O Brasil de O Bem-Amado: tradição versus modernidade (1973)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p.213-229, jul.-dez., 2016.
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amigo o hippie Nadinho (Jorge Botelho). Este se muda para Sucupira e desempenha,
junto ao filho de Odorico, uma série de transgressões incompatíveis com o lema “paz e
amor”.
Entre falas, comportamento, ações e gestuais do personagem Nadinho, Dias
Gomes emanava representações sobre o movimento hippie e a adesão a ele por parte da
juventude brasileira
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. Sobre a construção do personagem hippie, Rollemberg (2011, p. 11)
observa que o autor acaba por caracteriza-lo como um “idiota, um inútil, encostado na
casa do coronel, à sombra do seu filho playboy”. Na trama, Nadinho é filho de milionários
e segue a filosofia do drop out, a qual consiste, segundo definição de Paes (1992, p. 23),
em “cair fora da família, da cidade, do racionalismo, enfim, da repressão” do sistema
socialmente estabelecido. Como acentuam Zappa e Soto (2011, p. 259), se posicionar
como um drop out “era a primeira condição para se tornar um verdadeiro hippie”.
A conexão com o contemporâneo estimulou o senso de interação, viabilizando a
apropriação de elementos por parte dos telespectadores. Com exceção do médico Juarez
Leão, todos estes personagens utilizaram um figurino moderno, composto por peças
bastante coloridas e ousadas. Conforme aponta Kehl (1979, p. 25), tal representação
visava atender à demanda da indústria cultural que formatou produtos para atingir
os 30 milhões de jovens brasileiros do início da década de 70. A autora sugere que
a indústria cultural, ao recriar movimentos como o fenômeno hippie, termina por
redimensioná-los, esvaziando seu conteúdo mais radical e criando produtos que podem
ser consumidos pelo público.
[...] os personagens jovens trazem para o vídeo seus modismos, seus
conflitos com a velha geração, suas propostas de transformação devidamente
absorvidas e esvaziadas pela indústria cultural, que vende qualquer proposta
libertária sob a forma de “calça velha, azul e desbotada” (KEHL 2005, p. 427).
Contudo, em Sucupira, pode-se notar a coexistência de símbolos que expressavam
as novas experiências cotidianas advindas da modernização, que conviviam com
as tradicionais formas de sociabilidade. Elementos de caracterização orientavam a
dicotomia e a distinção entre o universo moderno e rural como, por exemplo: carro e a
carroça/ cavalo; o cigarro de palha e o cigarro industrializado; o chapéu e as bandanas;
as botas e o tênis; saveiros e o navio; cachaça e uísque; entre outros.
Outro recurso empregado por Dias Gomes para identificar aspectos
contemporâneos ao momento de exibição de O Bem-Amado foi a linguagem. O emprego
da linguagem coloquial, juntamente com o uso irrestrito de gírias em voga no ano de
1973. Assim, constantemente, são empregados, principalmente nos núcleos mais jovens,
gírias como “grilo”, “bicho”, “camarada”, “amizade”, “colé”, “careta”. Em contrapartida, o
vocabulário dos personagens que representavam aspectos associados ao tradicional era
composto por termos característicos do nordeste brasileiro como “arretado”, “porreta”,
“avexado”, “oxente”, entre outros.
A convivência entre as formas de sociabilidade associadas ao tradicional e o
10. Movimentos de contracultura, como o hippie, emergiram na década de 60 e se mantiveram por boa parte
na década seguinte. Eram constituídos com base no desejo de uma felicidade individual, simples, distante da
sociedade de consumo e do moralismo, sem pretensões à organização político-partidária. Groppo (2000,
p. 615) afirma que tal comportamento se deu com o estabelecimento de “novos tipos de relações sociais e
sexuais, a experimentação constante e eclética de drogas, misticismos, religiosidades, filosofias”.