Recebido em: 12/02/2016
Aprovado em: 03/10/2016
Intelectuais e pensamento democrático no Brasil
durante a década de 1980
Intellectuals and democratic thought in Brazil during
the 1980’s
ROSSATTI, João Paulo
1
RESUMO: Este artigo pretende apresentar de forma introdutória o pensamento de
alguns intelectuais brasileiros que, ao longo dos anos 1980, pensaram como deveria ser a
democracia no Brasil. A partir dessa premissa dividimos nosso texto em duas seções: na
primeira buscamos expor as respostas para a pergunta “por que democracia?”, e como
esses intelectuais a defenderam como a melhor forma de governo; na segunda seção,
com o regime já estabelecido no país, intentamos mostrar a disputa discursiva que se
instalou sobre o eixo temático “qual democracia. Desse modo, buscamos apresentar as
ideias de alguns intelectuais brasileiros que pensaram como e o porquê da democracia
em nossas terras ao longo dos anos 1980.
PALVRAS-CHAVE: Democracia; intelectuais brasileiros; redemocratização no Brasil.
ABSTRACT: This papers aims to present, as an introductory study, the considerations
1. Mestre pelo programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso e gra-
duado em História pela UNICENTRO (Universidade Estadual do Centro-Oeste). E-mail: jprossatti@gmail.
com
Intelectuais e pensamento democrático no Brasil durante a década de 1980
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 245-260, jul.-dez., 2016.
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of some Brazilian intellectuals who, along the 1980s, contemplated how democracy
in Brazil should be. Following this premise we divided our text into two sections: in
the first we seek to expose the answers to the question “why democracy?” and how
these intellectuals defended it as the best system of government; in the second section,
with the regime already established in the country, we attempt to show the discursive
dispute that became attached to the subject matter of “what kind of democracy.” Thus,
we seek to present the ideas of some Brazilian intellectuals who thought about the how
and why of democracy in our lands over 1980’s.
KEY-WORDS: Democracy; Brazilian intellectuals; democratization in Brazil.
Introdução
As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pelo que ficou conhecido como a
“crise das ditaduras”, de acordo com o que caracterizou Nicos Poulantzas (1976). Uma
verdadeira “onda” de democratização percorreu o mundo naquele período e se estendeu
da América Latina até a Rússia. Esse movimento foi caracterizado por Samuel Huntington
como a “terceira onda”
2
de democratização mundial. Ela se inicia nos anos 1970 com a
Revolução dos Cravos em Portugal, passa pelo regime dos coronéis na Grécia e atinge o
que restou do franquismo na Espanha. Na década de 1980 abrange praticamente todos os
países latino americanos e, por fim, com a queda da URSS, essa onda atinge os inúmeros
Estados satélites durante a desintegração daquele enorme país.
Em várias dessas nações a democracia fez-se de forma relativamente rápida
3
, mas
no Brasil, devido às características peculiares do regime autoritário de nosso país (vide,
por exemplo, a manutenção de eleições periódicas) e da longa transição, controlada de
perto pelos militares, propiciou-se significativo espaço para debate sobre a conceituação
e operacionalização da noção de democracia. Podemos inclusive afirmar que houve uma
disputa discursiva pela própria noção de democracia. Devido a estas características
particulares vê-se que o tema se mostrou importante na literatura da época, pois a
construção de um regime democrático no país suscitou vivos debates acerca dos rumos e
escolhas de nossa nascente democracia. De todas as nações que passaram pelo processo
de democratização nesse período, o Brasil, segundo Alfred Stepan, foi o país onde o debate
tornou-se mais prolífico, já que a longa transição tornou a discussão sobre o conceito
muito mais ampla, assim: “mais do que qualquer outro, o Brasil testemunhou um debate
profundo sobre a própria democracia” (STEPAN, 1988, p. 20).
Uma visão panorâmica sobre parte desses debates e trocas de ideias suscitadas
pelo intercâmbio intermitente entre aqueles que se propuseram pensar as diferentes
configurações possíveis para a democracia será o mote deste artigo.
Esperamos mostrar que o debate se caracteriza por dois movimentos distintos,
um discursivo e o outro temporal. O primeiro, na primeira metade dos anos 80, é: por
2. A “primeira onda” é caracterizada pelas democracias que surgem no século XIX, a “segunda” pelos
processos de redemocratização ocorridos logo após a Segunda Guerra Mundial (HUNTINGTON, 1994).
3. Como, por exemplo, o caso argentino que após a derrota para os ingleses na Guerra das Malvinas
tornou insustentável a permanência dos militares no poder, estes em poucos meses foram defenestrados
da Casa Rosada e substituídos por um governo civil democraticamente eleito. Esse processo ocorrido no
país vizinho era motivo de pânico para os militares brasileiros que temiam uma espécie de “argentiniza-
ção” do Brasil.
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que democracia? – momento do debate em que os intelectuais analisados expuseram
a importância e os benefícios de se construir um regime democrático; num segundo
momento, já na segunda metade da década, procuraram delimitar: qual democracia?
Percebemos que uma vez efetivada a transição, a democracia não precisava mais
ser defendida, precisava sim ser pensada, delimitada, construída. Ou seja, após 1985
tornaram-se mais evidentes os projetos relativos ao futuro do próprio regime, projetos
de democracia que expõe uma grande disputa por seu significado.
Por que democracia?
As principais formulações sobre os princípios democráticos e de seus porquês
baseavam-se sobretudo no restabelecimento imediato de alguns dos preceitos
fundamentais da cidadania democrática, tais como o sufrágio universal e as garantias de
respeito aos direitos individuais e humanos. Ou seja, uma defesa do sufrágio e ao direito
de escolha dos representantes, livre associação e garantia de participação política e,
talvez o mais importante, uma maior tolerância face à pluralidade de interesses nos
diferentes componentes do estrato social. As defesas das demandas democratizantes,
nesse sentido, visavam argumentar em favor de uma efetiva democratização das
instituições num contraponto evidente com a “liberalização” bruxuleante acenada pelo
governo, que era o que de fato ocorria.
4
Notaremos que o restabelecimento do sufrágio universal é a pedra angular na
argumentação dos intelectuais desse período. A ampla maioria defendeu a reimplantação
imediata do sistema eletivo e a convocação de eleições gerais para a escolha do cargo
de presidente imediatamente após a saída do último militar, João Figueiredo, do Palácio
do Planalto, em março de 1985. Essa urgência sufragista partia do argumento de que
era preciso aumentar efetivamente a participação popular, isto é, a decisão da escolha
da liderança máxima do país deveria caber ao povo e não ser imposta verticalmente;
a “democracia relativa” não poderia superpor-se à “democracia efetiva” – é preciso
lembrar que, em certa medida, havia uma divisão bem delimitada no país à época, pois
na esfera estadual a democracia eletiva, pelo menos desde 1982, estava consolidada,
mas no nível Federal o povo ainda era mantido isolado das decisões, num movimento
que torna evidente a “ausência de possibilidade de ação e da existência de uma coação
que impedia o fluxo da vida política” (CARDOSO, 1985, p.10).
A reconquista do direito ao voto, isto é, o restabelecimento da soberania popular,
para Fernando Henrique Cardoso é suficientemente justificável em um momento que
se mostrava necessário “lutar para que haja uma devolução da soberania ao eleitorado
para a escolha do presidente da República” (CARDOSO, 1985, p. 25). A recuperação
do poder popular por meio do sufrágio funcionaria para concretizar o movimento que
realocaria o pêndulo das deliberações nas mãos da população, de forma a horizontalizar
o domínio da tomada das decisões. Para Cardoso isso conduziria a política a uma
guinada ao igualitarismo, afinal, quando a todos coubesse a mesma parcela de poder
na tomada de decisões, teoricamente as diferenças seriam obliteradas (ou deveriam
ser). Porém, como cada grupo social parte de realidades distintas, a contingência do
voto torna o regime democrático aberto às circunstâncias da ocasião, esta incerteza
4. Como descreve Francisco C. Weffort: “O aumento da liberalização (do direito à informação e à expres-
são) foi muito maior do que o da participação – isto é, da capacidade do povo de influenciar o governo e
suas políticas, seja por eleições, seja por outros meios democráticos.” (WEFFORT, 1992. p. 21-22).
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do afluxo eleitoral foi uma coisa que nunca agradou as elites políticas no Brasil como
afirma Bolívar Lamounier:
O voto, como as demais manifestações do processo político-representativo,
nunca é homogêneo. Nunca é puro mandato rousseuanista, nem puro voto de
cabresto. É a combinação desses ingredientes que lhe confere sua peculiar
incerteza e, por via de consequência, seu enorme poder de pressão. (1981,
p.248)
A devolução da soberania ao povo, por meio do voto especificamente, seria uma
forma de institucionalizar efetivamente as prerrogativas do regime em construção,
contribuindo para erigir uma base de pressão popular. Isto, para Lamounier, se
caracterizaria como um direito fundamental que justificaria a devolução da soberania
sufragista. É importante frisar que a conquista do direito ao voto passa a ser uma
prerrogativa atrelada a própria noção de liberdade, já que parte fundamental do
conjunto das liberdades civis passam pela tomada em conjunto das deliberações, pois,
segundo José A. Moisés, “a política não pode mais significar o arranjo entre elites
que tradicionalmente, caracterizou a história do país: a política tem de passar a ser
um espaço aberto de intervenção de todos os que querem influir sobre os rumos da
sociedade” (1985, p.11). Desse modo, a construção da democracia incide na conquista da
presidência por meio do voto direto, que se tornou o objetivo da oposição que advogava
a favor do regime à época, como podemos ver no texto de Moisés:
[…] a presidência da República converteu-se na principal cidadela da ditadura.
Na verdade, a presidência é o coração do regime, e isso não escapa à maioria
da população, nem os generais-presidentes fazem muito para ocultar essa
realidade. Portanto, atingir a presidência significa ter a capacidade de infligir
um golpe certeiro no centro mais importante do regime. (1985, p. 14)
Num regime extremamente verticalizado, como era o dos militares no Brasil,
a possibilidade de a oposição atingir a presidência seria o equivalente a desferir um
golpe certeiro num governo que carecia de legitimidade praticamente desde o início.
É importante frisar que o regime militar sofreu com o esvaziamento do apoio de parte
da sociedade civil que lhe deu a sustentação inicial e que fora marginalizada após a
tomada do poder. Uma intensa defesa do regime democrático a partir do movimento
de candente esvaziamento de apoio ao regime castrense teve a pretensão de restituir à
sociedade civil seu poder de escolha e de condução da vida política5, ou seja, a conquista
da autodeterminação. A questão do “por que democracia” no Brasil é permeada por
tal problemática, que gira em torno da soberania popular, por meio do voto e da
representação política e a conquista do cargo simbólico dos generais-presidentes.
Entender a importância do voto direto nesse contexto é importante para
compreender o papel dos partidos políticos dentro desses discursos sobre o sufrágio.
As democracias modernas caracterizam-se por estarem assentadas em sociedades de
massa. Assim, muito do que se escreveu sobre a teoria democrática no Brasil refletiu
longamente sobre a questão da representação política. Esta problemática, num país
5. Loquazmente registrado em todas as constituições brasileiras pós-30 na fórmula: “todo poder emana
do povo e em seu nome será exercido”.
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de dimensões continentais, teve como ponto de partida a reflexão sobre a questão
dos partidos políticos que haveriam de se tornar importantes agentes no processo de
recuperação/reestabelecimento da cidadania. Esse percurso seria difícil, pois incluía
a construção de uma imagem positiva dos partidos, caminho árduo já que estes eram
vistos como instituições frágeis e sem penetração na sociedade civil.
6
Nesse sentido, é
possível concordar com Bolívar Lamounier quando este afirma que as práticas eleitorais
eram mais institucionalizadas do que os próprios partidos políticos e por isso, para ele, “é
no tocante à questão partidária, especificamente, que se pode considerar o Brasil como
um caso flagrante de ‘subdesenvolvimento’ -, se se prefere, de baixa institucionalização
(1989, p. 21-22). Restituir a soberania popular e redefinir os parâmetros de representação
política seriam, portanto, importantes bases para estabelecer o nascente regime
democrático no Brasil que deveria passar – mas não só – pela legitimação dos partidos
políticos. A consolidação de um sistema partidário que tornasse efetiva a representação
haveria de sanar um dos problemas principais da política brasileira naquele momento,
a saber: a exclusão do povo das tomadas de decisões. Nesse sentido, como aponta F.
H. Cardoso, “persiste uma descrença no sistema representativo. Há uma separação.
Aqueles que impõem decisões à frente do Estado sabem que há Parlamento, partidos,
mas excluem-nos das decisões fundamentais.” (1985, p.58)
Considerada umas das principais deficiências do sistema político brasileiro, a
frágil tessitura partidária não contribuiu para tornar débil a consolidação da participação
popular na vida política nacional.7 No seio da sociedade, ante a fraca interiorização
dos partidos como ponta de lança da efetivação da participação política, ao longo do
tempo formou-se uma cultura política8 de repulsão aos partidos políticos vistos como
artificiais, de acordo com Lamounier:
Há, na cultura política brasileira, um mal estar profundo em relação aos
partidos políticos; […] Essa frustração com os partidos tem uma raiz objetiva
e outra subjetiva, ou cultural: de um lado, a evidência incontornável de
uma excessiva intermitência e fragilidade nos sistemas partidários que se
sucederam em nossa história; de outro, o desencontro quase sempre amargo,
às vezes chocante, entre as expectativas que se formam e o desempenho
efetivo desses sistemas, ou das principais organizações que os integram.
(1989, p.19)
Uma possível resposta à pergunta do por que democracia certamente pode ser
encontrada nesse percurso. Falava-se que a construção de um sistema partidário sólido
traria em seu encalço a consolidação da possibilidade de participação social na atividade
6. Pesquisas realizadas por José A. Moisés no final dos anos 1980 apontam que para não mais do que 50%
das pessoas entrevistadas não existe preferência por partidos políticos. (MOISÉS, 1995.)
7. Sobre a fraqueza da sociedade civil diante da burocracia do Estado, o depoimento de F. H. Cardoso nos
dá uma dimensão um pouco mais efetiva do que ele caracteriza de “falta de força”: “Nós aqui passamos
realmente por um processo de transição política que, se deu no que deu, é por falta de força, não por
falta de vontade, não por falta de consciência nem de lucidez sobre a situação. É por falta de força da
sociedade para avançar mais. Por isso, o controle do processo de transição pode dar-se como se deu,
e continua em marcha, dentro de um âmbito muito limitado, em que de fato as decisões fundamentais
ficaram afiveladas, presas ao Palácio do Planalto ou a outros órgãos menos ostensivos mas presentes na
vida brasileira, e que controlam o processo. (CARDOSO, 1985, p. 16)
8. Por cultura política entendemos: “o conjunto complexo constituído pela linguagem, comportamento,
valores, crenças, representações e tradições partilhados por determinado grupo humano e que lhe con-
ferem uma identidade. (In: MOTTA, 1996)
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política, aproximando a sociedade civil da esfera política.9 Como a atividade política
durante muito tempo fora considerada ocupação de classes privilegiadas, formou-se
uma lacuna entre os anseios populares e as ações político/partidárias da elite que de
fato governava. Esse desajuste causou uma separação entre as camadas populares e
a classe dos políticos; tal descompasso sempre se refletiu na frouxa constituição da
representação política no país que, apesar das tentativas de aperfeiçoamento, seguiu a
passos lentos até pelo menos os anos 1970. Essa mudança morosa ocorreu, em parte,
devido às ilusões armadas que ainda alimentavam as esquerdas no país, que achavam
que poderiam derrubar pela força o governo militar e contribuíam para que este último
mantivesse o ferrolho fechado.
Porém, como essa opção resultou em insucessos a oposição de esquerda ao
regime viu-se em um embuste, já que a luta armada não contribuía para o retorno de
uma normalidade democrática, a mudança deveria ser política. Uma saída possível para
essa dificuldade mostrou-se ser a criação de canais por onde a representação popular
pudesse fluir e a democracia se assentar em bases mais sólidas. Logo isso se tornou a
pretensão política de liberais e de esquerdistas que, na década de 1970, atuaram como
oposição ao regime, como aponta Weffort:
Depois da derrota das armas, ficou claro para muitos que um dos modos, na
verdade o mais efetivo, de se lutar contra uma ditadura estaria em organizar a
democracia pela base, na sociedade. Tornou-se então possível entender que a
democracia é algo mais que uma formalidade descartável e que as instituições
civis e os movimentos sociais devem fazer valer sua autonomia em face do
Estado e dos partidos. (1984, p. 84)
Em um regime que se estendeu por tantos anos e numa transição tão longa e
controlada tão de perto o sonho de uma revolução pela tomada do poder acabou por
perder parte substancial de seu sentido, em seu lugar acabou por nascer a percepção de
que a democracia não poderia ser imposta, mas deveria ser conquistada (disseminada
como uma cultura política se preferirmos). Segundo Weffort, “a conquista da democracia
tornou-se, desde 1974, o leitmotiv da política brasileira” (1984, p. 51. Grifos do autor).
Isso ocorreu após parte da oposição de esquerda perceber que a luta corpo a corpo
contra o regime era desgastante e ela só encontraria sentido dentro de um combate
político que incluísse a conquista da democracia por outros meios. Isto é, a partir
daquele momento a alternativa democrática ganhou o espaço que antes cabia a luta
armada. Pode-se dizer que nesse momento parte substancial da esquerda, dos políticos
de centro e dos moderados de centro-direita que formavam a oposição aos militares
encontraram um motivo comum para lutar. Aproveitando-se dos espaços de atuação
permitidos pela chamada “democracia relativa”10 a oposição encampou a luta pelas
9. Para Lamounier deveria ser construído no Brasil um sistema que institucionalizasse os partidos políti-
cos, este seria um grande passo na direção à efetivação e consolidação de um regime democrático repre-
sentativo. “Por institucionalização deve-se entender a aceitação de uma dada estrutura organizacional
praticamente como se ela fosse um fim em si mesma. Um partido (ou sistema formado por todos os par-
tidos, em dado país) será uma instituição se gozar dessa aceitação social tácita, que o retira de qualquer
condicionalidade quanto ao desemprenho imediato. Partidos e sistemas de partido sem continuidade
histórica e com precário enraizamento social, como têm sido os brasileiros, carecem dessa qualidade”.
(1989, p. 20-21. Grifos do autor)
10. Caracterizada, principalmente, pela liberdade dada a certa atuação da oposição dentro do regime
castrense, que permitia, entre outras coisas, a realização periódica de eleições. O termo “democracia
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liberdades democráticas mais urgentes, como a institucionalização do sufrágio, da
representação e dos partidos políticos. Dali em diante este se mostrou o caminho a ser
trilhado o que, consequentemente, implicou na consolidação da ideia de uma disputa
pacifica pelo poder, ideia própria às democracias liberais do século XX. Essa aceitação
quase tácita da disputa pacífica pelo poder por vias eleitorais acabou por desembocar
na inclusão da sociedade civil na política como caminho para a transformação:
Representação e participação direta são aquisições irrenunciáveis da
democracia e das revoluções do mundo moderno. São duas formas de
participação popular que aprimoram e a capacitam para constituir-se como o
espaço de transformação da sociedade. (WEFFORT, 1984, p. 129)
A democracia como conquista popular passa então pela restituição do direito
individual, da cidadania e da participação popular como bases inalienáveis dessa
democracia liberal que então tomava forma nas ideias de parte da intelectualidade
brasileira do período. A tríade refletiu os anseios básicos que nortearam as lutas pela
hegemonia democrática na década de 1980; é importante frisar que o regime democrático
aparece como uma verdadeira panaceia para a crise política e econômica que assolava
o país no período.
O direito à livre associação política foi outro importante ponto de inflexão
no debate sobre a democracia naquele período. A renovação do movimento sindical,
que ressurgiu naquele momento, se mostrou um dos grandes focos de luta pelas
prerrogativas democráticas e despontou como figura essencial naquela conjuntura que
objetivava a recomposição dos direitos básicos da cidadania; dentro do sindicalismo do
início dos anos 1980 era possível observar as três partes do movimento de reconstrução
democrática anteriormente citadas – a saber: luta por sufrágio, representação política e
livre associação. O sindicalismo no Brasil durante décadas foi submetido aos desígnios
do Estado (com intervenção direta ou camuflada, mas de algum modo sempre atuando
para coibir a liberdade do movimento). Baseado no “peleguismo” os sindicatos que
deveriam funcionar como instituições de representação da classe trabalhadora eram,
sub-repticiamente, cooptados pelos donos do poder. A mobilização do movimento
operário sempre fora vista como motivo de medo (PINHEIRO, 1981, p.30-58), o grupo de
pressão que se formava a partir desse núcleo fora continuamente suprimido e sufocado
à medida que sua participação não interessava aos de cima (SANTOS, 1981, p.149-150),
de modo que os direitos dos trabalhadores (colocados à margem como fossem cidadãos
de segunda classe, de acordo com Weffort) sempre vieram na forma de concessões das
classes políticas, como aponta Wanderley G. dos Santos:
Marcante na evolução política brasileira, todavia, é o fato de que os períodos
em que se podem observar efetivos progressos na legislação social coincidem
com a existência de governos autoritários. Os dois períodos notáveis da
política social brasileira identificam-se, sem dúvida, ao governo revolucionário
de Vargas e à década pós-1966. Nesta conexão, a experiência brasileira se
aproxima da estratégia bismarckiana de tentar obter a aquiescência política do
operariado industrial em troca do reconhecimento de alguns de seus direitos
relativa” – ou meia democracia – é até um embuste semântico, tão esdrúxulo que foi ironicamente carac-
terizado por Ulysses Guimarães pela metáfora da meia gravidez: ou existe ou não existe.
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civis. Igualmente importante, o preço pago pela sociedade, em seu conjunto,
foi, nos dois períodos, bastante elevado. No primeiro momento, caracterizou-
se a relação entre o poder e o público pela extensão regulada da cidadania.
Caracteriza-se o segundo pelo recesso da cidadania política, isto é, pelo não
reconhecimento do direito ou da capacidade da sociedade de governar-se a
si própria. E isto reflete-se em todos os níveis, inclusive nas instituições da
política social. (SANTOS, 1987, p.89)
A busca de novos caminhos para a democracia preconizou o desafio da
incorporação de toda essa massa que, com seus direitos obliterados, sempre se viu
colocada à margem dos sistemas de poder, uma vez que sua cooptação pelo aparelho
do Estado reproduzia, em nível institucional, as desigualdades sociais. Para Weffort a
ampliação da noção de cidadania era tema de suma importância na trilha que conduziria
à democracia:
Nos últimos anos volta ao debate o tema da ampliação da cidadania, sempre
mal resolvido em todos os períodos anteriores. Talvez se possa dizer que é o
tema mais geral da situação presente. Está nos reclamos específicos de certos
setores sociais – por exemplo, a liberdade sindical reivindicada pelo “novo
sindicalismo” e pelas “oposições sindicais”, ou pela proposta de organização
de um partido dos trabalhadores – e está também na temática geral da
construção de um Estado democrático de direito. (1984, p.140)
Em um país como o Brasil, que passou por acelerada modificação na estrutura
social nos anos anteriores ao processo de abertura política com intenso crescimento
na taxa de urbanização da população, a incorporação dos trabalhadores como
cidadãos aparece como importante temática na construção de um Estado democrático
de direito, principalmente a partir das décadas de 1970 e 1980. Desse momento em
diante, segundo Weffort, as conquistas desses grupos, numa espécie de transferência
metonímica, “passam a dizer respeitos a todos os homens” (1984, p. 119), pois, segundo
o mesmo autor, a cidadania dos trabalhadores nutre e sustenta a democracia. O “novo
sindicalismo”, como ficou conhecido, foi importante naquele momento já que trouxe
consigo a redescoberta da força de mobilização popular e a criação de um novo canal
de representação, que seria uma das maiores novidades políticas daquele momento
histórico, o Partido dos Trabalhadores.
Entender os motivos que fizeram a sociedade civil avançar no front da
democratização das instituições é importante, mas esse avanço fez-se mediante muitas
discussões, negociações e abstrações teóricas que no diálogo entre o erudito e o popular
tomou a forma das aspirações reais que permearam o período. A salvação política e
econômica não viria pelas mãos de uma figura heroica que nos conduziria ao olimpo
da paz, a panaceia somente viria com a plena democracia e ela fora vista como o único
caminho possível para o futuro daquele país
11
que, naquele momento, estava imerso
em uma crise econômica e social sem precedentes na história e às portas do século
11. Sentimento expresso por Bolívar Lamounier no seguinte trecho: “A segunda consideração é que o
Brasil não dispõe, a rigor, de nenhuma outra alternativa. Não há, no mundo atual, nenhum modelo polí-
tico mais adequado, tendo em vista o grau de complexidade econômica e social que já alcançamos. […]
Estamos, pois, condenados à civilização, como disse Euclides da Cunha. Civilização, hoje, significa con-
solidação da democracia, avanço na modernização economia e progressiva redução das desigualdades
sociais.” (1989, p. 127. Grifo nosso)
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XXI transitava por entre regimes autoritários e semidemocráticos. Portanto encontrar
uma resposta à pergunta “por que democracia” não era algo difícil, o difícil mesmo era
construir e assentar uma cultura política democrática na sociedade, por isso muitos
intelectuais pensaram e conjecturam em torno da questão que seria crucial: afinal, qual
democracia?
Qual democracia? Ou, democracia para quem?
No Brasil pós-1985 a implantação da democracia política tomou importante vulto
principalmente após as medidas inclusivas adotadas na Constituição de 1988. Havia
ainda o imenso desafio da construção de uma democracia social, num país que à época
contava com uma população de mais de 120 milhões
12
de habitantes, dos quais muitos
conviviam cotidianamente com a miséria. A restituição dos canais de participação era,
evidentemente, importante e estavam em destaque nos debates sobre a construção de
um regime democrático no Brasil, mas dividiam a atenção com a questão sobre como
incorporar as massas subalternas, um problema que precisava ser encarado de frente,
no que F.H. Cardoso chamou de “guerra à miséria” (1985). Ou seja, mais do que uma
democracia participativa, construída por meio do restabelecimento dos direitos políticos,
mostrava-se evidente a necessidade de uma democracia economicamente inclusiva que
estendesse a toda massa ignara além da igualdade política a econômica e social.
O percurso para a efetivação de tal ambição pode ser colocada em outros termos:
o país deveria seguir o caminho de uma democracia libertária ou de uma democracia
igualitária? Assim, colocavam-se duas perguntas para nortear o debate sobre os
caminhos da democracia: a defesa da liberdade política? Ou a defesa da igualdade
social? Algumas respostas a estas perguntas que foram formuladas naquele período
partem de alguns pressupostos distintos, como veremos a seguir.
“Há uma esperança nova no Brasil dos anos 80”, assim Francisco Weffort
termina a introdução de seu livro Por que democracia? (1984). A esperança de que
nos fala o autor é o sentimento de que a situação, com a efetivação da democracia,
poderia ser diferente e que poderíamos enfim ir contra a tradição vigente, a herança de
equívocos da qual somos legatários como o autor assinala. Para ele a política no Brasil
fora entendida, desde os primórdios, apenas como mais um instrumento para se atingir
o poder, a “política é o que se faz para conquistar (ou manter) o poder” (1984, p. 29). Se
a política no Brasil desde o princípio fora tomada como um simples instrumento, com
o conceito de democracia não foi diferente; uma vez encastelada no poder, as elites
instrumentalizaram os preceitos democráticos em favor próprio. Havia, pois, uma linha
demarcatória que distinguia o “país legal” – o das leis anacrônicas – e o “país real” – o
da modernização acelerada (WEFFORT, 1984, p.57). Para Weffort é nesse país moderno
que se vê surgir uma luta que opõe projeto burguês ao dos trabalhadores, o projeto dos
primeiros premeditava a manutenção da ordem vigente de modo a manter intactos os
privilégios anteriormente conquistados, por outro lado, o projeto dos trabalhadores
iniciou o percurso da luta pela democratização (WEFFORT, 1984, p. 28-29). É, porém,
nesse momento de oposição dos projetos antagônicos que a democracia passou a ser
entendida como um valor universal, segundo Weffort:
12. Segundo o Censo de 1980, em 1990 já eram 150 milhões de brasileiros.
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Se os anos 50 são os anos da constituição do desenvolvimento como um
valor geral, penso que os 70 e os 80 são os da constituição da democracia
como valor geral. Porque a questão da democracia aparece – e não podia ser
de outro modo – ligada ao problema do poder, a polêmica em torno do seu
significado é uma decorrência necessária. Temos todo o direito do mundo de
preferir uma democracia liberal ou socialista. Temos todo o direito de buscar
assegurar a hegemonia dos trabalhadores. Mas esta luta de partidos, grupos
de interesse, classes sociais em torno do sentido da democracia só pode existir
quando se vai além do seu significado meramente instrumental. Na própria
luta dos divergentes e dos contrários em torno do sentido da democracia, está
a afirmação da democracia como um valor geral. Um valor que é de todos,
espaço irrenunciável de realização da dignidade humana. (1984, p.61)
Para o autor a aceitação da democracia como valor universal, tanto pela classe
trabalhadora quanto pelas elites, significou uma tomada de consciência que poderia
finalmente criar as condições necessárias para a transformação do cenário político
nacional:
Hoje, o impulso maior da democratização da sociedade e do Estado no Brasil,
vem de baixo. Isso é tanto mais verdade quando se sabe que os de cima voltam
a alojar-se no Estado, com perspectivas de tímidas reformas que apenas
servem para amenizar o peso das suas estruturas autoritárias. Enquadradas
em uma perspectiva conservadora, as bandeiras da democracia passam às
mãos das classes populares, em particular da classe operária e dos setores da
classe que acompanham a luta. (WEFFORT, 1984, p.99)
A democracia, daí em diante, deveria se tornar um instrumento das classes
populares na luta contra os privilégios da elite, objetivando a sua inclusão dentro dos
sistemas decisórios, exaltando, desse modo, o princípio representativo a partir de um
canal exclusivo da classe trabalhadora – no caso, um partido próprio. Sendo a ampla
maioria a classe trabalhadora deveria fazer com que sua voz fosse ouvida, fazer com
que a economia atendesse as suas demandas e não que se privilegiasse os lucros da
burguesia, que as desigualdades diminuíssem e os direitos sociais aumentassem. Nas
palavras de Weffort: “Se quisermos consolidar a democracia, precisamos lutar por mais
equidade social no interior do quadro institucional vigente. É desse modo que a luta
pela igualdade social poderá contribuir para a consolidação e ampliação das atuais
organizações e instituições” (1984, p.33). Portanto, para Francisco Weffort, a verdadeira
revolução – nunca feita no Brasil – haveria de ser a criação de uma democracia real,
pois nada seria mais subversivo do que estender o poder ao povo. Desse modo, o autor
posiciona-se claramente ao declarar o que espera da democracia no país: deseja que ela
siga o caminho do socialismo. Em suas palavras: “é que, então, a luta pela democracia
será também a luta pelo socialismo” (1984, p. 132). Ou seja, a democracia na perspectiva
deste intelectual é a luta dos e pelos trabalhadores.
Outro autor representativo no debate sobre a democracia é o cientista político
José Álvaro Moisés. Para ele, no processo anterior a 1985, quando os militares ainda
estavam controlando a abertura, antes de uma democratização efetiva, houve o que se
pode chamar de “liberalização” do regime. As mudanças feitas de dentro do governo
não-democrático visaram abrir aos poucos alguns espaços de atuação para diferentes
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grupos da sociedade civil – baseada na fórmula da abertura “lenta, gradual e segura” –
até então excluídas dos espaços de poder (MOISÉS, 1985, p.32-34). Esta liberalização
gradual, concedida a conta gotas pela elite tecnocrática, foi importante para que se
assentassem as bases onde a democracia iria se instalar, mas sozinha não conseguiu
garantir a transição, por isso, a distinção entre liberalização e democratização, para o
autor, faz-se necessária.
A construção e consolidação do regime democrático no caso brasileiro teve início
com a liberalização do regime autoritário; a liberalização, portanto, logo começou a
transformar o regime militar a partir de seu interior em algo mais aberto (a democracia,
esperava-se àquela época), efetivando o movimento de transição pelo qual o país
passava; para Moisés:
[…] terminada a transição, a democratização não está concluída: ela tem, pela
frente, outras etapas a serem cumpridas; elas envolvem, fundamentalmente,
o estabelecimento e a estabilização de padrões de interação política,
qualitativamente distintos das “regras” autoritárias, capazes de institucionalizar
a participação dos cidadãos na vida pública, assim como o funcionamento dos
mecanismos de controle de ação dos que exercem o poder. (1985, p. 35)
Para que a democracia encontrasse solo fértil era preciso ir além do simples
estabelecimento de regras que tornassem a disputa pelo poder pacífica – regras
que são sim importantes. O desenvolvimento de uma noção de cidadania entre as
camadas populares era um dos principais pontos que ajudaria a sedimentar as bases da
democracia como um regime político plenamente aceitável e, portanto, é indispensável
reconhecer os cidadãos como membros da comunidade política, iguais entre si e que,
a partir disso, tenham referendadas suas garantias civis e políticas fundamentais:
A plena vigência da democracia implica no estabelecimento de níveis de equidade
social capazes de equalizar certas condições básicas sem as quais o exercício da
própria cidadania se torna impossível” (MOISÉS, 1985, p.40). Seria necessário mudar
a cultura política que condicionava a nossa visão sobre política, desse modo, deveria
se iniciar, impreterivelmente, uma mudança nas contingências sociais, pois “se for
mantida a realidade atual de enormes desigualdades vigentes na maior parte dos países
latino-americanos, a democratização tenderá a estabelecer regimes de democracias
baseados no apartheid social” (1985, p.40. Grifos do autor). Diminuir a imensa distância
econômica e social que separa os que possuem muito dos que nada possuem, portanto,
é a principal via por onde se poderia efetivamente transformar a tradicional indiferença
da sociedade brasileira diante da democracia e da política. Nesse ponto especificamente
vemos a força do debate sobre para quem, afinal, estava sendo construída a democracia
brasileira, para a elite que se perpetuava no poder ou para as massas de trabalhadores
e depauperados.
Moisés não demonstrava muitas dúvidas de que as massas
13
deveriam ser
incorporadas no processo político por meio do acesso à educação, saúde, e igualdade
13. Sobre a incorporação das massas por meio da inclusão pela cidadania, Moisés vê o caminho sendo
percorrido num sentido diametralmente oposto, para ele a onda de democratização nos anos 1980 e as
novas sociedades democráticas: “longe de se preocuparem em criar a igualdade de condições capaz de
qualificar os cidadãos para participarem da comunidade política, […] parecem preocupar-se, em primeiro
lugar, em assegurar a institucionalização dos seus procedimentos típicos”. Desse modo, a inclusão políti-
ca é vista como algo muito mais importante que a inclusão social. (MOISÉS, 1985, p. 83)
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econômica, isso tudo, para autor, deveria ser um projeto de longo prazo na política
brasileira. Destarte, uma mudança estrutural desse porte só poderia ocorrer quando
a política e as instituições estivessem a serviço das necessidades do povo, dos
trabalhadores (MOISÉS, 1986, p. 185), e estes, por meio de uma organização coletiva
(um partido), poderiam, então, superar as amarras impostas pelo modo capitalista em
voga durante os 1980:
Por outras palavras, referimo-nos não só a um programa ou a determinados
objetivos que desejamos atingir através da luta pela tomada e transformação
do poder (seria uma redundância brutal repetir que partidos políticos
sempre lutam pela conquista e/ou a transformação do poder), mas, a toda
uma concepção da sociedade que desejamos construir (no nosso caso,
uma sociedade nova, precisamente capaz de romper as amarras impostas
pelo capitalismo à plena realização do ser humano; só para citar algumas,
o fenômeno da alienação representado pela existência das classes, o
desperdício da produção capitalista em contraposição à miséria de milhões
de seres humanos, e a marginalidade das massas em relação ao poder).
Portanto, falamos de toda uma concepção nova das realidades sociais, das
relações de poder, da cultura e das formas de criação individual e coletiva
que desejamos implantar de acordo com a nossa visão do destino do homem.
(MOISÉS, 1986, p.178. Grifos nossos)
Tanto para José A. Moisés quanto para Francisco C. Weffort uma real mudança na
estrutura da sociedade somente tomaria forma quando houvesse a efetiva incorporação
da massa trabalhadora, que até aquele momento estava alijada dos processos de poder,
pois a voz do trabalhador na visão dos dois autores é sinônimo da voz da sociedade.
Em um país que estava passando por um rápido processo de transformação social e
econômica, manter o grosso da população afastada dos canais políticos era visto como
um enorme atraso. Um projeto de país, um possível caminho para “qual democracia”
seguir, passava então por uma distribuição mais igual das contingências sociais. Isso
faz com que possamos compreender melhor a visão de democracia que Moisés quis
transmitir, esta começava com a batalha pelo poder e, logo, pela transformação da
sociedade pelas mãos da própria população, pois:
[…] basta lembrar que milhões de seres humanos vivem simplesmente à
margem dos principais benefícios da própria modernização capitalista.
Sem nenhuma participação política e, muitas vezes, não reconhecendo nos
mecanismos de funcionamento da democracia um meio útil para realizar as
mudanças capazes de afetar as suas vidas. (MOISÉS, 1989, p.57)
As formas predatórias assumidas pelo desenvolvimento do capitalismo
brasileiro no período do regime militar – predatória na busca por lucros e na forma
como o capitalismo se aliou ao autoritarismo e corroeu a participação popular – foi uma
questão que mereceu grande reflexão, como se pode ver também na obra de Fernando
H. Cardoso que, nos anos 1970, escreveu: “só os ingênuos confundem desenvolvimento
capitalista com melhoria geral e igualitária do nível de vida” (CARDOSO, 1975, p.16.
Grifos do autor). Cardoso, junto com o chileno Enzo Faletto, formulou a “teoria da
dependência” (CARDOSO; FALETTO, 2004). No livro ambos descreveram a mudança
na estrutura de produção das sociedades latino-americanas, antes voltada à exportação
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de bens primários para o mercado mundial a produção era baseada na monocultura
de produtos agrícolas, com a inserção dessas economias no mercado global e com a
formação de um setor burguês, elas se voltaram para a produção de bens de consumo
para o mercado interno. Sob esta perspectiva, o fortalecimento de uma indústria interna
nesses países criou uma burguesia nacional forte, iniciando assim um processo de
ruptura com as oligarquias tradicionais preconizando uma aguda mudança na estrutura
política interna, principalmente a partir de 1930. A necessária modernização do parque
industrial nacional, dependente do financiamento externo, sedimentou a base onde foi
erigida uma política econômica liberal que conduziu os cenários nacionais nos décadas
seguintes.
O pensamento de Cardoso, portanto, propõe uma inversão semântica da palavra
“dependência”: antes de ser vista como algo ruim a dependência do capital externo
poderia ser utilizada a favor dos países que estavam nessa situação. Dessa forma, o
financiamento estrangeiro poderia ser a base de a indústria nacional tiraria o impulso
inicial para se desenvolver e se sustentar. Em vez de demonizar a situação, Cardoso (vou
focar apenas nele, porém, sem intento de preterir o trabalho de Faletto) vê nela uma
alternativa da qual se pode tirar proveito. Para o autor existe uma situação muito peculiar
no desenvolvimento econômico brasileiro, de modo que existe sim um desenvolvimento
industrial próximo do capitalismo moderno, porém esse desenvolvimento é dependente
do capital estrangeiro e, numa situação sui generis, é “associado, ou seja, ligado ao
Estado e não pertencente exclusivamente a uma burguesa nacional (CARDOSO, 1975,
p.16). Segundo o autor:
Basicamente, ao falar em “desenvolvimento” quero ressaltar que existe
acumulação e portanto expansão econômica capitalista real. […] Entretanto,
a forma dependente, da acumulação quer dizer precisamente que o setor da
produção de bens de produção e o setor financeiro do sistema se abrem para
o exterior e dele requerem os elementos para sua expansão continuada. (1975,
p.16. Grifos do autor)
Para Cardoso essas mudanças na estrutura da sociedade eram incontornáveis,
qualquer tentativa de retorno a uma situação anterior era impraticável. A economia
brasileira já estava em pleno desenvolvimento. Seus contornos também já estavam
dados, pois na sua gênese ela já era dependente do capital externo e associada, dividida
entre o dirigismo estatal e burguesia industrial. A associação do capital externo com
a empresa estatal, porém, cria uma situação que expõe o “individualismo possessivo
da empresa pública, uma vez que a presença de forças econômicas privadas que se
beneficiam diretamente do regime contribui muito para a criação do que ele chama de
“anéis burocráticos” (CARDOSO, 1975, p.206). Situação em que grupos de interesse
privados se articulam para se inserir junto ao aparelho estatal fomentando uma situação
de extrema burocratização do sistema. De modo que, para Cardoso, não é a dependência
do capital externo que deve ser combatida, mas deve-se sim lutar pela liberalização,
ou afrouxamento, da burocracia estatal, essa sim é a ponta-de-lança que deve guiar o
pensamento democrático brasileiro:
[…] os fundamentos utópico-teórico-ideológicos da ideia de democracia numa
sociedade de massas em uma de economia dependente. Salta aos olhos que o
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‘individualismo possessivo’ e a ideia de cidadão-proprietário como fundamento
da democracia é pobre para justificar a luta democrática no Brasil. O que
está em jogo hoje não é a ‘liberdade do indivíduo’ versus o totalitarismo do
Estado. […] Mas a desigualdade e a fragilidade do indivíduo diante da empresa
e da burocracia clamam pela legitimação de um sujeito histórico ‘coletivo’:
é o sindicato, a comunidade, o movimento e mesmo o partido que aparece
como o ator em constituição para contrapor-se ao arbítrio e à exploração.
(CARDOSO, 1988, p.478)
Como estas empresas mesclam interesses públicos e privados “a burocratização
dos eixos de poder (e a politização das burocracias, pois os processos caminham
paralelamente)” (CARDOSO, 1975, p.185), faz-se necessário uma liberalização do regime,
seja o autoritário, seja o democrático. Como, para o autor, o Brasil foi um estado-
burocrático construído com base no segredo e na manipulação, portanto, “é preciso
forçar a liberdade de informação. Não apenas ao nível do Estado, mas, concretamente,
ao nível de cada organização da sociedade civil” (1985, p.186). Se em outros tempos a
elite empresarial do país via no autoritarismo a solução para debelar as revoltas da
plebe, a burocratização do sistema tornou evidente que ao sufocar a liberdade civil a
quimera estatal pode engolir os próprios projetos de desenvolvimento da burguesia.
Desse modo, Cardoso expressa que:
Enquanto as elites dirigentes e os grupos opositores, tanto os ligados à ordem
social dominante quanto os populares, não entenderem que a democratização
não significa a eliminação dos conflitos pela via da adesão simbólica e valores
pseudo-consensuais que estabelecem uma ordem supostamente homogênea,
mas praticamente o oposto, ou seja, o reconhecimento da necessidade e
legitimidade da divergência – enquanto isto não for entendido, os riscos do
totalitarismo estarão presentes. (1975, p. 237)
A “adesão simbólica” e os “valores pseudo-consensuais” obtidos por meio da
força tornaram-se aberrações políticas que estavam retardando o desenvolvimento
econômico e social do país. A democracia política perdia-se entre os “anéis burocráticos”
que se estendiam por todo o governo e a democracia econômica, em consequência,
ficava distante devido aos entraves causados ao mercado pela má gestão econômica
do Estado.14 A democracia, além de necessária seria, talvez, a única via que poderia
reconduzir aos trilhos a caótica situação política e econômica na qual o país se meteu
nas décadas de 1970 e 1980. Contudo, o crescimento econômico não foi acompanhado
de uma distribuição de renda, ao contrário, as desigualdades sociais apenas aumentaram
enquanto as decisões políticas concentraram-se cada vez mais nas mãos de uma casta
de tecnocratas e políticos que as tomavam alheios aos anseios populares, acentuando
ainda mais a verticalização autoritária, exortando o povo das deliberações e suprimindo
a participação popular. Para o autor, portanto, “é indispensável marcharmos para
mecanismos de participação” (CARDOSO, 1985, p. 69).
Assim como os outros autores comentados nesta curta seção, Cardoso defende
o combate incansável às desigualdades sociais do país, porém o caminho que propõe
14. A solução essencial para Cardoso é restituir as garantias civis, para combater a burocracia estatal
enraizada, como podemos ver no seguinte trecho: “Pode ser utópico e repetitivo, mas é essencial: as
garantias civis são condição indispensável para evitar a burocratização e a opressão em qualquer regime:
socialista, capitalista, democrático ou autoritário”. (CARDOSO, 1975, p. 186)
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percorrer é um pouco diferente – não pretende uma ruptura radical pela via da revolução
socialista como Weffort para, enfim, construirmos uma real democracia no país e
também não apregoa uma mudança profunda nas engrenagens sociais como Moisés –
seu trabalho, se concordarmos com a análise do historiados José Carlos Reis, ao retirar
o peso histórico da dependência de capitais do estrangeiro, deposita sua esperança de
mudança em direção ao desenvolvimento industrial e à democracia, mas tudo dentro da
estrutura capitalista.
15
Considerações Finais
As formas que a noção de democracia no Brasil tomou ao longo desse período
(década de 1980) evidenciam os diferentes projetos de futuro que ora confundiam-
se em objetivos, ora tornavam-se diametralmente opostos, por vezes antitéticos. As
aproximações davam-se, sobretudo, no que tange à problemática da participação popular,
a soberania do povo e sua inclusão através da cidadania (entendida como inclusão
econômica, social e política) e, principalmente, o combate constante ao pauperismo
perene no Brasil. Esses assuntos apareceram como temas constantes na literatura
da época como buscamos mostrar. A partir disso à direita e à esquerda formularam-
se propostas de como resolver estes problemas, preconizando uma disputa narrativa
sobre a “melhor” democracia que tomaria maior corpo no começo da década seguinte,
quando Fernando Collor foi eleito presidente e iniciou reformas de cunho neoliberal
acirrando ainda mais o debate na esfera pública.
Este artigo, longe de querer resolver o problema, apenas pretendeu mostrar,
de forma aproximativa, algumas posições no interior do debate sobre a inserção da
democracia e sobre qual a forma que estava deveria assumir ao ser implantada no Brasil.
As proposições foram difusas, pois ora defendiam-se posições próximas aos ideais
socialistas (caso de Weffort), ora defendiam posições ligadas à manutenção da estrutura
capitalista (Cardoso), ou apregoavam posições intermediárias, talvez mais próximas
aos ideais da socialdemocracia (Moisés). Ao escolher autores que representavam, em
certa medida, cada uma dessas posições, procuramos mostrar como aquelas disputas
discursivas em torno do conceito de democracia que aconteceram ao longo da década
de 1980 ainda continuam reverberando no como nós, ainda nos dias de hoje, pensamos
a democracia. O debate sobre “qual democracia”, portanto, faz-se muito atual. Podemos
até mesmo dizer que se configura em um “passado que não passa”.
Referências
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1975.
15. Segundo Reis: “Em F.H Cardoso a mudança é percebida como aceleração em outro sentido: o da mo-
dernização capitalista, mas com associação e dependência. A mudança não é ruptura estrutural, mas a
realização das possibilidades estruturais. F.H Cardoso constata que o Brasil muda e rápido, mas dentro
da estrutura capitalista. E ele não protesta contra este sentido da história brasileira. A ruptura estrutu-
ral foi reconhecida como inviável, um sonho irrealizável. A emancipação e a autonomia nacionais, que
representariam tal revolução, foram substituídas pela radicalização e renovação da dependência e do
comprometimento da autonomia nacional. Mas, fundamentalmente, com mudança, produzida por novos
sujeitos históricos, em direção ao desenvolvimento e à democracia.” (REIS, 2006. p. 268).
Intelectuais e pensamento democrático no Brasil durante a década de 1980
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 245-260, jul.-dez., 2016.
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