Da história instantânea ao arquivo infinito: arquivo, memória e mídias eletrônicas a partir do Center for History
and New Media (George Mason University, EUA)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 24-42, jan.-jun., 2016.
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possível responder “aquilo que Kant denominou a pergunta prática (com o que se referia
a uma pergunta ética). O que é que se deveria (ou devemos) fazer?” (WHITE, 2012, p. 24).
Pode-se, então, reformular a indagação acima do seguinte modo: se os arquivos digitais
do CHNM não parecem se colocar em função do passado histórico, já que rechaçam a
elaboração de narrativas posteriores, como eles atendem ao passado prático?
Antes de prosseguir, deve-se matizar o uso dos conceitos no sentido de
compreender qual o escopo do chamado à ação contido na noção de passado prático.
Como o próprio Hayden White salienta ao longo do texto, a literatura parece fornecer
o modelo para uma relação ética com o passado (WHITE, 2012, p. 28); todavia, como o
faz Shoshana Felman ao contrapor a escrita literária com a prática dos tribunais, aquela
se torna relevante ao abordar “a recusa do trauma de ser fechado” (FELMAN, 2002, p.
8). A criação ficcional ilumina porque expõe à sua luz um dilema que restaria, de outro
modo, subjacente. A resposta prática, portanto, diz mais respeito ao reconhecimento
de possibilidades abertas do que a um guia para a ação imediata – e, desse modo, ao se
perguntar pela relação de determinado fenômeno cultural com uma dimensão prática
do passado, deve-se advertir para as maneiras muitas vezes difíceis, seguidamente
problemáticas e inevitavelmente contraditórias que são exigidas dos sujeitos para
lidarem com suas angústias.
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Para compreender qual a relação dos arquivos aqui estudados com essa dimensão
do passado que escapa à atuação do historiador, é preciso compreender como eles foram
construídos. Seguindo-se o paradigma da ciência da computação delineado acima, Roy
Rosenzweig e Daniel Cohen reconhecem que a “qualidade última de uma coleção digital
tem maior relação, por assim dizer, com a floresta do que com as árvores” (COHEN;
ROSENZWEIG, 2011, p. 145-146). Com isso, eles querem apontar que, embora a qualidade
do acervo digital seja menor que a de um acervo cuidadosamente constituído, ganha-
se em troca a possibilidade de incluir um número maior de perspectivas no registro
histórico do que o permitido num arquivo oficial (COHEN; ROSENZWEIG, 2011, p. 127).
Para que isso seja alcançado, é preciso que o público crie uma ligação com o site, de
onde resulta o paradoxo de que “provavelmente o conteúdo que mais chama a atenção
são outras contribuições” e, para formar uma coleção,
[...] você primeiro precisa de uma coleção; muito frequentemente a única
maneira de atrair contribuições é com outras contribuições. Uma segunda
contribuição é mais fácil de obter que uma primeira, e uma terceira mais
fácil ainda. Assim que você tiver coletado alguns itens, se tornará mais fácil
17. Faço esse aparte por causa da possibilidade – bastante concreta – de que o conceito de Hayden
White abra espaço, mais uma vez, para uma apreensão ligeira que o identificaria com uma espécie de
“vale-tudo” histórico. Essa compreensão não seria, entretanto, de todo errada quando se pensa que o
autor descarta a ideia, ao menos quando analisa o livro Austerliz, de W.G. Sebald, de que certas histórias
possam servir como medida para impedir “mitificações destinadas a encobrir e obscurecer a verdade da
historiografia adequada” (WHITE, 2012, p. 20). Parece-me que esta possibilidade de apreensão do con-
ceito, e não a brusca oposição entre historiografia disciplinar e passado prático, inadequada e combatida
pelo próprio White, seja o problema do texto.
Nesse sentido, a comparação com a prática jurídica tal como feita por Shoshana Felman ilumina uma das
falhas do conceito, já que a resposta prática está sendo pedida pelo tribunal, não pela literatura. Adotan-
do-se outra concepção, pode-se dizer que a literatura talvez seja ética, mas não necessariamente prática,
enquanto o tribunal pode ser prático, mas frequentemente não é ético. O conceito de White, parece-me,
seria complementado com uma teoria da ação.
O conceito de passado prático é discutido de forma mais detida em LORENZ, 2014.