Entrevista com Évelyne Cohen
Entrevistadores
BARROS FILHO, Eduardo Amando de
OLIVEIRA, Wellington Amarante
Tradução
LÓPEZ, Camila Soares
A revista Faces da História tem a honra de trazer uma entrevista inédita com
a professora e pesquisadora francesa Évelyne Cohen. Ligada a École Nationale des
Sciences de l’Information et des Bibliothèques, membro do Laboratoire de Recherches
Historique Rhône-Alpes (LARHRA), da Equipe ISOR (Université Paris 1) e secretária da
Association pour ledéveloppement de l’histoire culturelle.
Évelyne Cohen possui notável produção acadêmica sobre a história da televisão
francesa, a partir de uma perspectiva da nova histórica política e cultural. Entre
seustrabalhosdestacam-se o livroLa télévision des Trente Glorieuses : Culture et
politique, organizado com Marie-Françoise Lévy e publicadoem2007;La télévision sur
la scène du politique : Un service public pendant les Trente Glorieuses, publicadoem
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2009 ; 1967 au petit écran : Une semaine ordinaire, organizadoconjuntamente com
MirianTsikounas e publicadoem 2014. No Brasil, participou do livro Análise de
Telejornalismo: desafios teórico-metodológicos, com o capítulo “O jornalismo de
televisão e suas mutações: anos 1980-1990 na França”.
1) Primeiramente, nós gostaríamos de agradecer a disponibilidade de nos dar
esta entrevista, e estamos muito contentes. Você poderia nos falar de sua trajetória
de pesquisa e o motivo de seu interesse específico sobre a história da televisão?
Eu agradeço por esta troca. Pessoalmente, aprecio as relações com os colegas
brasileiros que trabalham com a televisão francesa, seja em história, em estudos
culturais ou em ciências da informação. Mas, antes de tudo, sou historiadora e
atreladaao interesse dos historiadores, por um ladoàs fontes televisivascomo fontes
para a história, por outroà televisão como mídia que estrutura a sociedade, sua opinião,
suas representações. Enfim, parece-me importante pensar a televisão como espaçode
transferências culturais e de aculturação. Pessoalmente, trabalhei com história política
e cultural, sob a orientação do historiador especialista em República Maurice Agulhon,
1
que realizou pesquisas sobre as imagens de Marianne,
2
em acordo comas representações
políticas. É esse vínculo entre as imagens e suas representações que originou meu
interesse pela televisão.
Comecei a trabalhar com fontes televisivas no momento da adoção, na França,
da lei de 1992 sobre o Depósito Legaldas fontes audiovisuais. Encontrei uma colega,
Marie-Françoise Lévy,
3
que já havia trabalhado com esse tipo de fonte a partir de uma
perspectivada história. Na Sciences Po Paris,
4
o historiador Jean-Noël Jeanneney, desde
1978, estabeleceu um seminário sobre a televisão, que é a origem do dicionário do rádio
e da televisão, “L’Échodusiècle. Eu me associei à Marie-Françoise Lévy que, junto
ao Instituto Nacional do Audiovisual, tinha o projeto de criar uma coleção de fontes
televisivasdestinada às universidades, “Imagens do tempo presente na televisão”. Então,
constituiu-se uma equipe entre o CNRS,
5
o INAe várias universidades. Assim, teve início
um trabalho sobre fontes e de estabelecimento de fontes da televisão francesa de 1949
aos anos de 1960. Hoje, parece difícil fazer história contemporânea dos séculos XX e
XXI sem integrar a contribuiçãodessas fontes.
Nós quisemos implementaruma perspectiva da históriaface àsfontes audiovisuais,
estabelecê-las ao modo de outros tipos de fontes históricas que tenham sido difundidas
ou não por diversas razões (técnicas ou políticas), que descobrem montagens... Não
queríamos fazer uma coleção de fragmentos aos moldes de um documentário, mas
respeitar a integralidade das fontes, analisar o estado no qual elas chegavam a nós e,
ao mesmo tempo, desenvolver uma análise das condições de sua produção, uma análise
das imagens e de sua recepção no contexto de sua época.
Nós utilizamos os guiasde jornais televisivos, bem como os relatórios dos chefes
das emissoras, a documentação escrita que a acompanhava e, igualmente, fontes da
1. Maurice Agulhon foi um historiador francês (1926-2014). Professor do Collège de France entre os anos
de 1986 e 1997, foi autor de La République, obra publicada em 1990 (Nota do Tradutor).
2. Figura feminina alegórica que representa a República francesa (N. do T.).
3. Especialista em história cultural - IRICE-CNRS, Université Paris 1, Panthéon-Sorbonne (N. do T.).
4, Instituto de Estudos Políticos de Paris (N. do T.).
5. Centre National de la Recherche Scientifique (N. do T.).
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imprensa. A documentação escrita aumentou progressivamente, enriquecida, em
particular, por conta de doações de profissionais. Nós atribuímos grande valor a elas.
Para nós, trabalhar com a televisão é mais visionar,sequenciar, constituir apanhados de
fontes visuais do que examinar a documentação escrita da instituição, dos profissionais
que a fabricaram, os da France Télévision e os arquivos escritos conservados nos
Arquivos Nacionais (arquivos da instituição, dos ministérios, fontes eleitorais, etc.)...
Essa abordagem é um procedimentoda história das mídias e da história cultural. Entendo
história cultural como representações sociais, e não simplesmente uma história da
cultura.
2) No Brasil, a televisão exerce um papel muito importante na sociedade, mas
poucos historiadores consideram a televisão como fonte e objeto de pesquisa. Como
isso ocorre entre os historiadores e a televisão na França?
Desse ponto de vista, a situação na França progrediu muito desde os anos de 1990.
A abertura da Inathèque (local de consulta de arquivos audiovisuais, nas dependências
da BnF),
6
depois de 1995, permitiu o acesso amplo a esses fundos. Os historiadores
da televisão instituíramseminários de estudos e pesquisa nasuniversidades e nos
laboratórios. Eles conquistaram uma legitimidade científica, assim como as Ciências da
informação e da comunicação. Contudo, resta um caminho a percorrer para explicar que
a abordagem dessas fontes necessita tanto rigor quanto aquela das fontes medievais,
por exemplo. Não bastar “assistir à televisão”, como alguns ainda podem acreditar!
3) Sobre a conservação e acesso à produção televisiva, a França possui
uma instituição que é um sonho para os (as) pesquisadores (as) brasileiros (as), o
Instituto Nacional do Audiovisual (INA). Você pode nos dizer algumas palavras sobre
a relevância do INA para a pesquisa histórica da televisão?
As condições de trabalho se transformaram com a abertura da Inathèque, em
1995, de postos de consulta individual e da disponibilização de fontes audiovisuais e
escritas, assim como de softwaresde análise. O mandato de Emmanuel Hoog (2001-
2010) na presidência do INA foi umaviradapara o fortalecimentodas parcerias INA/
Universidades. Os programas de digitalização das fontes mais antigas e ameaçadas
se tornaram cada vez mais importantes. Notemos que há, doravante, vários tipos de
acesso às fontes do INA. O site “Ina.fr” apresenta uma pequenaamostradestinada ao
grande público. “Inamediapro” é uma base de acesso paga destinada aos profissionais; a
Inathèque é um local de consulta reservado aos “pesquisadores”, institucionais ou não.
O arquivamento de fontes estendeu-se progressivamente a mais de 100 canais,
hoje, e a diversos fundos escritos de roteiros, de produtores, de funcionários,de
sindicatos, etc... Desde 2006 (da adoção da lei DASVSI)
7
, o INA tem arquivo na BnF
(em fr.), cujo estudo representa uma questãoconsiderável, inclusive para o estudo das
televisões. O INA tornou-se uma instituição patrimonial de mesmo nívele beneficiou-se
do progressoda digitalização. Passamos da raridade à abundância com a possibilidade
de consultar corpus amplos e exaustivos, o que representa uma garantia científica.
6, BibliothèqueNationale de France, em Paris (N. do T.)..
7. Lei dos direitos do autor (N. do T.).
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Contudo, parece-me necessário trabalhar em diferentes escalas e advertircontra a
ilusão da abundância, e a lógica do estoquede arquivos os quais podemos recorrersem
uma linha condutora verdadeira. Permanece necessário construir seu corpus de fontes.
4) O acesso à produção televisiva e aos mais diversos documentos sobre ela é
um dos grandes problemas para o historiador que realiza pesquisas sobre a televisão
no Brasil, assim como em muitos outros países. De que maneira é possível superar
essa dificuldade?
Como eu disse, parece-me sempre necessário trabalhar em diferentes escalas.
No Brasil, os colegas revelam todos os tipos de artimanhapara ter acesso a essas
fontes, registrá-las, compor bibliotecas de audiovisual. No fundo, são as práticas que
tínhamos na França antes da adoção do Depósito Legaldas fontes audiovisuais. Parece-
me importante criar um movimento de opinião em prol do arquivamento dessas fontes
no Brasil, onde já existe, por exemplo, o Depósito Legaldo livro, ou, ainda, cinematecas
renomadas.
Muitas diretrizes internacionais insistem sobre questão de memória e de
história, que representa a preservação dessas fontes. Em 27 de outubro de 1980, a
Conferência Geral da UNESCO, em Belgrado, adotou, por consenso, a Recomendação
sobre a Salvaguarda e Conservação das Imagens em Movimento. A UNESCO lançou
um apelo aos seus Estados membros e à opinião internacional, a quem consideram as
imagens em movimento, em razão de seu valor educativo, cultural, artístico, científico
e histórico, como uma parte de sua cultura nacional e assegurando-lhe a salvaguardae
a conservação, a fim de transmiti-los às gerações futuras. Mais particularmente, a
Conferência de Barcelona, que ocorreu em 28 de novembro de 1995, foi o ato fundador
de um processo euro-mediterrâneo de coletae de valorização do patrimônio audiovisual
dos países mediterrâneos,sustentadopor uma concepção da cultura como fator de paz
internacional. A Convenção Europeia relativa à Proteção do Patrimônio Audiovisual,
que ocorreu em Estrasburgo em 8 de novembro de 2001, desejou “assegurar a defesado
patrimônio audiovisual europeu e sua valorizaçãocomo forma de arte e memória do
passado pela coleta, a conservação e a disponibilização,aos fins culturais, científicos e
de pesquisa, imagens em movimento, no interesse geral”. É preciso inscrever-se nesses
movimentos de escala mundial.
5) Um outro fator que aflige os historiadores que se dedicam ao audiovisual
são as questões teóricas e metodológicas. Assim, como você trabalha com elas em
suas pesquisas?
Por um lado, nós desenvolvemosmetodologias que são aquelas de todo trabalho
de historiador. Por outro, temos diversas trocas com colegas que são semiólogos,
especialistas em ciências da informação, historiadores das imagens. Com efeito,
é preciso compreender os dispositivos, analisar as técnicas de produção e, ao final,
ser capaz de analisar e escrever sobre imagens, e mesmo escrever pela imagem. Nós
compreendemos, também, a importância das entrevistas orais com profissionais que,
frequentemente, nos reproduzem testemunhos e elementos sobre a produção que não
são perceptíveisna visualização. Aqui, nós vamos ao encontrodas práticas da história
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oral.
6) Além do acesso às fontes e às questões teóricas e metodológicas, quais são
os outros desafios para o estudo histórico da televisão?
Hoje, o INA mantém o conjunto de canais públicos e privados. Contudo, no que
concerne aos canais privados, não temos acesso à documentação escrita que versa
sobre a produção, sobre a compra de programas no exterior, as adaptações na França
dos programas comprados no exterior. Portanto, o trabalho permanece lacunar, apesar
das aparências.
7) Em seu último livro, 1967 aupetit ézcran: une semaine ordinaire, organizado
em pareceria com Myriam Tsikounas,8 há uma proposição interessante de abordagem
da televisão, a partir de uma análise de uma semana comum. Você pode nos dizer
como nasceu essa ideia e quais são os progressos historiográficos possíveis a partir
dessa perspectiva?
Nós queríamos mensuraras possibilidades e os limites da pesquisa em um
período em que aORTF
9
exista e que disponha, portanto, de um conjunto de fontes
parcialmentelacunar sobre dois canais existentes. Essa pesquisa permitiu compreender
as lógicas da programação em um momento em que as mediçõesde audiência começavam
a se impor. Além disso, 1967 marca o início da televisão a cores e abre a uma reflexão
sobre a distribuiçãodos programas entre os dois canais.
Em 2006, umsociólogo, Éric Macé, publicou pela Armand Colin La Société et
son double. Une journéeordinaire de télévision. Esse trabalho nos inspirou. Que tipo de
trabalho podíamos fazer sobre um período mais antigo da televisão? Macé estudou um
dia comum de televisão, de uma época em que o conjunto de fontes audiovisuais estão
conservados. Não se pode dizer o mesmodo ano de 1967. É preciso, também, lembrar
que, em 1967, existiam apenas dois canais públicos de televisão.
8) O caráter verdadeiramente nacional da televisão seria um elemento de
explicação para que as obras de referência sobre a televisão francesa não atraiam o
interesse do mercado editorial brasileiro? No Brasil, os estudos de autores clássicos
como Jean-Noël Jeanneney e Jérôme Bourdon quase não são traduzidos. O que
devemos fazer para ultrapassar definitivamente essas fronteiras?
É necessário reforçar as trocas, algo que tentamos fazer. Atualmente, eu coordeno
para o CNRS um programa de trocas franco-brasileiro, “Patrimônios-Imagens-Mídias,
Identidades”, que nos permite organizar encontros regulares entre pesquisadores
franceses e brasileiros e nos possibilita nos conhecermos erealizar a troca de nossos
métodos e objetos de pesquisas. Nós lançamospublicações franco-brasileiras em
conjunto.
9) Você já veio ao Brasil mais de uma vez. A partir desse contato, pode nos
8. Professora da Universidade de Paris I. Responsável pela equipe “Imagens, sociedades e representa-
ções” (N. do T.).
9. Office de Radiodiffusion Télévision Française (N. do T.).
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dizer qual a sua opinião sobre a produção historiográfica brasileira, em especial
sobre a televisão?
Até o momento, encontrei poucos historiadores que trabalham com a televisão
no Brasil. Esse campo me parece mais explorado pelas Ciências da informação e os
estudos culturais. Nesses domínios, parece-me que a reflexão teórica, talvez, seja mais
desenvolvida do que na França, onde o trabalho sobre o corpus o conduz. É preciso
somar osganhos dos dois lados.
10) Para concluir, em quais projetos você trabalha hoje e o que podemos
esperar de suas próximas publicações?
Hoje, investigo os anos 1980 da televisão; esses anos me parecem importantes
no plano institucional, mas, sobretudo, eu gostaria de melhor apreender as mudanças
que se operaram com o desenvolvimento dos canais privados e as passagens do
público ao privado. Desse ponto de vista, o trabalho com os pesquisadores brasileiros
pode me ajudar, pois há muito tempo eles se confrontam comempresas de mídias
privadas. Eu me interesso, também, pelas circulações intermidiáticas e pelas questões
das transferências culturais por meio da troca e circulação mundial dos programas.
O futurodo serviço público e suas missões permanece, para mim, uma das grandes
questões contemporâneas.