
p. 386). Em outras palavras, eles vêm após o esquecimento, e não antes. Numa cultura
obcecada com a memória e, logo, com o esquecimento, como a nossa, iniciativas como
estas trazem à tona a difícil relação entre recordação e esquecimento. Elas também
indicam, todavia, que nas últimas décadas o arquivo tem sido visto não apenas como um
espaço de armazenamento – o lugar onde as coisas morrem – mas também como um
espaço de criação – o lugar onde as coisas estão à espera de serem reencontradas – e,
por fim, como uma forma de representar o intrincado relacionamento entre indivíduo,
sociedade e passado.
Estas considerações permitem fornecer uma primeira resposta à indagação
feita, em outro momento, pela própria pesquisadora alemã. Aleida Assman se pergunta,
uma vez que “tornou-se igualmente claro que o essencial de uma vida humana não é
armazenado nem é armazenável”, então porque se valoriza justamente o registro miúdo
como porta de acesso à experiência real nas propostas de arquivamento ligadas às novas
tecnologias? (ASSMANN, 2011, p. 476). A pergunta pode ser transformada na acusação de
Anaclet Pons segundo a qual, por trás dos fundos documentais online, se manifesta uma
concepção de história tanto documentalista quanto monumentalizante (PONS, 2011, p.
43). A credibilidade do arquivo como forma de abordar o problema da memória, portanto,
é proporcional à ênfase no registro como portador da experiência histórica. Sobre este
duplo pano de fundo podemos interrogar os arquivos digitais aqui analisados.
Segundo Roy Rosenzweig, existiriam dois paradigmas envolvidos na conservação
do passado digital, um próprio à arquivística, o outro, à ciência da computação:
Enquanto projetos de arquivos e bibliotecas enfatizam “coleções de alta
qualidade construídas em torno a temas selecionados” e fazem a página de
internet ser a unidade de catalogação, o paradigma da ciência da computação
permite “arquivar a internet inteira conforme ela muda com o tempo e, depois,
aos serviços de busca encontrar a informação necessária” (ROSENZWEIG,
2011, p. 16; tradução nossa).
O paradigma arquivístico se organizaria como uma coleção física, na qual o
descarte é uma atividade corrente e necessária de modo a manejar tanto o espaço
quanto a representatividade do acervo; o paradigma da ciência da computação busca
armazenar os documentos da internet em suas diversas encarnações, preservando
como que momentaneamente sua instabilidade
13
– ou seja, instantâneos de um percurso
mais amplo. Neste segundo paradigma, como bem diagnostica Jairo Antonio Melo
Flórez, “o historiador muda de perspectiva e, antes de se preocupar em saber o que
13. Esta é a diferença entre passados “frios” e “quentes” abordada em COHEN, 2005.
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é possível conservar, se interessaria mais em como conservar” (FLÓREZ, 2011, p. 88).
Para entender se, como e por que isso seria possível, é preciso prestar atenção para as
próprias possibilidades técnicas descortinadas pelos meios digitais.
De acordo com Lev Manovich, um repositório digital difere de um acervo físico
porque “incorpora técnicas particulares do computador para estruturar e acessar os
dados, como a modularidade assim como sua lógica fundamental, a da programação
(MANOVICH, 2001, p. 214). Nesse sentido, o computador converte a informação numa
estrutura onde eles podem ser facilmente acessados, uma base de dados. A base de
dados é uma coleção de itens individuais onde cada um deles é tão relevante quanto o
outro e, mais importante ainda, onde novos dados podem ser inseridos em qualquer lugar
desta estrutura (MANOVICH, 2001, p. 218); sendo assim, a coleção não apenas nunca
está completa como também rejeita os princípios da classificação contextual do arquivo
tradicional (PONS, 2011, p. 48). Trata-se, portanto, de um arquivo infinito e, porque
infinito, um ao qual nenhuma lógica pode ser designada, invertendo a operação topo-
nomológica de constituição do arquivo preconizada por Jacques Derrida (DERRIDA,
2001, p. 13; ASSMANN, 2011, p. 368).
O interessante é considerar que a base de dados ocupa uma das extremidades do
espectro que tem o algoritmo em seu oposto (MANOVICH, 2001, p. 223). O algoritmo, em
termos simples, é o conjunto de procedimentos necessários para alcançar determinado
objetivo. Não existem exemplos puros da base de dados ou de algoritmos, já que ambos
são constantemente combinados, porém Lev Manovich cita os sites de busca como
exemplo do primeiro e, do segundo, o videogame (MANOVICH, 2001, p. 216); aplicando-
se ao campo da história, poder-se-ia pensar no arquivo digital como exemplo de base
de dados e na recriação digital de ambientes históricos em 3D como um caso que se
organiza em torno
do algoritmo (FOGU, 2009, p. 113-115). Em ambos os casos, o autor destaca que,
no computador, a narrativa e a descrição trocam de lugar, sendo esta muito mais comum
que aquela (MANOVICH, 2001, p. 217). Isso é especialmente válido no caso das bases de
dados, pois, segundo Manovich,
Enquanto uma forma cultural, a base de dados representa o mundo como
uma lista de itens e se recusa a ordená-los. Em contraste, a narrativa cria
uma trajetória de causa e efeito a partir de itens (eventos) aparentemente
desorganizados. Logo, a base de dados e a narrativa são inimigos naturais
(MANOVICH, 2001, p. 225; tradução nossa).
A base de dados é uma forma apropriada para a dissolução do enredo – ou da
“urdidura da trama”, para utilizar o belo linguajar de Paul Ricoeur (RICOEUR, 2010, v.1)
– no conjunto discreto dos eventos em torno dos quais ela se organiza. Um exemplo
concreto é a constatação de que tanto o September 11th Digital Archive quanto o HDMB
estão organizados por espécie de documento, e não segundo sua proveniência. Esta
ausência de contexto, que forneceria a ligação entre o que veio antes e depois, o que
procede de determinado lugar e não de outro, indica que ao se visitar estes sites se
está diante menos das bem-ordenadas estantes de uma biblioteca que das confusas
prateleiras de um gabinete de curiosidades.
Não é por acaso que estes sites estão abrigados, na página do CHNM, sob a aba
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de collecting + exhibiting, e não na de telling + understanding, aliás inexistente. Eles são
melhor entendidos como parte da cultura museal contemporânea, na qual a compreensão
narrativa é muitas vezes deixada de lado frente à saturação midiática. Esta cultura museal
encontra um equivalente na paisagem midiática contemporânea e, por meio de ambas,
se procede, como destaca Claudio Fogu, a uma virtualização da história, “longe tanto das
concepções transcendental e imanente de ação, representação e consciência históricas
que caracterizaram o imaginário ocidental” dos últimos séculos, e a uma espacialização da
experiência histórica, “para além do eixo temporal das formas narrativas da consciência
histórica” (FOGU, 2009, p. 105). O arquivo digital se transforma, assim, numa das formas
privilegiadas de representar um passado que não passa.
Estes mesmos arquivos não deixam de fornecer uma experiência significativa
para seus usuários. Nesse sentido, a ênfase na coleção de diferentes registros históricos
se justifica caso se pense que o excesso midiático abre caminho para uma “experiência
autêntica, não no sentido de que ela corresponde a uma realidade externa, mas, pelo
contrário, precisamente porque ela não é compelida a se referir a nada para além de
si mesma” (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 52).
14
Lembrando da presença da mídia que
evocamos na seção anterior, pode-se lembrar, com Claudio Fogu, que
[...] a mídia digital alcança a imediaticidade por meio da hipermediação. Sua
capacidade de nos fazer esquecer o meio e, assim, alcançar um efeito imersivo
de presença (imediaticidade) depende de sua imitação da lógica de uma
realidade em que as mídias estão sempre presentes e na qual nós estamos
acostumados a sua presença como parte da nossa realidade (FOGU, 2009, p.
105; tradução nossa).
O elevado número de objetos que caracteriza as duas iniciativas aqui estudadas
indicam que eles são pensados para serem quantitativamente avassaladores, ainda que
ambos os sites não se estruturem a partir da construção de uma interface gráfica apta
a viabilizar a impressão de imediaticidade.
15
O arquivo infinito deriva sua autoridade do
pressuposto de que ele não poderá ser integralmente consultado.
Pode-se concluir esta seção com a percepção de que, nos arquivos digitais do
CHNM, guardar é um ato simultâneo a mostrar, tornar visível o conteúdo do site. Uma
consequência, todavia, é a de que conceber uma narrativa a partir de seus materiais é
apenas um efeito secundário, quando não inesperado ou, até mesmo, indesejado, do
acesso aos sites. Sobre esta espécie de excesso – de funções, de registros – que opera
sobre os arquivos digitais é possível compreender que seus objetivos se encontram
muito longe daqueles da ciência histórica tradicional.
14 A passagem ressoa com os argumentos de Alison Landsberg, para quem a memória prostética é
efetiva porque ela é sentida como autêntica mesmo quando não o é de fato. Trata-se, como se vê aqui, de
um caso de remidiação. A experiência midiática total da hipermediação gera uma espécie de testemunho,
ainda que indireto, já que compartilha do caráter autoexplanatório e autorreferente deste; sobre as diferenças
entre o relato “de dentro” e a análise “de fora” (MÉTRAUX, 2005, p. 299).
15 Eles realizam, todavia, a hipermediação no sentido mais simples, quando ela é compreendida
como a reapresentação de uma espécie de mídia – um vídeo, por exemplo – em outro, um texto (BOLTER;
GRUSIN, 2000, p. 45).
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Do arquivo instantâneo ao evento infinito
Como destaca Shoshana Felman, o desenvolvimento da psicanálise possibilitou o
surgimento do conceito de trauma enquanto um “novo centro conceitual, uma dimensão
essencial da experiência humana e histórica e uma nova espécie de entendimento da
causalidade e da temporalidade históricas” (FELMAN, 2002, p. 2). Deixando de lado a
pergunta a respeito de se categorias da psicologia individual podem ser transportadas
à análise de coletividades, o rótulo de traumático foi colado a um conjunto cada vez
maior de acontecimentos ao longo do século XX. Eles se aplicam especialmente bem
à categoria de crimes contra a humanidade, os quais compartilham a característica
de serem imprescritíveis; eles também serviram, como já vimos, para acontecimentos
de forte caráter midiático, como a destruição do ônibus espacial Challenger em 1986
destacada por Hayden White como exemplo de evento modernista (WHITE, 1999, p. 73).
Segundo a forte crítica de María Inés Mudrovcic, a consideração de que existem
acontecimentos que interrompem o desenrolar da história não deixa de pressupor “a
existência de uma ordem ‘normal’ do tempo oposta a uma ordem ‘patológica’ (traumática)
do tempo” (MUDROVCIC, 2014, p. 8). Essa situação traz uma inversão da experiência
histórica moderna, uma vez que os acontecimentos vividos como históricos não seriam
mais aqueles que comportam uma ruptura (MUDROVCIC, 2014, p. 9-10); a noção de
trauma acabaria por garantir a continuidade entre passado e presente. O que está em
jogo é uma alteração nos procedimentos pelos quais se estabelece a identidade dos
grupos, a qual não se basearia mais na existência de projetos de futuro em comum e sim
na preservação de feridas passadas (MUDROVCIC, 2014, p. 14).
A historiadora argentina tece um juízo eminentemente crítico do contexto atual;
concordando-se ou não, suas considerações permitem a esta investigação retomar a
relação entre memória e esfera pública, porém agora do ponto de vista do arquivo.
Mudrovcic parece estar especialmente preocupada com a possibilidade de uma resposta
que permita aos sujeitos históricos contemporâneos sair da inação perante um passado
que está sempre presente. Embora os arquivos aqui estudados dependam de que o
passado esteja sempre ao alcance do presente, pode-se partir do mesmo conjunto de
interrogações para perguntar como o CHNM busca responder aos dilemas da atualidade.
Nos últimos anos, Hayden White tem trabalhado com o conceito de passado
prático. Elaborado primeiramente pelo pensador conservador norte-americano
Michael Oakeshott, ele se refere àquelas noções a respeito do passado que utilizamos
cotidianamente e às quais recorremos para obter informações, modelos e estratégias
“que nos ajudem a resolver todos os problemas práticos com os quais nos encontramos
no que quer que seja considerado nossa situação presente” (WHITE, 2012, p. 25; grifo
do original). O conceito é construído em contraposição ao de passado histórico, que
indicaria o passado construído pelos historiadores profissionais e que não teria sido
efetivamente vivido, uma vez que resulta da aplicação de conceitos e modelos de análise
que buscam corrigir e organizar o fluxo da experiência pretérita (WHITE, 2012, p. 25).
16
O estabelecimento desta relação entre passado e ação, argumenta White, visa tornar
16. O conceito não deixa de trabalhar com a distinção entre autenticidade e autoridade discutida por
Alexandre Métraux. Para este autor, todavia, a mudança de escala representaria um ganho na compre-
ensão do passado, enquanto para White o entendimento do passado não parece ser um foco de reflexão
(MÉTRAUX, 2005).
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possível responder “aquilo que Kant denominou a pergunta prática (com o que se referia
a uma pergunta ética). O que é que se deveria (ou devemos) fazer?” (WHITE, 2012, p. 24).
Pode-se, então, reformular a indagação acima do seguinte modo: se os arquivos digitais
do CHNM não parecem se colocar em função do passado histórico, já que rechaçam a
elaboração de narrativas posteriores, como eles atendem ao passado prático?
Antes de prosseguir, deve-se matizar o uso dos conceitos no sentido de
compreender qual o escopo do chamado à ação contido na noção de passado prático.
Como o próprio Hayden White salienta ao longo do texto, a literatura parece fornecer
o modelo para uma relação ética com o passado (WHITE, 2012, p. 28); todavia, como o
faz Shoshana Felman ao contrapor a escrita literária com a prática dos tribunais, aquela
se torna relevante ao abordar “a recusa do trauma de ser fechado” (FELMAN, 2002, p.
8). A criação ficcional ilumina porque expõe à sua luz um dilema que restaria, de outro
modo, subjacente. A resposta prática, portanto, diz mais respeito ao reconhecimento
de possibilidades abertas do que a um guia para a ação imediata – e, desse modo, ao se
perguntar pela relação de determinado fenômeno cultural com uma dimensão prática
do passado, deve-se advertir para as maneiras muitas vezes difíceis, seguidamente
problemáticas e inevitavelmente contraditórias que são exigidas dos sujeitos para
lidarem com suas angústias.
17
Para compreender qual a relação dos arquivos aqui estudados com essa dimensão
do passado que escapa à atuação do historiador, é preciso compreender como eles foram
construídos. Seguindo-se o paradigma da ciência da computação delineado acima, Roy
Rosenzweig e Daniel Cohen reconhecem que a “qualidade última de uma coleção digital
tem maior relação, por assim dizer, com a floresta do que com as árvores” (COHEN;
ROSENZWEIG, 2011, p. 145-146). Com isso, eles querem apontar que, embora a qualidade
do acervo digital seja menor que a de um acervo cuidadosamente constituído, ganha-
se em troca a possibilidade de incluir um número maior de perspectivas no registro
histórico do que o permitido num arquivo oficial (COHEN; ROSENZWEIG, 2011, p. 127).
Para que isso seja alcançado, é preciso que o público crie uma ligação com o site, de
onde resulta o paradoxo de que “provavelmente o conteúdo que mais chama a atenção
são outras contribuições” e, para formar uma coleção,
[...] você primeiro precisa de uma coleção; muito frequentemente a única
maneira de atrair contribuições é com outras contribuições. Uma segunda
contribuição é mais fácil de obter que uma primeira, e uma terceira mais
fácil ainda. Assim que você tiver coletado alguns itens, se tornará mais fácil
17. Faço esse aparte por causa da possibilidade – bastante concreta – de que o conceito de Hayden
White abra espaço, mais uma vez, para uma apreensão ligeira que o identificaria com uma espécie de
“vale-tudo” histórico. Essa compreensão não seria, entretanto, de todo errada quando se pensa que o
autor descarta a ideia, ao menos quando analisa o livro Austerliz, de W.G. Sebald, de que certas histórias
possam servir como medida para impedir “mitificações destinadas a encobrir e obscurecer a verdade da
historiografia adequada” (WHITE, 2012, p. 20). Parece-me que esta possibilidade de apreensão do con-
ceito, e não a brusca oposição entre historiografia disciplinar e passado prático, inadequada e combatida
pelo próprio White, seja o problema do texto.
Nesse sentido, a comparação com a prática jurídica tal como feita por Shoshana Felman ilumina uma das
falhas do conceito, já que a resposta prática está sendo pedida pelo tribunal, não pela literatura. Adotan-
do-se outra concepção, pode-se dizer que a literatura talvez seja ética, mas não necessariamente prática,
enquanto o tribunal pode ser prático, mas frequentemente não é ético. O conceito de White, parece-me,
seria complementado com uma teoria da ação.
O conceito de passado prático é discutido de forma mais detida em LORENZ, 2014.
SILVEIRA, Pedro Telles da
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 24-42, jan.-jun., 2016.
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colecionar mais, e uma espécie de ápice será construído aos poucos (COHEN;
ROSENZWEIG, 2011, p. 137; tradução nossa).
Por fim, para que o arquivo seja visto como relevante, os assuntos sobre os
quais tratam não podem ser muito limitados tampouco demasiado difusos, uma vez
que a coleta de material online está conectada à existência de uma comunidade que se
disponha, primeiro, a contribuir com o site (COHEN; ROSENZWEIG, 2011, p. 129).
Isso impede que se pense, como é possível fazer a partir da leitura de Alison
Landsberg, que as comunidades de memória relacionadas com estes arquivos estão
livres de quaisquer amarras. Estes eventos ainda estão ligados a grupos que os
vivenciaram. Em alguns casos, porém, essas comunidades são tão extensas que podem
assumir dimensão global – e, como no caso do 11 de setembro, que sua apreensão do
acontecimento tenha se dado por meio da mídia é mais um dado de sua propagação do
que um juízo de valor, positivo ou negativo, a respeito da relação entre os indivíduos e
os eventos do mundo contemporâneo.
De qualquer forma, o que parece importante destacar é que estes arquivos, ao
estarem ligados a determinadas comunidades, atuam sobretudo como memoriais. Eles
se transformam numa experiência colaborativa, muitas vezes performática, na qual os
indivíduos, e não as instituições, são os emissores de informações a serem preservadas
(ASSMANN, 2011, p. 375). As fronteiras entre produtor e receptor midiático são borradas
conforme o mesmo usuário destes arquivos pode ser visitante ou contribuinte. Nesse
sentido, eles também servem para amplificar, por sua própria atuação, a presença
midiática dos eventos aos quais se referem. Eles acabam tanto por ser guardiões quanto
produtores de memória.
Ainda que um site como o do September 11th Digital Archive tenha sido motivado,
segundo seus criadores, pelo desejo de que os “historiadores futuros compreendessem
as perspectivas de milhares de pessoas comuns ao redor do globo” a respeito do 11 de
setembro (COHEN; ROSENZWEIG, 2011, p. 126), percebe-se que, mais do que contribuir
com a compreensão dos acontecimentos, eles acabam por realizar a função – terapêutica,
pode-se dizer – de ser o ponto de encontro de pessoas que sobreviveram, com maior ou
menor intensidade, a um mesmo acontecimento traumatizante. O conceito de passado
prático, nesse sentido, pode ser mobilizado para indicar que a espécie de relação
estabelecida por estes arquivos com os eventos que os motivam ocorre de maneiras
que carecem da “legitimação do conhecimento histórico” (WHITE, 2012, p. 37). Ou, em
outras palavras, que estão situadas para além da academia e das preocupações dos
historiadores profissionais.
*
A noção de evento modernista que acompanhou como um motivo de fundo,
por vezes explicitado, muitas vezes subjacente, esta reflexão não deixa de se basear
no pressuposto de que a quantidade de informação pode barrar a compreensão dos
acontecimentos. Adaptada aos debates recentes sobre a memória que podemos mapear
aqui, a dificuldade pode ser traduzida como a busca de distinção entre “passados usáveis
e informação dispensável” (HUYSSEN, 2003, p. 18). De acordo com a elegante formulação
de Friedrich Kittler, uma com a qual María Inés Mudrovcic certamente concordaria, “o
domínio dos mortos é tão extenso quanto as capacidades de armazenamento e transmissão
Da história instantânea ao arquivo infinito: arquivo, memória e mídias eletrônicas a partir do Center for History
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de uma dada cultura”, e, uma vez que estas capacidades são virtualmente ilimitadas, os
“imortais voltaram a existir” (KITTLER, 1999, p. 13), com todo o problema que traz a
convivência entre deuses e humanos.
18
Uma última indagação diz respeito a se os arquivos
aqui analisados se configurarão como “memória potencial ou pré-condição material para
memórias culturais futurais” (ASSMANN, 2011, p. 369) ou, mais especificamente, memórias
diferentes que possam escapar à força de atração que uma determinada imagem do
passado, caracterizada pelo trauma, parece exercer sobre o presente.
O September 11th Digital Archive e o Hurricane Digital Memory Bank não
parecem ser afetados por estas inquietações. Ainda que os dados eletrônicos sejam
perecíveis, seu próprio volume indica que os historiadores do futuro podem lidar com um
registro histórico “completo” (ROSENZWEIG, 2011, p. 6), o que transparece no discurso
dos pesquisadores do CHNM como uma situação de trabalho ideal; da mesma forma,
embora exista algo de ingênuo na pretensão de recolher o maior número de registros
possível dos acontecimentos para formar uma imagem virtualmente completa deles,
esta vontade é justificada quando a representação histórica aproxima-se da exposição,
afastando-se da narração; por último, a dificuldade de configurar uma narrativa a partir
da miríade de registros encontrados nestes repositórios não parece ser uma questão,
e esta dificuldade não impede os projetos aqui estudados de se perceberem tendo – e
efetivamente conseguindo – um impacto na esfera pública à qual estão ligados. Este
breve diagnóstico indica, ao menos assim eu gostaria de pensar, que os arquivos digitais
do CHNM, com todas as dificuldades conceituais que trazem ao pensamento histórico
contemporâneo, representam uma superação dos termos do debate na maneira
como são colocados por Hayden White. E, pode-se também pensar, muito à revelia
do pensador norte-americano, que o próprio conceito de passado prático acaba por
redimir o excesso de informação de sua suposta inutilidade no mundo contemporâneo.
Referências.
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória
cultural. Campinas: Editora da UNICAMP, 2011.
______. The Holocaust as Global Memory? Extensions and Limits of a New Memory
Community. In: ASSMANN, Aleida; CONRAD, Sebastian. Memory in a Global Age:
Discourses, Practices, and Trajectories. New York: Palgrave Macmillan, 2010, p. 97-117.
ASSMANN, Aleida; CONRAD, Sebastian. Memory in a Global Age: Discourses, Practices,
and Trajectories. New York: Palgrave Macmillan, 2010.
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18. A proliferação de aplicativos destinados a avisar a morte de seus usuários e cerrar as contas abertas
por estes em vida, assim como a aprovação da “lei do esquecimento” no parlamento europeu, forçando
o Google a retirar informações a respeito de determinadas pessoas quando danoso a elas demonstra
que, chegando a sua terceira década de utilização em massa, morrer na internet se transformou
também numa preocupação.
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