FACES DA HISTÓRIA
71 71
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico
mato-grossense A Cruz (1910-1915)
Representations of women in the Mato Grosso’s catholic
newspaper A Cruz (1910-1915)
Tânia Regina Zimmermann
*
Ana Carolina Oliveira Carlos
**
Resumo: Esta pesquisa apresenta algumas representações sobre as relações de gênero na
imprensa mato-grossense do início do século XX, mais especificamente da capital Cuiabá.
Tendo como documento fundamental para a pesquisa o jornal católico A Cruz, nos anos de
1910 a 1915, percebemos que esse periódico contribuiu para compreender os discursos
sobre um conjunto de prescrições imputadas às mulheres, como literatura ideal, os ideais
católicos de maternidade, as relações entre e família, prescrevendo, assim, o lugar da
mulher na sociedade mato-grossense. Nesse jornal católico, os discursos, em sua maioria,
foram escritos por homens, cuja pretensão era a manutenção dos papéis tradicionais de
gênero em um momento histórico no qual mudanças ocorriam nos estatutos e poderes de
gênero em grandes cidades do Brasil e de outros países.
Palavras-chave: Jornal A Cruz. Representações. Imprensa. Mato Grosso.
Abstract: This research presents some representations of gender relationships in the Mato
Grosso´s press of the beginning of century XX, more specifically of the capital, Cuiaba.
Analyzing the periodical catholic A Cruz in the years of 1910 the 1915, this study contributed
in significant way to understand the discourse which prescribed to women, as the ideal
literature, the catholic ideals of motherhood, the relationship between faith and family,
therefore, the place of women in society Mato Grosso. In this catholic newspaper, the
speeches, mostly, were written by men, whose pretension was the maintenance of the
traditional papers of gender at a historical moment where changes occurred in the statutes
and powers of sort in great cities of Brazil and of other countries
Keywords: Periodical A Cruz. Representations. Press. Mato Grosso.
Com o alavancar de renovações e inovações metodológicas, a partir da Escola dos
Annales, começou-se a retirar do limbo as fontes jornalísticas. Além dessa contribuição, os
estudos em torno da micro-história aproximaram o detalhe, o sensível, as paixões, os
*
Professora Doutora. Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em Educação - Universidade
Estadual do Mato Grosso do Sul, Campus de Amambai – Rua José Luis Sampaio Ferraz, 1133, CEP: 79990-000,
Amambai, MS, Brasil.. E-mail: zimmermanntania@hotmail.com
**
Professora Pós-Graduada (Stricto Sensu) em História e Geografia pela Universidade Católica Dom Bosco,
Campo Grande, MS. E-mail: anacarolinahistoria@gmail.com
Recebido em: 4 de abril de 2014.
Aprovado em: 16 de junho de 2014.
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
72
interesses políticos, colocando em pauta a complexidade da compreensão histórica. Na
História Cultural, novas fissuras no trato documental foram introduzidas e temas, antes
desprezados pela historiografia, passaram a adquirir importância nos estudos históricos,
inaugurando novas tendências metodológicas para a construção historiográfica:
[...] passaram a investigar a história da família, as tradições e formas de
consciência da classe operária, o medo ou os odores, a sensibilidade e as
atitudes morais das sociedades, os imaginários populares, o nascimento da
idéia do purgatório, a cosmovisão de um moleiro do século XVI, a história
da loucura ou da razão nas épocas clássica e moderna, a vida privada e a
vida cotidiana, o imaginário trifuncional do feudalismo, a idéia da morte ou
da descristianização, a imagem da criança no Antigo Regime, entre muitas
outras.(ROJAS, 2004, p. 110)
Consequentemente, a história das mulheres ganhou visibilidade e espaço no meio
intelectual. Um exemplo, claro, dessa visibilidade foi assim descrita pela francesa Simone de
Beauvoir, no final década de 1940, com seu livro O Segundo Sexo:
A mulher não é vítima de nenhuma fatalidade misteriosa; as singularidades
que a especificam tiram sua importância da significação de que se
revestem; poderão ser superadas desde que as apreendam dentro de
perspectivas novas; vimos que através de sua experiência erótica a mulher
sente – e amiúde detesta – o domínio do homem: disso não se deve
concluir que seus ovários a condenem a viver eternamente de joelhos
diante dele. (BEAUVOIR, 1949, p. 546)
Simone de Beauvoir tornou-se uma das precursoras no estudo sobre o feminino e
sobre a igualdade entre os gêneros rompendo barreiras ao questionar, por exemplo, o
aborto, o lesbianismo e a independência feminina. Esses temas eram considerados
polêmicos numa época em que os valores tradicionais, relacionados à condição das
mulheres de submissão, ainda eram bastante proeminentes.
É importante, também, ressaltar a importância do feminismo, que teve suas primeiras
manifestações, ou seja, na Primeira Onda, entre o fim do século XIX e início do século XX,
como um movimento que impulsionou as reivindicações políticas e econômicas direcionadas
às mulheres e a sua participação nas decisões públicas. Segundo Michelle Perrot, o
feminismo age em movimentos súbitos, por ondas: “É intermitente, sincopado, mas
ressurgente porque não se baseia em organizações estáveis capazes de capitalizá-lo”
(PERROT, 2007, p. 155). Esse movimento veio de um processo histórico, em curso, em
vários países ocidentais.
O Pós Segunda Guerra Mundial deu início à Segunda Onda do feminismo. Assim
sendo, houve uma luta concentrada em favor de novos espaços para as mulheres. Luta
advinda de movimentos sociais que, também, focalizaram as questões do corpo e da
sexualidade. Nesse contexto, o feminismo é chamado de Segunda Onda, uma vez que
difere da Primeira Onda dando prioridade às lutas pelo direito ao corpo, ao prazer e contra
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico mato-grossense A Cruz (1910-1915)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
73
toda forma de dominação masculina. Conforme Joana Maria Pedro, uma das palavras de
ordem da Segunda Onda era: o privado é político (PEDRO, 2006, p. 79). Essa Segunda
Onda foi marcada por um feminismo renovado, com novos anseios, buscando, além da
igualdade, também, a liberdade sexual, o direito à contracepção, ao aborto e ao divórcio.
Dessa forma:
O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica
em que o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tenha que adaptar-se a
modelos hierarquizados, e onde as qualidades ‘femininas ou masculinas’
sejam atributos do ser humano em sua globalidade. (ALVES, 2003, p. 9)
Deve-se frisar que esta pesquisa se pautou nas análises de representações das
relações de gênero no impresso mato-grossense católico A Cruz do início do século XX.
Pela análise de discurso, buscou-se entender como o periódico construiu um conjunto de
prescrições comportamentais, morais e de sexualidade para as mulheres. Nesse conjunto
de prescrições, é possível destacar a literatura ideal para as mulheres, os ideais católicos de
maternidade, as relações entre e família e, assim, o lugar da mulher na sociedade mato-
grossense.
O recorte temporal deve-se pela ênfase do periódico, A Cruz, em atingir o público
feminino, propondo a criação de estereótipos para a mulher católica. Após 1915, as
publicações diminuíram o foco no público feminino. Possivelmente, essa diminuição estava
atrelada às decisões editoriais, devido propostas de matérias com outros enfoques e outras
campanhas religiosas.
Essa análise tornou-se possível por meio de bibliografias sobre a história das
mulheres e de suas lutas ao longo da história contemporânea. Partindo desse pressuposto,
foi, por meio da crítica à História das Mulheres, que o uso da categoria “gênero” passou a
designar aspectos culturais, sociais e políticos, implicados nas diferenças construídas entre
homens e mulheres, entre homens, entre mulheres, em uma perspectiva relacional, ou seja:
[...] uma vez que o gênero foi definido como relativo ao contexto social e
cultural, foi possível pensar em termos de diferentes sistemas de gênero e
nas relações daqueles com outras categorias como raça, classe, etnia,
assim como levar em conta a mudança. (SCOTT, 1992, p.87)
Sendo assim, é necessário entender que toda a pluralidade existente na categoria
“gênero”, “(...) usado primeiro para analisar as diferenças entre os sexos, foi estendida à
questão das diferenças dentro da diferença” (SCOTT, 1992, p. 87). Ainda sobre o uso da
categoria ressalta-se que:
[...] o uso da categoria gênero está relacionado às construções culturais
entre os sexos, e essas relações devem ser percebidas de forma relacional,
ou seja, o estudo de um sexo implica também o estudo do outro. Este
estudo não trata apenas da definição dos papéis do feminino e do
masculino, pois, assim estaríamos reafirmando a naturalização de espaços
sociais, mas trata-se, sobretudo, de perceber como essas relações se
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
74
estabelecem e como são determinadas na sociedade. (ZIMMERMANN,
2006, p. 145)
A partir dessa análise, é possível perceber e compreender as relações existentes
entre homens e mulheres em suas mais diversas complexidades e interpretações.
É importante ressaltar, por outro lado, que a pesquisa também recorreu à análise do
discurso jornalístico do periódico A Cruz como a principal fonte documental para a execução
deste trabalho. Em relação ao uso dos periódicos como fonte é necessário que se observe:
[...] a forma como os impressos chegaram às mãos dos leitores, sua
aparência física (formato, tipo de papel, qualidade da impressão, capa,
presença/ ausência de ilustrações), a estruturação e divisão do conteúdo,
as relações que manteve (ou não) com o mercado, a publicidade, o público
a que visava atingir, os objetivos propostos. (LUCA, 2005, p. 138)
Além disso, a análise do discurso jornalístico é uma ação que se constitui de um
valioso recurso metodológico que vai além de uma prática social, pois consegue transmitir
fatos que fazem parte de um processo histórico. Segundo Bethânia Sampaio Corrêa
Mariani:
Analisar o discurso jornalístico é considerá-lo do ponto de vista do
funcionamento imaginário de uma época: o discurso jornalístico tanto se
comporta como uma prática social produtora de sentidos como também,
direta e indiretamente, veicula as várias vozes constitutivas daquele
imaginário. Em suma, o discurso jornalístico (assim como qualquer outra
prática discursiva) integra uma sociedade, sua história. Mas ele também é
história, ou melhor, ele está entranhado de historicidade. (MARIANI, 2001,
p. 33)
Nota-se, portanto, que, sendo o jornal um meio de comunicação que transmite
construções de acontecimentos diários de uma determinada sociedade, é imprescindível
que o pesquisador esteja atento a várias questões quando se trabalha com fontes dessa
natureza, pois:
[...] a imprensa periódica seleciona, ordena, estrutura e narra, de uma
determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar até o
público. O historiador de sua parte dispõe de ferramentas provenientes da
análise do discurso que problematizam a identificação imediata e linear
entre a narração do acontecimento e o próprio acontecimento, questão,
aliás, que está longe de ser exclusiva do texto da imprensa. (LUCA, 2005, p.
138)
Para tanto, cabe ao pesquisador, por meio da análise discursiva dos jornais, verificar
o motivo pelo qual certos temas foram abordados nas publicações e a que público
específico se direcionava as notícias. Nesse sentido, o pesquisador dos jornais trabalha com
o que se tornou notícia, o que por si “[...] abarca um espectro de questões, pois será
preciso dar conta das motivações que levaram à decisão de dar publicidade a alguma coisa”
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico mato-grossense A Cruz (1910-1915)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
75
(LUCA, 2005, p. 140), já que, a ênfase em certos temas, a linguagem e o conteúdo
tampouco se dissociam do público que o jornal ou revista pretende atingir.
Com relação ao uso da imprensa enquanto fonte, Tânia de Luca aponta para alguns
caminhos trilhados na escritura da história por pesquisadores como José Honório
Rodrigues. Este entendia a imprensa como uma das principais fontes de informação
histórica, desde que utilizada com moderação. Ele advogava que nem sempre a exatidão ou
independência povoava a edição. Como aponta Tânia de Luca nesse autor, a questão não
se centra na falta de objetividade dos jornais e sim na advertência de lidar, com prudência,
com esse tipo de fonte devido a interesses das classes dominantes (LUCA, 2005, p. 116-
117). Assim sendo, a desconfiança com essa fonte seguiu na abordagem histórica.
Diversos trabalhos se orientaram em fontes jornalísticas como Emília Viotti da Costa,
Fernando H. Cardoso, Tânia Regina de Luca e Maria Helena Rolim Capelato. O trabalho de
Nelson Werneck Sodré trouxe a público, a história da imprensa brasileira desde seus
começos até os anos de 1960. A partir da década de 1970, a imprensa tornou-se
efetivamente objeto da pesquisa histórica. Deleuze e Guatarri (1995) desenvolveram a ideia
de que a linguagem é feita para obedecer e fazer obedecer. Esses autores, ao analisarem o
efeito da imprensa, entendem que os jornais e as notícias procedem por redundância ao
dizerem o que é necessário pensar, reter etc.
Nos estudos relacionados às questões de gênero e imprensa destacam-se os
trabalhos de Joana Maria Pedro, na obra Mulheres honestas e mulheres faladas: uma
questão de classe (1998) Papéis sociais femininos na sociedade de Desterro/ Florianópolis
1880 1920 (1995). Nesta obra, Pedro analisou perfis construídos sobre mulheres
denominadas honestas e as faladas na imprensa local. na obra intitulada Nas tramas
entre o público e o privado: a imprensa de Desterro no século XIX, a autora elenca
relevantes características da imprensa brasileira no século XIX, a partir de periódicos
publicados na cidade de Desterro entre os anos de 1831 e 1889. Nesse estudo, Pedro
compreende como a imprensa desterrense estava ligada a interesses privados e operava
em afinidade com o poder público, almejando alcançar resultados em seu benefício
(PEDRO, 1995). Ambos os estudos trazem importantíssimos subsídios metodológicos para
a pesquisa com periódicos.
Portanto, para finalizar a revisão bibliográfica, é indispensável destacar a historiadora
Michelle Perrot que, sem dúvida, trouxe inúmeras contribuições no campo da história das
mulheres:
A história das mulheres mudou. Em seus objetos, em seus pontos de vista.
Partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida
privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da
cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma história
das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
76
múltiplas interações que provocam a mudança. Partiu de uma história das
mulheres para tornar-se mais especificamente uma história do gênero, que
insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade. Alargou suas
perspectivas espaciais, religiosas, culturais. (PERROT, 2007, p. 15-16)
A autora argumenta que é necessário trazer à tona diversos aspectos do cotidiano
feminino, tanto em âmbito público quanto em âmbito privado. Também existem diversas
fontes quando se fala em história das mulheres, mas faz-se necessário que se desvendem
os jornais, livros, bibliotecas, arquivos públicos e privados (PERROT, 2007, p. 15-16).
Assim, a pesquisa, que se prestou na análise das notícias do jornal católico A Cruz
da Província de Cuiabá, num recorte temporal de cinco anos (1910 a 1915), pôde, por meio
de bibliografias referentes aos estudos com fontes jornalísticas, bem como na área do
estudo da história das mulheres e de gênero, compreender as prescrições comportamentais
voltadas para as mulheres daquele período, pois “[...] a exploração de fontes documentais e
arquivos, que até então não suscitavam maior interesse, foi fundamental para o desabrochar
de uma história da mulher no Brasil.” (DEL PRIORE, 2005, p. 227).
O periódico A Cruz foi relevante meio de comunicação da sociedade cuiabana do
início do século XX. Publicado desde a primeira década do século XX, até meados da
década de 1950, esse periódico era editado pelo Seminário Episcopal da capital Cuiabá e
contava com artigos escritos por padres, bispos, uma correspondente internacional e
pessoas do meio religioso católico.
O jornal informava, quinzenalmente, seus leitores (mulheres católicas da elite
cuiabana principalmente) com notícias sobre os acontecimentos da cidade, do país, notas
de falecimentos, aniversários e casamentos, festas religiosas, publicação de anúncios
comerciais e, principalmente, matérias referentes à Igreja Católica, contemplando, inclusive,
colunas e editoriais sobre como deveria ser a conduta dos fiéis católicos.
No decorrer dessa pesquisa, o que chamou mais atenção foi o fato de que, na
maioria das vezes, as matérias publicadas no periódico A Cruz, durante os anos de 1910 e
1915, e que pretendiam, por foco, atingir o público feminino, propunham a criação de
estereótipos da mulher católica seguidora do caminho cristão. Essa mulher estaria
designada a ser dona-de-casa, esposa e mãe, funções estas que deveriam ser exercidas
incansavelmente.
O periódico A Cruz transcorreu nas suas páginas uma expressiva preocupação da
Igreja em combater e conscientizar o seu público leitor de problemas contemporâneos que
pudessem ameaçar o modelo patriarcal das famílias cristãs cuiabanas/mato-grossenses,
tendo em vista que o jornal A Cruz era repleto de um catolicismo conservador e tradicional.
Nos fragmentos abaixo se observa o seguinte:
Quando à nossa mente serena se afigura o horizonte social, e nós
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico mato-grossense A Cruz (1910-1915)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
77
meditamos o caminho moral que o nosso povo vai palmilhando, dificilmente
nos podemos livrar de um pensamento acabrunhador a meninice vai
perdendo a fé, parte está estragada, parte prestes a cair no desolador e
tétrico ateísmo. É inútil reproduzir estatísticas. Os jornais mostram-nos
unicamente centenas de moços com as mãos conspurcadas de sangue,
outros dados com maus costumes; e as almas entregues a corrupção. E’ o
que nós todos sabemos. Mas pode logicamente a sociedade repousar
tranqüila? É nos lícito ou permitido permanecermos frios e indiferentes
diante de uma chaga que dia a dia torna se mais profunda? Estamos na
época do progresso. [...]. Mas poucas palavras com relação a família. Mas
poucas palavras com relação à família desta feita é um argumento
delicadíssimo e merece ser estudado e resolvido com amor. Certamente ao
calor do álcool e da discórdia não pode florescer a inocência: ela
desabrocha viçosa floresce e vinga ao calor do sacrifício cristão: em um
ambiente cético e leigo não podem florescer bela e perfumada a fé, nem a
virtude. (A CRUZ, 01 de dezembro de 1910, p.01)
Segundo esse periódico, a educação moral cristã dos filhos e filhas era de total
responsabilidade das mulheres. Uma mãe católica, exemplar, deveria zelar pela religião da
sua família seguindo a risca o caminho cristão. Na edição do jornal A Cruz, do dia 10 de
dezembro de 1911, publicou-se uma matéria intitulada Gotas de Orvalho Mãe. Segundo
essa matéria, depois de Deus, a mãe é quem prepara o futuro de um homem, ou seja, o
destino do seu filho. Também é ela a responsável por ter formado filhos santos no mundo:
Santo Agostinho não se cansava de dizer: Meus Deus, devo tudo a minha
mãe: S. Gregório Magno deixou-nos um monumento do que julgava dever a
piedade esclarecida de sua mãe Sylva. Fê-la a pintar sentada a seu lado, de
vestido branco, com símbolo dos doutores da cabeça [sic], estendendo dois
dedos da mão direita, como para abençoar, e sustentando com a esquerda
o livro dos Santos Evangelhos debaixo dos olhos de seu filho. Quem nos
deu S, Bernardo? Quem o fez tão puro, tão forte, tão abrasado de amor
para com Deus? Sua santa mãe Azeta. Quem formou quase todos os
santos? Suas mães. [...]. Pois bem, sejam as mães verdadeiramente
devotas de amantíssimo Coração de Jesus, e assim acontecerá! O mundo
encher-se-á de Santos, e será salvo. (A CRUZ, 10 de setembro de 1911,
p.2)
As mães católicas, segundo o periódico A Cruz, também tinham que vigiar as suas
filhas para que não ficassem, consequentemente, desmoralizadas ante a sociedade. Para
que isso não acontecesse, as mães de família, obrigatoriamente, deviam instruir as meninas
a serem perfeitas donas-de-casa. Elas deveriam aprender desde cedo e, principalmente
antes do casamento, a realizar os afazeres domésticos como lavar, passar, engomar e
cozinhar, pois esse era o futuro que a Igreja determinava para as mulheres que seguiam os
preceitos do catolicismo: “[...] ensina-lhe, primeiramente, a ser boa dona-de-casa,
explicando-lhe todo o seu cortejo de espinhosos deveres e obrigações. Tira a da janela, põe-
a na cozinha, ensina-lhe a cozer, também a coser e a engomar.” (A CRUZ, 11 de junho de
1915, p.2).
Perrot observa, em outro contexto, mas também válido para a sociedade cuiabana,
que era preciso, portanto:
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
78
[...] instruí-las apenas no que é necessário para torná-las agradáveis e úteis:
um saber social, em suma. Formá-las para seus papéis futuros de mulher,
de dona-de-casa, de esposa, e mãe. Inculcar-lhes bons hábitos de
economia e de higiene, os valores morais de pudor, obediência, polidez,
renúncia, sacrifício... que tecem a coroa das virtudes femininas. Esse
conteúdo comum a todas, varia segundo as épocas e os meios, assim como
os métodos utilizados para ensiná-lo. (PERROT, 2007, p. 93)
Dessa forma, observa-se que os papéis/funções, tidos como parte integrante e
primordial do universo feminino, sempre foram comum na vida das mulheres, variando
conforme as épocas, os meios e o método de como foram ensinadas, mas sem alterá-los
com relação aos seus personagens históricos.
O jornal católico A Cruz também se preocupou em passar para suas leitoras as
noções do que viriam a ser atitudes não cristãs. Um exemplo, acerca dessa questão, foi a
presença de matérias que criticaram a leitura de livros de romances pelas moças. Estas
moças eram consideradas portadoras de uma boa conduta moral cristã antes da leitura
desses livros. Após a leitura de romances, elas teriam sido corrompidas nas suas virtudes
de pureza, pudor e obediência, tendo em vista que, para a Igreja da época, a leitura de tais
obras abriria as portas perigosas do imaginário.
Segundo a publicação do jornal, esses livros teriam invadido a sociedade, atingindo
toda espécie de indivíduos, sendo responsável por desvirtuar e afastar, principalmente, as
moças do caminho cristão. Na citação abaixo, extraída da matéria O Romance, publicada no
dia 01 de dezembro de 1910, é visto que:
Um gênero de literatura, ultimamente tem conseguido atrair simpatias
universais _ é o romance. [...] o bom romance é raro. O mau é o que se
por toda a parte e que como tal faz o mal. E’ um tirano, um inimigo
implacável da família e, sobretudo da incauta donzela, de quem ele é
crudelíssimo sedutor. Ah! bem pouca gente sabe avaliar a o que seja o mau
romance! Sim. Estais vendo aquela moça? Até a pouco tempo ela era um
modelo de bondade, de obediência, de modéstia e de piedade. Era feliz e
também era a felicidade dos seus. Mas agora não é mais. Anda cheia de
inquietações, faz mal as suas orações, já pouco vai a igreja, e às vezes nem
mesmo quer falar mais de cousas de religião. Só encontra prazer nos
bailes, nos jardins, nos passeios, nos divertimentos; colocando muitas
vezes a sua pobre mãe em sérios apuros para satisfazer as suas exigências
e os seus caprichos. E qual a causa desta mudança? As mais das vezes a
leitura de um mau romance, que a seduziu e lhe roubou a paz e talvez todo
o tesouro de suas virtudes. (A CRUZ, 01 de dezembro de 1910, p. 3)
Essa mesma matéria atacava a leitura dos livros de romances fazendo analogias
bíblicas. Um claro exemplo, acerca disso, é a narrativa de Eva no Paraíso, cuja tentação em
ler os romances se assemelha com a inquietude de Eva, a pecadora, pois ela, também, foi
tentada, pelo demônio, a usufruir do fruto proibido. Os livros de romances também seriam o
fruto que não poderia ser colhido, cabendo aos pais e mães de família alertar e proibir suas
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico mato-grossense A Cruz (1910-1915)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
79
filhas para não o lerem, pois:
[...] Como Eva no paraíso, três tentações a desgraçaram: tentação de
orgulho, de curiosidade e de sensualidade. Deus tinha proibido a Eva tocar
no fruto da arvore fatídica, com declaração de que tocar naquele fruto seria
uma desgraça. Mas o demônio, disfarçado pergunta a Eva: Por que Deus te
proibiu este fruto? Ora és uma tola; no dia em que comeres deste fruto
serás como Deus. - Minha filha, diz muitas vezes uma boa mãe. Não leias
este livro ele é mau e quando menos, muito perigoso. Não te exponhas a
este perigo, porque te custará muito caro a experiência. - Após esta
proibição; vem o demônio e fala a esta moça no fundo do coração ou pela
boca de uma amiga: Porque tua mãe proíbe a leitura deste livro? Esta
proibição não pode ser para ti. E proibição para uma criança; porém
estás moça feita, tem bastante juízo e não podes ser governada como
ainda fosse uma menina de escola. [...] O fruto que se apresentara a Eva no
paraíso era belo, atraente e excitava o apetite. E Eva, já vencida pelo
orgulho e curiosidade; se deixa vencer ultimamente pela sensualidade. E
ela colhe o fruto proibido... - O livro perigoso, que esta moça tem em cima
de sua mesa e também um livro cheio de encanto [...]. (A CRUZ, 01 de
dezembro de 1910, p. 3)
O conselho que segue mostra a preocupação das possíveis práticas de leitura, ou
seja, nas possibilidades que a leitora teria ao interpretar tal texto:
Ler este livro é um prazer. E a pobre moça, não podendo mais resistir a
sedução, toma o insidioso livro e sai em busca de um lugar retirado, onde
ninguém possa ser testemunha da sua imprudência. Absorvido o filtro, não
tarda o delírio. O coração se agita, e a imaginação se exalta com as cenas
impressionantes que passam diante do seu espírito. Começa a sentir o que
nunca sentiu e dentro do seu coração acordam pensamentos e desejos
que ela não conhecia até então. No meio da perturbação da sua alma uma
voz lhe brada: deixa este livro. - Mas como deixar interrompido este
enredo? Como não ver o seu desenlace? E com verdadeira febre ela passa
entre os dedos nervosos aquelas páginas envenenadas até que soa um
momento em que a infeliz chega ao fim. Mas no fim está a paixão! Está a
morte de espírito e do coração! ... no fim está o criem ! E eis o que ela
encontrou como remate do seu orgulho, da sua curiosidade, e da sua
sensualidade. Antes de ter acolhido este livro, a alma desta infeliz era um
anjo de inocência; depois da leitura dele...[...] Esperava gratíssimas
sensações e através do prazer ela encontrou o remorso, que agora lhe
enche de alma de amarguras. Ai da família onde entra o mau romance! Os
pais e mães de família que não defendem a sua casa contra este vampiro
da inocência, da honra e da felicidade, do lar, não tem mais amor aos seus
filhos e parecem esquecidos de que a desonra dos filhos é também a
desonra dos pais. (A CRUZ, 01 de dezembro de 1910, p. 3)
Ainda constatou-se, em um artigo de autor não identificado, intitulado Revistas e
Jornais maus, publicado no dia 15 de janeiro de 1911, a questão de leituras consideradas
inadequadas para o público cristão-católico. Ali, era exigido que as folhas com leituras
impróprias para os filhos e mulheres de família fossem rasgadas:
As revistas e maus jornais dividem-se em duas classes: a dos descarados
e a dos hipócritas. Os primeiros são em pequeno número, e, por muitas
razões, são menos temíveis. Os segundos são inúmeros e, sob todos os
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
80
conceitos, são mais funestos. Os tais negam Deus claramente, e
perseguem sua Igreja; em Religião são ateus, em moral sensualista. [...]
Não se sabe dizer deles si corrompem os costumes para extraviarem as
inteligências, ou si pelo contrario, pervertem as inteligências para
corromperem os costumes: tal é a mistura que há neles de erros e
imoralidades. Os jornais dessa espécie o são simpáticos para ninguém
por desalmado que seja; sua deformidade os faz repugnantes até para os
mais perversos. Os que com tais armas combatem a religião e a moral
mostram ser moços inexpertos ou velhos egos pelo furor até ao ponto de
desconhecerem o ABC da estratégia. Não escrevem para discutir, nem
para uma leitura sossegada, senão para produzirem uma pressão de
momento, ou lançar abilis longo tempo contida e comprimida.[sic] Rasgai,
filhos do povo, a página ímpia do jornal ou revista, que voz diz o que nunca
queirais ouvir dos vossos filhos e mulher. Rasgai essa folha que vos
apregoa o ódio como o único sentimento digno de vosso coração. [...] (A
CRUZ, 15 de janeiro de 1910, p. 3)
As moças que usufruíam de leituras inapropriadas para uma respeitosa jovem cristã
eram tidas como tentadas pelo diabo e assemelhadas a narrativa bíblica de Eva no Paraíso.
Assim, percebe-se que a mulher católica deveria abdicar de certas leituras que poderiam
influenciá-la com pensamentos maldosos adormecidos e, assim, desvirtuar-se de sua
“natureza” cristã.
O periódico perpassava, além disso, a imagem de que cabia à mulher católica a
responsabilidade obrigatória de zelar, rigorosamente, pela religião de sua família. Maria José
Rosado Nunes, em seu ensaio intitulado Gênero e Religião, salienta que “(...) o investimento
da população feminina nas religiões -se no campo da prática religiosa, nos rituais, na
transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso.” (NUNES, 2005, p. 363). Ou
seja, as mulheres católicas, do início do século XX, conforme se viu nas matérias do
impresso A Cruz, deveriam ser encarregadas da realização das práticas religiosas, com
extrema devoção e piedade, no interior do seu grupo familiar, sendo este um preceito
religioso determinado pela Igreja. Destarte, segundo Maria José Rosado Nunes:
As religiões têm, explícita ou implicitamente, em seu bojo teológico, em sua
prática institucional e histórica, uma específica visão antropológica que
estabelece e delimita os papéis masculinos e femininos. O fundamento
dessa visão encontra-se em uma ordem não humana, não histórica, e,
portanto imutável e indiscutível, por tomar a forma de dogmas. Expressões
das sociedades nas quais nasceram, as religiões espelham sua ordem de
valores, que reproduzem em seu discurso, sob o manto da revelação divina.
O lugar das mulheres no discurso e na prática religiosa não foi, e
frequentemente ainda não é, dos mais felizes. (NUNES, 2005, 363-4)
No contexto específico do catolicismo, a autora Zaíra Ary, ao falar do lugar social e
do valor simbólico das mulheres dentro da Igreja Católica, afirma que:
[...] de certa forma, as mulheres estão excluídas dos lugares de poder e
são, portanto, desvalorizadas como pessoas; por outro lado, elas
constituem o público mais fiel, mais assíduo e, portanto, numericamente
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico mato-grossense A Cruz (1910-1915)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
81
superior em presença aos acontecimentos eclesiásticos. Nas apreciações
correntes do sendo comum, entre nós, e em observações sistemáticas de
outras culturas, as mulheres seriam caracterizadas por certo tipo de apego
emocional e moral às religiões em geral; [...] pode-se constatar também
uma maior participação das mulheres nas práticas rituais e pastorais pela
Igreja Católica. (ARY, 2000, p. 76)
Nas páginas do periódico A Cruz, além de firmar o papel que as mulheres deveriam
desempenhar no seio da Igreja, como praticante da fé católica, enfatizava-se, por outro lado,
à importância da figura materna como o modelo de bondade e de recato na família:
[...] as mulheres, como herdeiras de Maria, semi-divinizada, tomada como
modelo de submissão, de pureza e de sofrimento, são aparentemente
revalorizadas, e tidas simbolicamente como “salvadoras” da sociedade, em
função de seu papel maternal idealizado, no quadro da família
sacramentada [...] (ARY, 2000, 77-8).
Ainda observou-se, nas matérias jornalísticas referentes ao papel materno da mulher,
que a mãe cristã tinha de estar longe de atitudes maliciosas que pudessem tirar o seu pudor.
Nesse modelo ideal, a mulher deve ser uma figura assexuada praticante da virgindade pré-
nupcial e a frigidez pós-nupcial mantendo uma espécie de castidade espiritual.
Acerca da constituição de uma exemplar família cristã, conforme se viu no periódico
católico, também era a figura da mãe quem transmitia a educação moral cristã para seus
filhos e filhas. Assim, para Zaíra Ary:
[...] a mãe cristã deverá ajudar as filhas a cultivar seus atributos
“marianistas”, e nesse sentido vigiá-las em sua educação para que sejam
fiéis aos dois modelos de mulher indicados para sua imitação, a saber sua
própria mãe e Maria; quanto aos filhos, é preciso protegê-los de sua
infortunada tendência a um “exercício desbragado da sexualidade”, que os
impulsionaria para outras mulheres malditas – as sedutoras-prostitutas”,
tão diferentes de suas “santas mães”.(ARY, 2000, p. 80)
Assim, segundo a Igreja, o modelo de mãe ideal é a figura da Virgem Maria, sendo o
exemplo que as mães zelosas pela religião no seio familiar devem seguir, para que, assim,
as suas filhas se espelhassem, tanto na Virgem Maria, quanto na própria mãe. os filhos
devem ser protegidos das mulheres depravadas e de um sexualismo desenfreado, o que
denota uma educação masculina diferenciada da feminina.
Ao falar sobre a questão da maternidade, Simone de Beauvoir afirma que:
É pela maternidade que a mulher realiza integralmente o seu destino
biológico: e é essa a sua vocação “natural”, que todo o seu organismo
está orientado para a perpetuação da espécie. Mas eu já disse que a
sociedade humana não está abandonada à natureza. (BEAUVOIR, 1949, p.
277)
Assim, para Simone de Beauvoir, a mulher o esta fadada a se restringir a sua
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
82
“natureza” materna, assim como a gravidez poder ser vivida de diversas formas e sentidos,
ou seja:
A gravidez é, sobretudo um drama que se joga na mulher entre ela e ela: ela
sente-a ao mesmo tempo como um enriquecimento e como uma mutilação;
o feto é uma parte do seu corpo e é um parasita que a explora; ela possui-o
e é possuída por ele; ele resume todo o futuro e, de o carregar, ela sente-se
vasta como o mundo; mas é esta riqueza mesma que a aniquila, ela tem a
impressão de já não ser nada. (BEAUVOIR apud JOAQUIM, 1999, p. 188)
Percebe-se, de acordo com a assertiva, que a autora Teresa Joaquim, ao interpretar
o conceito de gravidez colocado por Simone de Beauvoir comenta que:
[...] Beauvoir define a gravidez como drama, de forma ambivalente entre
riqueza e falta [...] ela é “um e ‘outro’, todo e parte, princípio e falta”, o feto
como parte do corpo da mulher e algo que o estranha, o ventre entre a
vastidão do mundo e o nada, entre o ser e o não-ser. (JOAQUIM, 1999, p.
188)
Nas páginas do periódico havia, também, notícias vinculadas à posição da esposa e
do marido no casamento, sendo que o marido seria a autoridade de Deus na família. A
mulher seria caracterizada como a personificação da bondade, da obediência e o auxílio do
marido. Assim, verifica-se que a Igreja Católica apresenta-se como uma instituição
conservadora e hierárquica, célebre pela defesa da submissão das mulheres, e que, de
acordo com os seus ensinamentos à posição da mulher no casamento, indica que a chave
da felicidade estaria na fonte mais pura, ou seja, na bíblia. Portanto, o modelo ideal de
casamento, estipulado para uma família cristã, é aquele em que a mulher é subordinada à
autoridade suprema do homem, pois o homem deve dominar em sua casa.
A partir dessa análise, pode-se notar que a Igreja determina os padrões de conduta
que devem ser assumidos pela mulher e pelo homem no casamento, pois:
[...] no catolicismo os homens não são apenas detentores do poder sagrado
de mediação entre os indivíduos e a divindade através do ministério
sacerdotal, mas, além disso, são eles que irão elaborar a narrativa oficial
em que naturalizam padrões sobre o que seria inerente ao mundo feminino
e o que pertenceria ao mundo feminino. (FERNANDES, 2005, p. 426)
Destarte, a postura da mulher casada que persistia no Brasil, desde a primeira
centúria do século XIX e que, por sua vez, ainda se refletia nos anos iniciais de 1900,
conforme se relatou no periódico A Cruz , era a seguinte:
[...] a mulher devia obediência ao marido; os filhos deviam obediência ao pai
de preferência à mãe; o marido e pai não podiam eximir-se de pagar o
sustento da família, fossem quais fossem as suas razões para querer se
separar dela. A conduta da mulher obedecia a um controle muito rígido:
bastavam umas saídas a passeio para que fosse dada como "perdida", ao
passo que a conduta do marido era sempre encarada com benevolência,
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico mato-grossense A Cruz (1910-1915)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
83
fosse ele briguento, bêbado ou amancebado. O recolhimento era a pena
com que os poderes públicos puniam a conduta das mulheres.
(NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2007, p. 433)
A submissão feminina proposta pelo periódico A Cruz pode ser considerada uma
violência simbólica, ou seja, é suave, invisível e dificilmente é percebida pelas suas timas
porque se reproduz no cotidiano por meio de sentimentos, emoções e linguagem, além de
criar modos de ver o mundo cada vez mais nivelado e homogeneizado por intermédio dos
meios de comunicação de massa (BOURDIEU, 1998, p. 16). Para Bourdieu, a violência
simbólica torna-se possível quando suas vítimas a aceitam por meio do conhecimento e,
principalmente, do desconhecimento, do reconhecimento e, em última instância, dos
sentimentos. Estabelece-se uma correlação de forças na qual a maneira de ver o mundo é
imposta e adquire estatuto de verdade (1999, p. 7-11).
Segundo Raquel Soihet, a ocorrência desse tipo de violência simbólica se pelo
fato da mulher ser tratada apenas como uma coisa e não como um sujeito:
[...] buscando-se impedir a sua fala e a sua atividade. Nesta perspectiva, a
violência não se resume a atos de agressão física, decorrendo igualmente,
de uma normatização na cultura, da discriminação e submissão feminina.
(SOIHET, 1997, p. 10)
A formação da identidade feminina estaria baseada em normas proferidas por
discursos masculinos. Isso se justifica, como fato correspondente, a uma violência simbólica
que supõe adesão dos dominados às categorias que embasam sua dominação. Roger
Chartier também destaca que:
Definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica
ajuda a compreender como a relação de dominação, que é uma relação
histórica, cultural e lingüisticamente construída, é sempre afirmada como
uma diferença de natureza, radical, irredutível, universal. (CHARTIER, 1995,
p. 42)
Assim, observa-se, na assertiva, que essa submissão das mulheres está interiorizada
em uma relação histórica e que possui fatores de cunho cultural e de construções
linguísticas e que são asseguradas como sendo uma diferença de natureza irreversível e
universalizada. E, segundo o autor:
O essencial não é então, opor termo a termo, uma definição histórica e uma
definição biológica da oposição masculino/feminino, mas sobretudo
identificar, para cada configuração histórica, os mecanismos que enunciam
e representam como "natural", portanto biológica, a divisão social, e
portanto histórica, dos papéis e das funções. (CHARTIER, 1995, p. 42)
No entanto, Roger Chartier também enfatiza acerca da questão da dominação
masculina que:
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
84
[...] a aceitação, pela maioria das mulheres, de determinados cânones não
significa, apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas,
igualmente, construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a
relação de dominação. Compreende, dessa forma, uma tática que mobiliza
para seus próprios fins uma representação imposta- aceita, mas desviada
contra a ordem que a produziu. Assim, definir os poderes femininos
permitidos por uma situação de sujeição e de inferioridade significa
enten-los como uma reapropriação e um desvio dos instrumentos
simbólicos que instituem a dominação masculina, contra o seu próprio
dominador. (CHARTIER apud SOIHET, 1997, p. 12)
com relação à participação de mulheres no âmbito fora do ambiente familiar, o
impresso católico publicou somente algumas matérias de origem internacional convidando
as mulheres brasileiras a participarem de associações e congressos de ligas femininas
internacionais católicas. Nesses eventos, reivindicavam-se a preservação de valores
religiosos e da conduta moral feminina. Dessa forma, torna-se evidente que a atuação das
mulheres, fora da família, era um espaço restrito a participações de movimentos ligados à
própria Igreja. Assim, Michelle Perrot relata que:
No espaço público, aquele da cidade, homens e mulheres situaram-se nas
duas extremidades da escala de valores. Opõem-se como o dia e a noite.
Investido de uma função oficial, o homem público desempenha um papel
importante e reconhecido. Mais ou menos célebre, participa do poder.
Talvez lhe deem um enterro com honras nacionais. É candidato em
potencial ao Panteão dos Grandes Homens que a Pátria reconhecida
homenageia. (PERROT, 2007, p. 15)
Contudo, a mulher pública era vista como sendo “depravada, debochada, lúbrica,
venal”, a mulher - também se diz a “rapariga”- pública é uma “criatura”, mulher comum que
pertence a todos, ou seja, a imagem de uma mulher pública é totalmente avessa às
características atribuídas ao homem público. Sobre essa abordagem do espaço público e
privado:
[...] Perrot observa que as fronteiras entre ambos nem sempre existiram. É
no século XIX que essas fronteiras se constituíram com nitidez e a exclusão
do espaço público passou a ser dupla: as mulheres e os proletários. Sobre
as mulheres pesava o discurso naturalista, que as tornava aptas para as
sensibilidades e os sentimentos; a elas caberia ordenar o privado, o familiar
e o materno.(ZIMMERMANN, 2006, p. 153)
Raquel Soihet também assinala a respeito da órbita pública e privada relacionando
com o universo feminino e masculino e diz que:
Com a consolidação da burguesia no poder, firma-se no século XIX a
divisão de papéis e uma rígida separação das esferas de atuação entre os
gêneros. O masculino na órbita pública e o feminino no âmbito privado. Tal
se configura mais ênfase entre os segmentos mais elevados. (SOIHET,
1997, p. 11)
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico mato-grossense A Cruz (1910-1915)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
85
O jornal A Cruz era direcionado para um público leitor pertencente, em grande parte,
pela elite da sociedade cuiabana. A realidade mencionada, na assertiva acima, confirma o
que as notícias do impresso transmitiam no início do século XX. Destarte, as esferas
públicas e privadas, relacionadas ao universo feminino e masculino, concretizavam-se
apenas nas camadas de maior poder aquisitivo, pois as mulheres pobres iam às ruas para
exercer algum trabalho visando à sobrevivência de si e da sua família.
Em relação à construção dos saberes de gênero no jornal A Cruz, a coluna intitulada
Cara Irmã tinha por objetivo, principal, criticar, duramente, a postura da mulher que estaria
se desvirtuando do caminho cristão. Nessa coluna são narrados acontecimentos da vida
diária de uma mãe de família e seus atos considerados, muitas vezes, como avessos à
católica e que coube ao seu irmão, um fervoroso católico, a tarefa de orientá-la e a reprimi-la
quando necessário. Com base nesse contexto, é possível notar que muitas mulheres foram
condizentes com o seu papel, pois o poder dos religiosos católicos impunha essa
dominação masculina convencendo-as de sua inferioridade e de outras construções e
atributos negativos como a impureza e a insubmissão.
A mulher cristã, de acordo com o jornal A Cruz e apresentada na coluna Cara Irmã,
era considerada muitas vezes, como indigna da religião por executar atitudes não aceitas
pela Igreja. Um exemplo, acerca disso, foi o grande número de edições dessa coluna
referentes ao tema superstição. As superstições eram atribuídas somente à figura feminina,
chegando a merecer a excomunhão da Igreja, pois a única crença aceita e correta eram os
dogmas determinados pela Igreja.
Considerações Finais
No decorrer deste artigo, objetivou-se analisar matérias e notícias do impresso
católico A Cruz, juntamente com os aportes teóricos relativos ao tema pesquisado. A ênfase
recaiu sobre as principais matérias que giravam em torno de situações relacionadas ao
comportamento das mulheres católicas que viveram na capital da província mato-grossense
durante os primeiros anos do século XX. Também se verificou a intenção do periódico
católico em criar estereótipos femininos que estavam fortemente direcionados aos preceitos
religiosos ditados pela Igreja.
Nesta pesquisa, percebeu-se que as representações femininas no periódico A Cruz,
nos anos de 1910 a 1915, eram estereotipadas de acordo com preceitos religiosos
rigorosos, sendo considerado comum ao destino das mulheres católicas serem donas-de-
casa competentes, mães dedicadas e esposas obedientes, amorosas e submissas. Ainda se
viu, no decorrer das páginas desse impresso, a explícita separação dos papéis femininos e
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
86
masculinos no espaço familiar privado. O homem era o provedor do sustento familiar e a
autoridade máxima e a mulher era o auxílio ao marido, a responsável por zelar pela religião,
de transmitir a educação moral cristã aos filhos e filhas e o exemplo de recato e pudor.
No montante das matérias analisadas também se observou que, no modelo ideal da
família cristã, as mulheres deveriam ser restringidas ao espaço privado. A vida da mulher
católica era limitada à dedicação exclusiva do bem estar da família, uma vez que a
exposição feminina ao público era tolerada somente na participação de associações
religiosas da Igreja que lutavam contra imoralidades não-católicas inseridas no seu meio
social.
Outra análise relaciona-se a imposição de notícias sobre o que era inadequado ao
universo das mulheres cristãs cuiabanas/mato-grossenses. Ou seja, criticava-se,
duramente, geralmente por homens, caso houvesse alguma manifestação que pudesse
desvirtuá-las da católica como, por exemplo, as leituras de romances que corrompiam
algumas virtudes cristãs dessas mulheres.
Houve, por outro lado, a constatação, no periódico A Cruz, da existência de uma
mulher que escrevia artigos para esse impresso. Contudo, mesmo sendo um fato inédito,
encontrar uma figura feminina com um cargo fora do espaço privado, a posição da autora,
perante o seu público leitor feminino, baseava-se no estímulo da preservação da moral
cristã ditada pela Igreja no início do século XX. Ou seja, não havia preocupação, nas suas,
matérias em expor reivindicações de direitos sociais, políticos ou as desigualdades de
gênero.
A pesquisa apresentou por meio do impresso A Cruz, as perspectivas da Igreja
Católica para as mulheres que viviam nos centros urbanos da capital da província mato-
grossense nos anos de 1910 a 1915. A Igreja se mostrou, conforme se viu nas matérias
analisadas, como sendo uma instituição conservadora e hierárquica, na qual as
desigualdades de gênero eram explícitas. Não havia brechas para que as mulheres
tivessem uma voz própria. O papel obrigatório delas era seguir os preceitos,
estabelecidos, com rigor, pela Igreja, sem questionamentos. Isso indica a grande
desigualdade das relações de gênero pertinentes num contexto histórico no qual as
mulheres eram direcionadas a desempenhar funções atribuídas a sua “natureza” de mulher.
Mas pelas fissuras e brechas da história, as relações de gênero mudavam em cidades como
Cuiabá. No caso do jornal A Cruz, as mudanças para as mulheres eram mais vividas do que
anunciadas.
As representações sobre a mulher nas páginas do jornal católico mato-grossense A Cruz (1910-1915)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
87
Referências:
A CRUZ. Cuiabá, 15 de janeiro de 1910, p. 03.
A CRUZ. Cuiabá, 01 de dezembro de 1910, p.01.
A CRUZ. Cuiabá, 10 de setembro de 1911, p.02.
A CRUZ. Cuiabá, 11 de julho de 1915, p.02.
ALVES, Branca Moreira. PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense,
2003.
ARY, Zaíra. Masculino e feminino no imaginário católico: da Ação Católica à Teologia da
Libertação. São Paulo: Annablume, 2000.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Vol. 2. Tradução: Sérgio Milliet. São Paulo:
Círculo do Livro, 1949.
BOURDIEU, Pierre. Über die Vorherrarschaft des Mannes: ein Musterbeispiel für symboliche
Gewalt. In: Le Monde Diplomatique. August, 1998, p. 16-18.
______. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
CHARTIER, Roger. Diferenças entre os Sexos e Dominação Simbólica. In: Cadernos Pagu
(4). Campinas: UNICAMP, 1995, p. 37-47.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1 e 2. São Paulo:
Ed. 34, 1995.
DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres: As Vozes do Silêncio. In: FREITAS, Marcos
Cezar de (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2005, p. 217-
235.
FERNANDES, lvia Regina Alves. A não-ordenação feminina: delimitando assimetrias de
gênero na Igreja Católica a partir de rapazes e moças vocacionados/as. In: Revista Estudos
Feministas. Florianópolis: UFSC, maio/agosto, 2005, p. 424-436.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1996.
JOAQUIM, Teresa. Criação de humanos e/ou de conceitos a questão da maternidade n’O
Segundo Sexo. In: Cadernos Pagu (12). Campinas: UNICAMP, setembro, p. 165-202, 1999.
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos Periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 111-153.
MARIANI, Bethânia Sampaio Corrêa. Os Primórdios da Imprensa no Brasil (Ou: de como o
Discurso Jornalístico constrói Memória). In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org). Discurso
Fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas, SP:
Pontes, 2001, p. 31-42.
NASCIMENTO, Cecília Vieira do; OLIVEIRA Bernardo J. O Sexo Feminino em campanha
pela emancipação da mulher. In: Cadernos Pagu (29). Campinas: UNICAMP, julho/
dezembro, p. 429-457, 2007.
Tânia Regina Zimmermann
Ana Carolina Oliveira Carlos
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 71-88, jan.-jun., 2014.
88
NUNES, Maria José Rosado. Gênero e Religião. In: Revista Estudos Feministas.
Florianópolis: UFSC, maio/agosto, 2005,p. 363-365.
PEDRO, Joana M. Mulheres Honestas e Mulheres Faladas: uma questão de classe.
Florianópolis: UFSC, 1998.
______. Nas tramas entre o público e o privado: a imprensa de Desterro no século XIX.
Florianópolis: Editora da UFSC, 1995.
______. Traduzindo o debate. In: Revista História. São Paulo, V. 24, n.1, p. 77-98.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Uma História dos Annales (1921- 2001). Tradução: Jurandir
Malerba. Maringá: Eduem, 2004.
SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 62-95.
SOIHET, Rachel. Violência Simbólica, Saberes e Representações Femininas. In: Revista
Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, nº. 1, v. 5, 1º semestre, 1997, p. 7-29.
ZIMMERMANN, Tânia Regina. História do Gênero: apontamentos teórico-metodológicos. In:
DIEHL, Astor Antônio (org). Experiências e Ensaios de História: cultura, historiografia e
gênero. Passo Fundo: UPF, 2006, p. 143-170.