FACES DA HISTÓRIA
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Revistas de intelectuais exilados como objeto de pesquisa:
o caso de Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana
Exile Magazines as an object of historical research:
the case of Araucaria de Chile and Encuentro de la Cultura Cubana
COELHO NETO, Raphael
*
PRATES, Thiago Henrique Oliveira
**
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar e refletir acerca de revistas de exilados
enquanto fonte/objeto de pesquisa para historiadores. Embora as revistas estejam
consagradas na historiografia, enquanto objeto de investigação, aquelas produzidas por
exilados não foram substancialmente estudadas e pouco se refletiu acerca de suas
características. Acreditamos que a condição de exilado imprime particularidades a esses
periódicos e deixa profundas marcas na produção intelectual neles publicada. Buscaremos
perceber como essas revistas se configuram como espaço de sociabilidade e solidariedade
entre intelectuais que visam romper a barreira instituída pelo exílio, além de se constituírem,
também, como bens culturais de resistência política a regimes ou grupos autoritários que
promoveram a prática do exílio. Para tanto, utilizaremos os debates efetuados nas revistas
de exilados Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana.
Palavras-chave: Revistas. Intelectuais. Exílio. Araucaria de Chile. Encuentro de la Cultura
Cubana.
Abstract: The main goal of this article is to analyse and reflect on the magazines created by
exiles as a source and an object for historical study. Although these magazines have already
been recognized within historiography as an object of research, those produced by exiles
have not been substantially studied, and little has been reflected on their characteristics. We
believe that the exile condition gave those periodicals some specific features, and it also
influenced the intellectual works that were published on them. We seek to understand how
these magazines became a space of sociability and solidarity between intellectuals, and how
they attempted to disrupt the barrier created by the exile condition. We also consider these
magazines as cultural assets of political resistance against authoritarian regimes or groups.
To accomplish our goals, we will work with the debates published in the exile magazines
Araucaria de Chile and Encuentro de la Cultura Cubana.
Keywords: Magazines. Intellectuals. Exile. Araucaria de Chile. Encuentro de la Cultura
Cubana.
*
Mestrando em História e Culturas Políticas - Programa de Pós-Graduação em História - Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas - UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais, campus Pampulha - Av. Antônio Carlos,
6627, CEP: 31270-901, Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil. Bolsista CAPES. E-mail:
raphaelcneto@yahoo.com.br.
**
Mestrando em História e Culturas Políticas - Programa de Pós-Graduação em História - Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas - UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais, campus Pampulha - Av. Antônio Carlos,
6627, CEP: 31270-901, Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: thoprates@gmail.com.
Recebido em: 6 de abril de 2014.
Aprovado em: 11 de junho de 2014.
Revistas de intelectuais exilados como objeto de pesquisa: o caso de Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 124-146, jan.-jun., 2014.
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Introdução
As revistas latino-americanas de arte, cultura e política têm sido um importante
espaço de sociabilidade e atuação de intelectuais desde princípios do século XX. Suas
páginas mobilizaram importantes debates estéticos e políticos ao divulgar obras, novas
práticas e gostos artísticos em países cujos mercados editoriais e público leitor iniciavam
seu processo de expansão. Essas revistas contribuíram, ainda, para difundir e consolidar as
ideias das vanguardas que se desenvolviam e que vieram a ter importante papel nos
campos artístico e político da América Latina.
A renovação, trazida pela História Cultural nos anos 1980, intensificou o interesse
dos historiadores por novas fontes, dentre elas os periódicos e as revistas, utilizando-as
para compreender temas como o imaginário social e as representações vigentes em
diferentes períodos e processos históricos. Da mesma maneira, a operação de resgate dos
indivíduos, exercida pela nova historiografia, permitiu, também, a percepção e reconstituição
de redes de sociabilidade existentes nas revistas e as distintas formas de conexão e relação
entre a intelectualidade latino-americana, suas alianças, conflitos, impasses e negociações
(ALTAMIRANO, 2008; SIRINELLI, 2003).
Frente a essa nova oportunidade, não tardou para que os historiadores
desenvolvessem ferramentas teóricas e metodológicas para melhor tratamento das revistas
como fonte e objeto de investigação. Munidos desse aparato, diversos pesquisadores se
debruçaram sobre importantes e influentes revistas em território latino-americano, como as
argentinas Martín Fierro e Sur, a peruana Amauta, Revista de Avance, em Cuba, e a
brasileira Klaxon entre inúmeras outras.
Não obstante, constata-se que os estudos históricos pouca atenção deram às
revistas culturais e políticas latino-americanas produzidas no exílio. O que se percebe,
predominantemente, na historiografia, são estudos acerca da produção intelectual no exílio
por meio de obras literárias, acadêmicas e ensaios. Mas, e sobre as revistas exílicas
especificamente? Mesmo que algumas poucas pesquisas tenham se dedicado a analisar o
conteúdo de revistas de exilados, é ainda latente a carência de reflexão, sobretudo teórica,
acerca dessa fonte/objeto que carrega características peculiares: trata-se de tais periódicos
como se possuíssem a mesma natureza de outros, sem se fazer a necessária
problematização de como a condição exílica mostra-se profundamente presente no editorial
e projeto das revistas. Quais seriam, portanto, as suas particularidades em relação às
revistas culturais, em geral, produzidas em solos nacionais? Em que elas difeririam dos
demais formatos de produção intelectual no exílio?
De maneira incipiente, este trabalho pretende pensar como a questão do exílio
deixou profundas marcas em grande parte dos temas abordados nas revistas e na produção
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dos intelectuais que nelas participaram, servindo mesmo como razão precípua para a
construção e circulação dessas publicações. Assim, a condição exílica contribuiria para uma
especificidade dessas fontes/objetos que merecem importante atenção e reflexão por parte
do historiador. Acreditamos que as revistas de exilados compõem uma tentativa de
superação das barreiras geográficas e temporais impostas pelo exílio, servindo como ponto
de encontro para intelectuais submetidos a tal condição. Elas estabelecem novos espaços
de solidariedade e redes de sociabilidade para os intelectuais no exílio, contribuindo para o
florescimento de um debate que se encontra em risco devido às dificuldades de
comunicação estabelecidas pela prática exílica.
Incitados, portanto, por esse objetivo de contribuir para um maior debate na
historiografia, acerca das revistas forjadas sob a condição do exílio intelectual, propomos
uma discussão em que leve em conta características gerais desses impressos, buscando
enriquecer nossa análise por meio de duas revistas em especial: Araucaria de Chile (1978-
1990) e Encuentro de la Cultura Cubana (1996-2009), criadas, respectivamente, por
intelectuais chilenos e cubanos exilados durante as ditaduras de Augusto Pinochet e de
Fidel Castro.
Buscaremos perceber, por meio da comparação entre as duas revistas, inseridas em
contextos políticos diferentes - embora próximos em muitos aspectos - e com perspectivas
ideológicas distintas, características que as aproximam e que, podemos dizer de antemão,
estão presentes nas revistas exílicas em geral. Tentaremos efetivar uma análise em que leve
em conta como a produção editorial e intelectual de Araucaria de Chile e Encuentro de la
Cultura Cubana dialogaram permanentemente com a condição exílica e de que maneira os
intelectuais colaboradores de ambas responderam aos desafios encontrados.
Os contextos ditatoriais, o exílio intelectual e a fundação de revistas culturais de
resistência política: um estudo de caso comparativo entre Araucaria de Chile e
Encuentro de la Cultura Cubana
O golpe militar do dia 11 de setembro de 1973, no Chile, destituiu do poder o
presidente Salvador Allende, eleito em 1970 pela Unidade Popular (UP), coalizão política
composta por partidos de esquerda que propunha a "via chilena para o socialismo"
1
. De
acordo com Priscila Carlos Brandão Antunes (2010), o poder executivo, paulatinamente,
concentrou-se em Augusto Pinochet, a ponto deste, até o final do regime militar, personificar
um dos governos mais autoritários da América Latina nesse contexto.
1
Os seguintes partidos compunham a UP: Partido Comunista (PC), Partido Socialista (PS), Ação Popular
Independente (API), Radicais (PR), Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU) e Partido Social-Democrata
(PSD) (AGGIO, 2008, p. 78).
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Fabiana de Souza Fredrigo (1998) e Pablo Policzer (1998) também indicam o
gradativo aumento do controle estatal sobre a população chilena por meio, inicialmente, do
fechamento do Congresso Nacional, de decretos-leis que aumentaram o poder político do
executivo, proibindo todas as atividades políticas e sancionando a ilegalidade dos partidos, e
da criação da Dirección de Inteligencia Nacional (DINA) que, em nome da segurança
nacional, concentrou as medidas repressivas contra os opositores do governo. Os militares
buscavam definir a situação do Chile como uma guerra aos inimigos internos - os marxistas
e os adeptos da política de Salvador Allende prolongando, por tempo indefinido, esse
suposto “estado de emergência e crise”, convertendo um governo militar em um regime
ditatorial (GARRETÓN apud REBOLLEDO GONZÁLEZ, 2003, p. 92). À medida que a
repressão avançava, crescia, vertiginosamente, o número de mortos, desaparecidos,
torturados e exilados.
Segundo Loretto Rebolledo González (2012, p. 178), “[...] jamais na história do Chile
havia se registrado uma saída forçada de chilenos tão massiva em tão curto prazo, para
lugares distintos, a partir de 1973 [...]”. O exílio chileno foi marcado por uma grande
quantidade de intelectuais, artistas, profissionais e estudantes universitários (REBOLLEDO
GONZÁLEZ, 2012, p. 181). Ao produzirem, nessas circunstâncias, os intelectuais chilenos
exilados evidenciaram, de diversas formas, sua conduta de oposição e resistência política à
ditadura pinochetista. A criação de Araucaria de Chile, em Roma, quatro anos após o golpe
militar no Chile, pertenceu a esse contexto amplo de militância política.
Criada em 1977 e lançada oficialmente em Paris, sua sede inicial, em 1978,
Araucaria de Chile foi uma revista cultural e política fundada e dirigida por intelectuais
chilenos ligados ao Partido Comunista de Chile (PCCh) no exílio
2
. Impressa em Madrid, a
revista, de circulação trimestral, teve como diretor, ao longo de seus doze anos de
publicação, o escritor e importante dirigente comunista Volodia Teitelboim. Carlos Orellana,
integrante do comitê de cultura do PCCh, foi o secretário de redação da revista.
Com 48 números publicados, sem interrupção a cada três meses, de 1978 até o
primeiro trimestre de 1990, quando, com o fim do regime militar pinochetista, a revista
encerrou suas publicações, Araucaria de Chile veiculou e difundiu, em seus textos, visões
2
Na reunião em que se decidiu pela fundação de Araucaria de Chile, estiveram presentes os comunistas Volodia
Teitelboim, que viria a ser o diretor da revista, Carlos Orellana e o professor e poeta chileno Sergio Muñoz
Riveros, além do poeta Omar Lara e do escritor Hector Pinochet, também chilenos. A reunião se deu em Roma
por parecer, no primeiro momento, o melhor local, em termos de distância e deslocamento, para intelectuais
exilados em distintos países europeus. Todavia, Araucaria estabeleceu-se em Paris por três razões: a
possibilidade de se instalar em uma seção cedida pelo jornal L´Humanité, porta-voz do Partido Comunista da
França; por viver exilado na capital francesa o escritor, redator e membro do Partido Comunista Chileno (PCCh),
Carlos Orellana, nomeado secretário de redação da revista; e, por fim, por funcionar na cidade o comitê de
cultura do PCCh, que poderia acompanhar a produção da revista e dar o apoio material necessário (SILVA, 2009,
p. 18). Posteriormente, Araucaria de Chile estabeleceu-se em Madrid por uma questão pragmática de execução
e distribuição da revista, que ela havia sido impressa na capital da Espanha desde seus primeiros dias, pela
editora Ediciones Michay. Mais informações, ver Carlos Orellana (1994) e Êça Pereira da Silva (2009).
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de mundo e valores políticos ligados a culturas políticas
3
de esquerda, principalmente a
comunista, embora não fosse, oficialmente, porta-voz do PCCh e recebesse a colaboração
de intelectuais de distintas tendências políticas.
O editorial de lançamento da revista esclareceu que o nome Araucaria de Chile foi
uma referência a ícones da identidade chilena: a árvore típica da paisagem do país e os
povos araucanos, conhecidos por resistirem bravamente à colonização dos espanhóis.
Araucaria “[...] é não somente o símbolo de um povo que resistiu três séculos ao opressor.
Também é a árvore que, inverno ou verão, representa a esperança [...]” (EDITORIAL, 1978,
p. 7). Assim, na dupla conotação que carrega o nome da revista, Araucaria de Chile
evidenciou seu caráter de resistência política à ditadura militar chilena e sua luta e
esperança pelo restabelecimento da democracia no país.
Ao mencionar o comitê de redação da revista, composto, entre outros intelectuais,
pelos professores, críticos literários e ensaístas Soledad Bianchi e Luiz Bocaz, além do
economista Alberto Martinez, Carlos Orellana (1994, p. 16-17) defendeu que eles foram
peças valiosas no estabelecimento de frutíferos nexos com um amplo leque de jovens
escritores, tanto do exílio como do interior do país [Chile]
4
Orellana (1994, p. 16), ao referir-
se ao corpo editorial da revista, afirmou que
o diálogo e as discussões constantes e apaixonadas no interior desse grupo
nos permitiam sentir que havíamos encontrado por fim aquilo que tão
fervorosamente almejávamos desde muito tempo, anos antes do triunfo da
Unidade Popular: o funcionamento, no campo da preocupação cultural, de
uma inteligência coletiva afincada em uma visão marxista de mundo, capaz
de unir qualidades que nos pareciam essenciais para legitimar uma vontade
ideológica.
Essa citação evidencia a existência efetiva de uma rede de sociabilidade intelectual
5
,
ligada a culturas políticas de esquerda, rede esta que poderia se fazer ainda maior, que a
revista contou com a colaboração de renomados escritores chilenos e latino-americanos,
como Ariel Dorfman, Antonio Skármeta, Bernardo Subercaseaux, Fernando Alegría, Eduardo
Galeano, Mario Benedetti, Julio Cortázar e Gabriel García Márquez.
Por sua vez, Encuentro de la Cultura Cubana (referida comumente a partir daqui
como Encuentro) foi fundada em 1996, em Madri, pelo escritor cubano exilado Jesús Díaz.
Seu propósito era publicar uma revista na qual fossem possíveis diferentes reflexões sobre
3
Entendemos por Cultura Política, embasados no estudo de Rodrigo Patto Sá Motta (2009), um conjunto de
valores, tradições, práticas e representações políticas compartilhado por determinado grupo, expressando, dessa
forma, identidades coletivas, fornecendo leituras e modos de ver comuns do passado, bem como para projetos
futuros.
4
Os mencionados membros do comitê de redação da revista Araucaria de Chile tinham em comum a docência
em universidades chilenas e francesas. Alberto Martinez, além de professor da Universidade de Reims, na
França, foi diretor da Dirección de Industria y Comercio (DIRINCO), durante o governo da UP. Mais informações
sobre os integrantes do comitê de redação da revista Araucaria, ver Carlos Orellana (1994).
5
Trataremos deste conceito adiante.
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a cultura cubana, abordando assuntos como política, economia, arte e cultura. O primeiro
volume a apresentava como um espaço de voz para todos os cubanos, dentro ou fora da
ilha, lamentando uma suposta divisão da população de Cuba em pelo menos dois grupos
representados, a princípio, como irreconciliáveis, a saber, os exilados e os que
permaneceram na ilha.
Encuentro surgiu na conturbada década de 1990, durante a intensa crise do
socialismo na ilha. a partir de finais dos anos 1980, progressivamente, Cuba deixou de
receber o apoio econômico de seus antigos aliados do bloco soviético, como alimentos e
petróleo a preço subsidiado, além de não mais obter ajuda financeira após o fim da União
Soviética. Entre os anos 1990-1993, o PIB cubano retraiu-se em mais de 30%, a importação
de combustíveis decaiu aproximadamente 72% e de outros produtos 76% (GOTT, 2004, p.
286-298). Dado esse momento de imensa retração econômica, o governo cubano instaurou
o chamado Período Especial em Tempos de Paz, iniciando um processo de reformas
estruturais da sua vida política, econômica e cultural.
Nesse período, a Revolução passou por grandes dificuldades, enfrentando o
enfraquecimento e a descrença na ideologia revolucionária, abrindo espaço para uma nova
oposição e para as críticas dos antigos inimigos. Rojas afirma que, a partir de 1992, após a
queda do Muro de Berlim e da desintegração da União Soviética, a oposição cubana deixou
de lado a escolha militar para derrotar Fidel Castro e decidiu adotar, portanto, novas
modalidades, como a pressão comercial, migratória e diplomática a favor de uma
democratização do regime cubano, apoiando a constituição de uma dissidência pacífica na
ilha (ROJAS, 2006, p. 13). Surgiu, nesse momento, uma nova oposição interna
6
e vários
intelectuais se mobilizaram em crítica ao regime. Descontentes com o presente de Cuba,
eles demandaram maior liberdade de participação e deliberação acerca dos projetos e
reformas a serem implementados, muitas vezes sofrendo com a repressão e tendo que
recorrer ao exílio (GOTT, 2004, p. 314-332).
O criador de Encuentro saiu da ilha durante esse crítico momento da Revolução.
Jesús Díaz trabalhou com o regime cubano desde a vitória dos rebeldes em 1959.
Revolucionário convicto dirigiu El Caimán Barbudo, suplemento literário de Juventud
Rebelde, jornal da União dos Jovens Comunistas. O periódico buscou trazer debates sobre
uma nova literatura que fugia ao dogmatismo e propunha a experimentação e inovação. Nas
6
Em 1988, surgiu o Movimiento Cristiano de Liberación de Oswaldo Payá, movimento ligado às democracias
cristãs. Durante o processo de reestruturação da ilha, tal grupo constituía internamente uma das principais
oposições ao regime castrista, articulando-se mesmo em torno de um projeto de lei proposto por Payá em 1998,
que exigia reformas políticas a favor de maiores liberdades individuais, conhecido como Proyecto Varela. Em
2002, Payá teria apresentado à Assembleia Nacional Cubana mais de 11.000 assinaturas a favor de seu projeto.
Ainda sobre a insatisfação e oposição crescente em Cuba, em 5 de Agosto 1994 centenas de pessoas foram às
ruas de Havana em protesto contra a precária situação da ilha, no que ficou conhecido como Maleconazo. Fidel
Castro mobilizou a polícia e grupos de apoio ao regime para tentar frear os protestos.
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páginas de El Caimán Barbudo, Heberto Padilla elogiou, em 1967, a obra do exilado
Guillermo Cabrera Infante e criticou a produção do comunista Lisandro Otero, polemizando
com os grupos revolucionários mais ortodoxos.
O caráter heterodoxo de Jesús Díaz esteve, também, presente na fundação de sua
revista Pensamiento Crítico, alinhada às correntes da nova esquerda europeia. az e seus
companheiros de edição buscaram trazer temas como o Maio de 1968 francês, o black
power estadunidense e o pensamento de autores como Gramsci, Luckacs e Marcuse. Sua
revista foi fechada por ordem de Raul Castro no mesmo momento em que foi dissolvido o
Departamento de Filosofia da Universidade de Havana, onde era professor (DA FONSECA,
2006).
Figura polêmica, Jesús Díaz defendeu o processo revolucionário durante grande parte
de sua vida. Até 1991, exerceu a função de secretário do núcleo do partido comunista no
Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC). Seu rompimento com a
Revolução viria em 1989, quando um tribunal militar cubano ordenou o fuzilamento de
Arnaldo Ochoa e Tony de la Guardia por traição e por tráfico de cocaína. Díaz, aproveitando-
se de uma bolsa de estudos, parte para a Alemanha, onde trabalhou em seu romance Las
palavras perdidas.
Jesús Díaz declarou-se, oficialmente, dissidente e exilado em 1992, afirmando não
estar de acordo como o lema socialismo o muerte”, de Fidel Castro. Ele explicou seu
posicionamento ao longo de sua trajetória como intelectual sob o regime revolucionário: “[...]
Eu amava tanto a esta grande revolução que aceitava seu silêncio como se fosse
inevitavelmente necessário. Creio ter me equivocado. Todavia, a decisão sempre era trágica
porque, ao final, havia a prisão ou Miami [...]” (SIMMEN, 2002, p. 67). Ainda sobre sua
dissidência, em uma entrevista concedida à revista Lateral de Barcelona em 2002, Díaz
afirmou que deixou Cuba por encontrar-se “[...] desencantado com a experiência da
revolução. Tudo aquilo havia terminado em uma ditadura terrível e eu me posicionava
contrariamente [...]” (GONZÁLEZ apud DA FONSECA, 2006, p. 269).
Da mesma maneira que Jesús Díaz, outros intelectuais cubanos decidiram partir da
ilha, constituindo uma nova oposição ao socialismo em Cuba. Embora tivesse reunido
diversos e distintos colaboradores, Encuentro fez parte dessa dissidência política. Ela
incorporou intelectuais que se exilaram em períodos anteriores e também a nova dissidência
que participou do regime castrista ou que cresceu e se formou sob o mesmo.
A revista conheceu seu desfecho em 2009. A instituição, fundada no mesmo momento
do periódico, Asociación Encuentro de la Cultura Cubana, terminou suas atividades, no ano
citado, alegando dificuldades financeiras impostas pela crise internacional. Ainda que
existisse um projeto de continuidade de publicação da revista, a incapacidade de
Revistas de intelectuais exilados como objeto de pesquisa: o caso de Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana
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financiamento de agências governamentais e de fundações diversas decretou seu fim
(EDITORIAL, 2009, p. 3-4).
Encuentro de la Cultura Cubana se propôs como um espaço de união e reflexão sobre
a cultura de Cuba em toda a sua diversidade, elemento que, para os editores, poderia
incorporar todos os cubanos em um único e indivisível grupo. Para tanto, buscou congregar
escritores e artistas de dentro e de fora da ilha com o intuito de vencer a barreira imposta
pelo exílio, prática que teria se tornado uma condição da cultura cubana após a vitória dos
revolucionários em 1959 (ROJAS, 2006, p. 24).
A cultura foi, também, o principal assunto abordado no editorial de fundação de
Araucaria de Chile. Com propósito semelhante ao dos editores da revista Encuentro,
Araucaria foi apresentada como “[...] expressão exigente e unificadora da intelectualidade
chilena [...] que vive dentro e fora das fronteiras [...]” (EDITORIAL, 1978, p. 6). Em seu
primeiro editorial, afirmava-se que “os desterrados não se acostumam à ideia de uma cultura
chilena dividida, a de dentro e a de fora”. Araucaria posicionou-se, portanto, como
instrumento “[...] a servir a ideia da unidade da cultura nacional”, reforçando “a noção de que
ela permanece vigente e criadora, apesar do fascismo [...]” (EDITORIAL, 1978, p. 6).
Aos editores da revista, preocupava um processo não só de ruptura, mas, sobretudo,
de esvaziamento da potencialidade cultural chilena, processo denominado por eles de
“apagão cultural”, em curso no Chile em função do exílio em massa de sua intelectualidade,
provocado pela Junta Militar que assumiu o comando do país em 1973. Como expresso no
editorial de lançamento da revista,
[...] tal fenômeno, mais que uma fuga de talentos, devia se qualificar como
uma expulsão em massa de cérebros, a mais alarmante sangria de
capacidades, expatriação forçosa de milhares de seus mais destacados
intelectuais de todas as ordens do saber [...]. (EDITORIAL, 1978, p. 5)
O fenômeno da perseguição aos intelectuais, levando a um processo massivo de
exílio, foi comum em todos os países de viés político autoritário. Trata-se de uma questão
sintomática, que evidencia o intuito de eliminar a presença, em território nacional, daqueles
opositores políticos que estão legitimados pela sociedade a falar em nome dela,
influenciando, por conseguinte, a opinião pública.
Nesse aspecto, Luis Roniger (2010) destaca o sentido político do termo exílio,
tratando-o como um mecanismo de exclusão institucionalizado utilizado, comumente, ao
longo do processo histórico da América Latina independente. Esse mecanismo visa manter
o controle da esfera pública, por parte do Estado, mediante a condenação de desterro
àqueles que, de alguma forma, posicionaram-se contrários às políticas oficiais e ao status
quo. Segundo Roniger (2010, p. 93), o exílio configura-se como uma solução intermediária,
por parte do Estado, para lidar com os oponentes: ele é menos extremo que a execução e o
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Thiago Henrique Oliveira Prates
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encarceramento, evitando, assim, um possível ciclo de retaliações pessoais ou de grupos, e
limitando, por conseguinte, a expansão do conflito, além de diminuir a disseminação da
violência estatal física e explícita, embora, a nosso ver, não podemos deixar de pensar que
a imposição do exílio constitui-se, também, em uma violência de Estado.
Complementando esse sentido institucionalizado apresentado por Roniger,
pensamos que o exílio constitui-se em uma pena significativa que implica em rupturas das
redes de sociabilidade do indivíduo no seu país de origem, evitando um eventual
protagonismo político na terra natal e, em alguns casos, levando à perda de fontes de
sustento do desterrado. Dessa maneira, aparando-nos na concepção de Edward Said
(2003), concebemos o exílio como forma de punição política contemporânea, uma condição
histórica criada para negar a dignidade e a identidade ao indivíduo, precipitando-o em uma
zona de exclusão moral e social. Apartados de suas supostas raízes, terras e experiências
passadas, os exilados experimentam um estado de intensa descontinuidade identitária,
geográfica e temporal, uma ruptura com seu universo de referências diárias e com seu
cotidiano.
Nessa perspectiva, concordamos, também, com Denise Rollemberg (1999) quando a
autora defende que, sem conhecer plenamente os códigos sociais e culturais do país que o
recebe, o exilado torna-se, particularmente, marginalizado e solitário, vivenciando o choque
cultural no dia a dia e lutando para refazer sua identidade. Por um viés semelhante ao de
Rollemberg, novamente, Said (2003) destaca que os exilados, privados de um dos principais
referenciais identitários do período moderno, o pertencimento à nação, tendem a não se
adaptar às pátrias que os acolhem e as percebem como provisórias, cultivando, em si, um
sentimento de orfandade.
O deslocamento forçado dos intelectuais e, por conseguinte, sua ausência no debate
público nacional provoca a prevalência de um discurso oficial, tornando-o, praticamente,
uníssono, difundindo valores convenientes ao Estado repressor. Por essa razão, os
intelectuais exilados tendem a ter uma preocupação demasiada com a cultura do seu país
de origem. Eles imputam para si duas responsabilidades principais, que são a de
conservadores de uma herança cultural de seus países e a de intérpretes de soluções
políticas para a superação dos regimes autoritários (RAMA, 1978, p. 95-105). Como vimos,
por meio dos editoriais das revistas, tais responsabilidades estiveram presentes nos
intelectuais que escreveram em Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana. A
eles, cabia a função de posicionarem-se frente a questões de seu tempo, colocando-se
como sujeitos engajados na resistência política às ditaduras, por meio da defesa de valores
democráticos e da justiça social.
Assim, compartilhamos da noção de intelectual apresentada por Carlos Altamirano
(2008, p. 9; 2006, p.102), segundo o qual os intelectuais constituem-se em atores do debate
Revistas de intelectuais exilados como objeto de pesquisa: o caso de Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana
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público, “consciência” de seu tempo e intérpretes da nação, que transmitem publicamente
seu pensamento, podendo atingir desde círculos restritos de letrados até setores mais
amplos da sociedade. De acordo com Sirinelli (2003, p. 242-243), em abordagem mais
ampla à apresentada por Altamirano, o termo intelectual traz, em si, duas acepções de
natureza sociocultural, sendo uma mais extensa, marcada pela noção de “mediador”
cultural, abrangendo escritores, jornalistas, professores secundários, eruditos etc., e outra
mais restrita, amparada na noção de engajamento na vida social. Consideramos que essa
última acepção, a de engajamento e intervenção crítica no espaço público, torna-se
essencial para o intelectual exilado. Acrescentamos, ainda, que a condição de intelectual
necessita do reconhecimento e legitimidade adquiridos junto a seus pares e à sociedade em
geral
7
.
Acreditamos que os intelectuais colaboradores das revistas Araucaria de Chile e
Encuentro de la Cultura Cubana foram - como apontam Sirinelli e Altamirano, em suas
respectivas acepções a respeito do termo intelectual - mediadores culturais, produtores e
transmissores de ideias, engajados na vida social da América Latina, detentores de
posicionamento político, participantes do debate público com grande capacidade
interpretativa da realidade na qual estavam inseridos.
As revistas culturais, em geral, nas quais, frequentemente, atuam a intelectualidade
mais proeminente de seus países, tal qual ocorreu com Encuentro e Araucaria, são
comumente dirigidas por um coletivo, e “[...] informam sobre os costumes intelectuais de um
período, sobre as relações de força, poder e prestígio no campo da cultura [...]” (SARLO,
1992, p. 15). Nessa perspectiva, Regina Crespo (2010, p. 3) afirma que as revistas culturais
e políticas são tradicionalmente o resultado de uma ação coletiva, de um projeto coletivo,
representando, assim, o ponto de vista de um grupo de intelectuais, sua intervenção
ideológica na arena político-cultural.
Dessa maneira, percebemos as revistas como preciosos lugares para a análise do
movimento das ideias, assim como podemos concebê-las como espaços de sociabilidade
intelectual (SIRINELLI, 2003, p. 249). Elas estimulam a construção de redes de
sociabilidade na medida em que materializam, em papel, os pensamentos de grupos
intelectuais com propostas políticas comuns (CRESPO, 2010, p. 5).
Entendemos por rede de sociabilidade intelectual, portanto, um conjunto de
intelectuais que se comunicam em razão de suas atividades profissionais, sejam eles
escritores, professores, artistas, políticos, críticos, juristas etc. Segundo Eduardo Devés-
Valdés (2007, p. 30), a real constituição de uma rede demanda frequência e densidade em
relação à comunicação de seus membros. No entanto, embora as redes de sociabilidade
7
A esse respeito, ver o conceito de capital cultural e simbólico em Pierre Bourdieu (2002).
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remetam à associação de intelectuais por cumplicidade e afinidade de ideias, elas não
excluem a pluralidade de pensamentos dentro dos grupos. Tampouco eliminam as “batalhas
internas e externas, tanto políticas quanto culturais” (REIS, 2012, p. 21).
Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana contribuíram para a formação
de redes de sociabilidade transnacional de intelectuais. As duas revistas buscaram agregar
intelectuais, de fora e de dentro de seus países de origem, que desejassem colaborar com
as propostas políticas alternativas aos governos autoritários aos quais se referiam sempre
de maneira crítica. Parece-nos útil, portanto, utilizarmos o conceito de editorialismo
programático, entendido como a linha editorial política e militante dos periódicos, uma
espécie de motor propulsor para as revistas, tal qual proposto por Fernanda Beigel (2003, p.
108). Defendemos que a forte articulação entre os textos veiculados nas revistas e a política
efetivou-se em torno do exílio e da oposição aos regimes ditatoriais de Augusto Pinochet
(Araucaria) e de Fidel Castro (Encuentro). Os intelectuais presentes em Auracaria e
Encuentro conformaram, em suas respectivas revistas, projetos políticos semelhantes,
compartilhando uma similar visão de mundo acerca das questões políticas, superando as
divergências e conflitos internos, dando uma mínima coesão a ambos os periódicos. Os
intelectuais que contribuíram nessas duas revistas se identificaram com projetos editoriais
que mobilizaram o combate às ditaduras e às práticas autoritárias presentes em seus
respectivos países.
Araucaria de Chile, por exemplo, frequentemente, voltou-se para o governo de
Augusto Pinochet como “fascista”. Por personificar uma das ditaduras militares mais
sangrentas e repressivas do Cone Sul, durante as décadas de 1970 e 1980, Pinochet teve
sua imagem associada, na revista, à de Adolf Hitler. Foram frequentes as associações ao
autoritarismo político do nazi-fascismo. Assim o fizeram Adolfo González-Dagnino e Luis
Corvalán este, secretário-geral do Partido Comunista de Chile (PCCh) à época - logo no
primeiro número de Araucaria, em dois longos artigos sobre o golpe militar no Chile.
Para o primeiro, a Junta Militar, centralizada em Pinochet, “[...] assumiu a totalidade
do poder em 1973, estabeleceu a clausura no Congresso Nacional, [...] declarou estado de
sítio, [...] abriu campos de concentração [...]” (GONZÁLEZ-DAGNINO, 1978, p. 37). A
referência aos campos de concentração nos leva a uma comparação direta e inevitável com
o nazismo de Hitler. Luis Corvalán, por sua vez, ainda mais incisivo, declarou que “[...] o
golpe fascista no Chile [...] e a tendência de certos círculos em reivindicar a Hitler e ao
Terceiro Reich inquietam os homens e as forças democráticas de todo o mundo [...]”
(CORVALÁN, 1978, p. 55).
A imagem do governo militar chileno, construída negativamente, foi o contraponto
das representações referentes ao governo de Salvador Allende. Corajoso, digno e fiel a seus
princípios socialistas e ao povo chileno, Allende foi alçado por Volodia Teitelboim à condição
Revistas de intelectuais exilados como objeto de pesquisa: o caso de Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana
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de um dos principais líderes políticos da América Latina. Em suas palavras, “[...] o socialista
Allende se consumiu em um sincero anseio de levar adiante, no Chile, uma revolução de
conteúdos universais [...] que não desejava ignorar sua natureza latino-americana [...]”
(TEITELBOIM, 1983, p. 22).
Em linhas gerais, Araucaria de Chile buscou denunciar o autoritarismo pinochetista, a
falta de liberdade política e as atrocidades cometidas contra os direitos humanos no Chile.
Ao passo que exercia suas críticas ao governo de Augusto Pinochet e à sua política de
caráter neoliberal, buscou difundir proposições políticas de esquerda associadas, sobretudo,
às diretrizes do PCCh.
Encuentro de la Cultura Cubana, por seu turno, posicionou-se contra um regime que,
supostamente, separaria e isolaria seus cidadãos, fato considerado perigoso pela revista.
Ela articula o que chamamos de contradiscurso do exílio, uma narrativa que se propõe como
dissidência fora de Cuba. Pretendeu ser plural e democrática, evitar as bruscas cisões que
negassem a dignidade dos indivíduos e que flagelassem a cultura da ilha. Ao buscar reunir
os indivíduos em suas páginas, Encuentro se opôs a uma face excludente do regime
castrista e articulou um discurso que sugeriu uma nova organização da sociedade de
maneira a abarcar o maior número possível de cubanos.
A revista se opôs, ferrenhamente, às instituições e práticas autoritárias em Cuba
durante o governo de Fidel Castro. Dedicou páginas para denunciar o desrespeito aos
direitos humanos, à violência contra homossexuais e para criticar o legado soviético que o
processo revolucionário não conseguiu extirpar. Os colaboradores da revista se esforçaram
em defender a liberdade de expressão e de atuação dos intelectuais, atacando,
ferrenhamente, a censura e a perseguição a esses, buscando, sempre, pensar, criticamente,
as instituições e programas governamentais que excluíam intelectuais dissidentes. O
verdadeiro papel do intelectual seria o de exercer a palavra crítica e não deixar se cooptar
jamais e, àqueles que se vincularam ao poder e ao regime castrista, Encuentro enviou uma
mensagem: “[...] aos ditadores não se elogia, chamem-se Salazar, Stalin, Pinochet ou Fidel
Castro [...]” (MARTÍNEZ, 1998-1999, p. 149).
Entretanto, Encuentro de la Cultura Cubana não elegeu apenas o governo cubano
como seu único inimigo. Seus intelectuais se posicionaram, também, contra toda proposta e
tentativa de destruir a soberania e a autodeterminação nacional advinda de certos setores
da oposição, nomeadamente da Flórida. Fato bastante incomum em uma revista de
dissidentes políticos, em todos os exemplares de Encuentro, foi possível perceber a
constante crítica à política externa dos Estados Unidos em relação a Cuba e um rechaço à
escolha pelo confronto. Em nenhum artigo da revista publicou-se algum elogio ao bloqueio
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efetuado pelos norte-americanos, percebendo-se total desprezo pela lei Helms-Burton
8
e
pela possibilidade de ingerência dos assuntos cubanos por parte de estrangeiros.
Como marca das revistas exílicas, em geral, podemos, certamente, conceber
Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana como atores políticos de seu tempo.
Como sustentam Beatriz Sarlo (1992), Regina Crespo (2010) e Mateus Fávaro Reis (2012),
as revistas devem ser compreendidas como atores do seu tempo presente, como
instrumentos de comunicação que objetivam influenciar o comportamento político, cultural
e/ou artístico de grupos e coletividades. De acordo com Beatriz Sarlo (1992, p. 10), o
conteúdo de uma revista “[...] rende tributo ao presente justamente porque sua vontade é
intervir [nele] para modificá-lo […]”. Afirmamos, portanto, em consonância com essas
análises apresentadas, que as revistas são fruto de um contexto e, é precisamente sobre tal
conjuntura, que elas buscam atuar, seja para apoiar, seja para opor-se a certos
acontecimentos políticos, culturais ou econômicos de dada realidade histórica.
As revistas culturais e literárias, produzidas em seus próprios países, podem ou não
ser marcadamente políticas. Algumas podem se dedicar, majoritariamente, às análises das
artes e da literatura nacionais ou internacionais, estando as discussões políticas subjacentes
ou relegadas a um segundo plano. As revistas exílicas, ao contrário, são necessariamente
políticas, ainda que possuam um conteúdo cultural significativo, como ocorreu em Araucaria
e em Encuentro. Mais do que isso, podemos defini-las como bens culturais de resistência
política, exatamente pelo fato de todo seu conteúdo, independentemente do assunto
abordado, estar, direta e inevitavelmente, vinculado a uma condição política, que é a do
exílio. Segundo Paloma Vidal (2004, p. 60), os discursos do exílio, falem ou não dele, estão
“contaminados pelo político”, pois o que o escritor exilado diz “[...] constitui uma ação
comum, o que ele diz ou faz é necessariamente político [...]”.
Assim, em publicações feitas sob o exílio, é essencial observar como essa condição
marca, profundamente, sua produção, chegando mesmo a se constituir como pré-requisito
de existência para certos periódicos, como foi o caso de Araucaria de Chile. A criação
intelectual e as narrativas submetidas ao exílio mobilizam os debates efetuados nas revistas
e possibilitam diálogos constantes com os conteúdos políticos nelas presentes, assim como
na escolha dos intelectuais colaboradores.
8
A Cuban Liberty and Democratic Solidarity Act (LIBERTAD), mais conhecida como Lei Helms-Burton, foi
proposta pelos senadores Jesse Helms e Dan Burton em 1995 e aprovada em 1996 após um profundo atrito
diplomático entre o governo cubano e o estadunidense. Grosso modo, a lei serviu para endurecer o embargo
econômico à ilha visando desestabilizar e derrubar o governo de Fidel Castro através do progressivo
empobrecimento e carência da população cubana. A lei ainda apontou que somente o congresso norte-
americano (instituição que possui representantes da comunidade cubano-americana) pode eliminar às sanções
sobre Cuba e limitou a ação presidencial no que tange às relações com esse país. A lei previa ainda que Cuba
estabelecesse eleições democráticas livres nas quais os irmãos Castro não poderiam concorrer e, ponto ainda
mais polêmico, que todas as propriedades de cidadãos americanos (cubano-americanos) e de empresas que
foram expropriadas pela Revolução fossem devolvidas aos seus antigos donos.
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Revistas como Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana, geralmente,
expressaram e mobilizaram um sentimento de nostalgia ligado à experiência do exílio. Em
perspectivas similares às apresentadas por Said (2003) e Rollemberg (1999), como
analisamos anteriormente, ambos os impressos trataram com dor a separação da terra natal
e atacaram as práticas políticas e autoritárias dos regimes que influenciaram os indivíduos
na escolha de partir da pátria, ou, em inúmeros casos, obrigaram-nos a tal atitude.
Virginia Vidal escreveu um ensaio sobre a condição de exilado e expressou aquilo
que está presente em outros textos sobre o exílio publicados na revista Araucaria de Chile
9
.
Segundo ela, fora do país de origem, “[...] não se está integrado ao ambiente. Ir ao cinema,
a um concerto, [...] a um estádio, somente se torna possível com um poderoso esforço de
vontade [...]” (VIDAL, 1979, p. 138). A autora considera que o exilado está sujeito a
enfermidades psíquicas proporcionadas pela perda gradual de identidade. Ao exilado restam
as lembranças das pessoas e das situações da terra natal. Fora de seu país, percebe-se
como o “outro”: “[...] não pertencemos ao grupo dos ‘nossos’. Somos os ‘outros’ e estamos
conscientes dessa ‘otredad’[...]” (VIDAL, 1979, p. 140).
Como apontam muitos intelectuais cubanos apresentados por Encuentro de la
Cultura Cubana, em perspectiva semelhante às concepções dos colaboradores de Araucaria
de Chile que escreveram sobre o exílio, o desterro toma contornos ovidianos, de dor e
perdição. A prática do exílio não se apresenta apenas de forma objetiva e concreta, mas
também subjetiva: configura-se como uma busca desesperada do indivíduo de um lugar
para se viver. O próprio tempo se congela: a esperança e a espera para o exilado não
significam mais nada. O exemplo da poética de um dos intelectuais colaboradores da
revista, Gastón Baquero, é marcante: no exílio, o poeta deixa de viver. Ou o trecho de Antes
que Anoiteça de Reinaldo Arenas, recuperado por Encuentro, afirmando que para um
desterrado não lugar algum em que se possa viver (QUEVEDO, 1999, p. 181-182). O
medo do exilado torna-se, assim, o de estar no não-lugar, em um espaço de negação da
própria existência.
Dentro desse viés negativo e pessimista sobre o exílio – veremos perspectivas
distintas à frente - podemos pensar, compartilhando a perspectiva de Ángel Rama (1978),
que o exílio submete aqueles que o sofrem a processos de transculturação, a experiências
sociais violentas e a rudes mutações em razão da obrigatoriedade de viver em ambientes
culturais e de sociabilidade distintos do seu ambiente de origem. Acrescentando a essa
ideia, refletimos também que a dificuldade dos exilados, a maioria deles, não consiste
9
A perspectiva do exílio enquanto tragédia coletiva esteve presente também em Alfonso González-Dagnino
(Araucaria de Chile, n° 7, p. 117-134). Uma dupla percepção do termo pode ser encontrada em Hector Fernando
Abarzua, que se referiu ao exílio tanto quanto dor e punição, como, por outro lado, uma possibilidade de criação
de obras historiográficas e testemunhais que denunciassem a repressão política e os atentados aos direitos
humanos praticados por Pinochet (Araucaria de Chile, n° 7, p. 145-157).
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somente em ser forçado a viver longe do seu país, mas, sobretudo, em ter de viver com a
lembrança de que se encontra no exílio, situando-se em um estado intermediário no qual
não está integrado ao novo ambiente social nem totalmente liberto do seu lugar de origem
(SAID, 2005, p. 56-57).
Por sua vez, Emir Rodríguez Monegal afirma que, para a existência da literatura, por
exemplo, torna-se necessário que exista também a discussão, que as obras dos autores
possam ter espaço para o diálogo. O exílio não apenas implicaria na fragilização do espaço
destinado a esse debate, mas também na ruptura de uma comunidade já formada de
interlocutores: o intelectual deixa seu país, enquanto seu público ali permanece. um
desencontro, mesmo físico, entre o leitor e o escritor, que deve buscar um novo público
(RODRÍGUEZ MONEGAL, 1982).
As revistas de exilados possuem, portanto, a importante função de sobrepujar essa
fragmentação e superar as barreiras impostas, oferecendo novas possibilidades de
associação entre intelectuais. Elas estabelecem um importante meio de comunicação e
divulgação de seus trabalhos, além de dar notoriedade a indivíduos que se encontram
marginalizados em seus países de origem. Essas revistas buscam reconstruir o espaço de
debate intelectual assolado pelo regime ditatorial, oferecendo, aos intelectuais, acesso a
distintos públicos leitores.
Em sua edição de abertura, Encuentro de la Cultura Cubana deixou bastante claro
esse propósito. Gastón Baquero reconheceu a necessidade de promover encontros de
escritores e artistas como maneira de superar os focos de dispersão produzidos ao longo do
processo histórico. O autor afirmou que, ao construir a revista, o propósito dos editores era
fornecer um ponto de encontro aos criadores de cultura (BAQUERO, 1996, p. 4).
Jesús Díaz apresentou opinião semelhante. Em entrevista concedida ao Le Monde,
em 29 de maio de 1998, transcrita em sua própria revista, az considerou Encuentro como
uma ponte de união por cima dos antagonismos e que teria trazido à luz uma nova geração
de escritores. A revista foi interpretada, pelo seu criador, como um lugar de encontro
democrático e de superação dos antagonismos, um local de debate. Ela teria oferecido
espaço para todos aqueles que se encontravam em uma vida cultural tragicamente
fragmentada (MASPERÓ, 1998, p. 101).
No caso de Araucaria de Chile, os laços de sociabilidade e solidariedade, entre os
intelectuais da revista, foram reforçados em eventos organizados para comemorar seus
aniversários. Saraus, conferências e atos foram realizados, contando com a presença de
membros do comitê editorial, colaboradores e leitores (SILVA, 2009, p. 24).
Encontros mais amplos, como os colóquios, que contavam com a partição de vários
intelectuais latino-americanos exilados, também foram comuns. Araucaria noticiou e
publicou as discussões de alguns desses encontros, dentre eles a exposição pública do
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diretor da revista, Volodia Teitelboim, durante o Encuentro de Intelectuales de Nuestra
América por la Soberanía de los Pueblos, em 1981, na qual, predominantemente, discutiu-
se sobre a política externa ofensiva e imperialista dos Estados Unidos sobre a América
Latina e o papel do intelectual latino-americano diante de tais impasses (TEITELBOIM,
1981, p. 19-29).
Esses encontros, ocorridos tanto nas redações das revistas como em colóquios,
faziam parte dos esforços dos intelectuais exilados na busca por uma maior colaboração
entre as iniciativas de luta pela soberania dos povos da América Latina e pela restituição das
democracias em seus países. Ademais, tiveram, também, o objetivo de manter uma espécie
de laço afetivo e de solidariedade em relação aos exilados latino-americanos, dado o
entendimento das condições físicas e psicológicas adversas que a condição exílica provoca.
No entanto, falando, especificamente, das revistas, em que pese a produção desses
impressos como forma de tentar aplacar a crise identitária do exilado, além, é claro, de
difundir projetos políticos contrários àqueles vinculados aos regimes autoritários de seus
países de origem, o exílio implica em dificuldades materiais de produção e circulação das
revistas: a busca por financiadores fora da terra natal torna-se fundamental para mantê-las
vivas. O possível problema do idioma no país de publicação pode oferecer restrições à
expansão do periódico no mercado editorial. As barreiras e distâncias na comunicação entre
os intelectuais situados em distintos lugares estabelecem desafios à constituição de redes
de sociabilidade e tendem a apartar indivíduos, antes, próximos. A procura por um público
leitor que apresente interesse nas temáticas tratadas por intelectuais estrangeiros muitas
vezes limita a produção intelectual e a reflexão sobre certos assuntos. A proibição da
circulação no país, do qual foram banidos os colaboradores das revistas, reduz o contato
com um público que compartilha os mesmos códigos culturais e as mesmas práticas sociais
com esses intelectuais, forçando-os não apenas a buscar outros indivíduos com quem
dialogar, mas também novas formas de escrever e outros temas a serem tratados.
De acordo com Ángel Rama (1978), o escritor/intelectual exilado pode atuar junto a
três públicos que, por mais familiares que sejam, encontram-se em distintas circunstâncias:
o público majoritário do país ou cultura na qual se está exilado; o público também amplo de
seu país de origem, com o qual aspira manter comunicação, escapando, de algum modo,
aos obstáculos colocados pelas ditaduras para a circulação de sua mensagem; e, por fim,
aos interlocutores mais específicos pertencentes à população exilada.
Desses, o intelectual exilado tem propensão a priorizar como público, segundo Ángel
Rama, sua própria comunidade de origem, portanto, seus compatriotas e/ou seus pares
exilados. Como, no primeiro caso, sua produção intelectual tende a circular apenas de
maneira clandestina, que a condição política ditatorial impede o alcance de um público
mais amplo, a população exilada é provavelmente a mais interessada e com a qual a
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mensagem transmitida atinge maior sentido, por viver as mesmas circunstâncias do escritor:
a sobrevivência em outro país, a nostalgia de suas origens, o esforço por manter seu
peculiar modo de vida e suas tradições culturais que, bruscamente, foram-lhes retiradas e a
esperança de transformações em seus países que permitam a recomposição de uma
sociedade democrática (RAMA, 1978, p. 95-105).
Embora concordemos com Ángel Rama quanto às possibilidades de público para
aqueles que escrevem do exílio, acrescentamos que, junto a elas, existe a interlocução com
um público ainda mais amplo, a comunidade internacional. Pensamos que tanto Araucaria
de Chile quanto Encuentro de la Cultura Cubana cumpriram, também, a função de denunciar
a repressão e as atrocidades cometidas pelos regimes autoritários no Chile e em Cuba,
respectivamente, buscando alertar e influenciar a opinião pública estrangeira.
Por esse aspecto, a circulação das denúncias aos regimes ditatoriais pode ser
encarada como condição favorável possibilitada pelo exílio, ao contrário da produção
intelectual oriunda do interior dos países submetidos à repressão e à censura, nos quais a
mensagem possui pouco espaço para circulação. Apresentamos, a partir desse ponto,
chaves de leitura e reflexão sobre o exílio que, embora não deixem de destacar seu caráter
de dor, ruptura e punição, concebem-no por um ângulo mais positivo.
Com o crescimento das práticas transnacionais ao longo do século XX, novas redes
de sociabilidade e solidariedade se formaram, e as revistas de exilados possuíram papel
fundamental nessa nova configuração (RONIGER, 2010, p. 114). Por meio desses
periódicos, os exilados passaram a ter maior notoriedade na esfera pública nacional e,
sobretudo, internacional, aumentando suas possibilidades de combater as práticas levadas
a cabo pelos Estados ditatoriais. O exílio toma, portanto, um caráter de potencialidade crítica
contra regimes autoritários por meio dessas redes transnacionais e da formação de novas
alianças políticas possibilitadas, em especial, pela fundação de revistas culturais e políticas.
Julio Cortázar (1997) aponta, nesse sentido, a respeito do exílio. O renomado
escritor argentino conclama os escritores e intelectuais latino-americanos a abandonar a
tradicional representação do exílio como perda ou dor e perceber essa prática como
positiva. A perspectiva do trauma e da nostalgia reforçaria apenas o triunfo do inimigo, ao
passo que converter a negatividade do exílio e livrar-se da conotação “romântica” a ele
ligada permitiria, ao escritor, elaborar novas ferramentas e discursos de combate aos
regimes autoritários que se apoderaram de vários países na América Latina. O intelectual
deveria, portanto, aproveitar ao máximo o legado maldito advindo da experiência exílica
(CORTÁZAR, 1997).
Revistas como Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana ofereceram
essa chance de revalorização do exílio como instrumento de luta, como ressaltou Cortázar.
Os esforços de seus diretores e colaboradores, rumo a tal ressignificação, permitiram que os
Revistas de intelectuais exilados como objeto de pesquisa: o caso de Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana
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intelectuais percebessem o exílio como possibilidade de criação intelectual, justamente por
estarem fora de seu país de origem, poderiam escapar da censura e burlar o discurso oficial.
Esses periódicos não apenas cultivaram a potencialidade de exercer críticas de maneira
aberta e direta aos regimes autoritários, mas também se dedicaram a fomentar novos
discursos acerca da realidade e da identidade de seus países originários que divergissem
ou contrastassem com a narrativa promulgada pelo Estado.
Encuentro, por exemplo, mobilizou autores que tentaram construir uma narrativa
alternativa à do regime castrista no que tange à cubanidad. Incorporou em suas páginas
poesias de Reinaldo Arenas que tratavam da homossexualidade, a literatura marginal de
Guillermo Rosales e concedeu espaço para a análise da produção dos chamados
marielitos.
10
A revista afrontou o governo ao afirmar que era possível construir um discurso
acerca da identidade cubana a partir de fora das fronteiras da ilha, fato, veementemente,
negado pelo discurso oficial. Seus colaboradores perceberam na diáspora a possibilidade de
reconfigurar os elementos que fundamentavam um suposto ser cubano e travou uma
profunda batalha simbólica com o governo e seus intelectuais (GIL, 1999, p. 148).
Em Araucaria de Chile, o discurso de Antonio Skármeta nos incita a refletir sobre
esta perspectiva, a de que o exílio, ao provocar o distanciamento do seu lugar de origem,
permitiria, aos intelectuais, exercer maior capacidade de análise e crítica, “[...] a nos
reformularmos como seres humanos e como escritores, [...] a pensarmos sobre os erros que
nos conduziram a uma conjuntura semelhante [...]”, de autoritarismo e violência de Estado
(SKÁRMETA, 982, p. 134).
Como podemos observar, essas perspectivas propõem o exílio como condição
política que precisa ser encarada de maneira ativa pelo escritor/intelectual exilado, que deve
buscar ganhar adeptos para suas causas e engajar-se na resistência aos regimes
autoritários. Acreditamos que essa é uma visão do exílio igualmente válida, e que, ao
contrário do que possa aparentar, não suaviza o trauma e a ruptura com as condições
culturais dos indivíduos atingidos, mas intenta canalizá-las de maneira favorável aos
próprios exilados, oponentes políticos dos governos repressores.
Por fim, como último esforço de reflexão, pensamos que a condição de escrever
submetida à situação do exílio levou a uma profícua produção intelectual, dos artigos
científicos e ensaios aos mais variados gêneros literários, dentre os quais o testimonio. As
revistas exílicas puderam captar toda essa variedade de formas discursivas, tornando-se
fontes potencialmente ricas para a análise das narrativas do exílio.
10
Ficaram conhecidos por marielitos os cubanos que deixaram seu país pelo porto de Mariel, no ano de 1980,
rumo aos Estados Unidos. A chamada Geração de Mariel ficou marcada pelo grande rechaço que recebeu por
parte da população que permaneceu em Cuba e pelos exilados cubanos que os receberam em Miami.
Geralmente negros, pobres, homossexuais e incompatíveis com o discurso castrista e da oposição da Flórida, os
marielitos foram colocados em uma posição de profunda marginalidade. Dentre outros dessa geração, ficaram
conhecidos os escritores Reinaldo Arenas e Guillermo Rosales.
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Como afirmamos anteriormente, é possível falar, como apontam Juan Armando
Epple (1981), Claude Cymerman (1993) e Paloma Vidal (2004), de uma linguagem do exílio
forjada por escritores desterrados, tratem ou não, especificamente, do tema do exílio em
suas obras. Epple (1981, p. 210) explica a necessidade do escritor diante da repressão
política:
Frente à destruição dos fundamentos cotidianos com os quais se vivia antes
do golpe militar, e ante a necessidade de expressar e dar uma significação
às novas experiências vitais, os escritores recorreram às mais variadas
formas narrativas, não com um simples afã de experimentação formal, mas
tratando de provar a eficácia das opções oferecidas pela escrita no sentido
de canalizar a necessidade expressiva.
Ressaltamos que apesar de possuírem o mesmo caráter de resistência política e de
denúncia em relação às atrocidades produzidas no país do autor, as ficções forjadas no
exílio, como os romances e as novelas, possibilitam, em menor potencial, a formação de
redes de sociabilidade intelectual se comparadas às revistas, que coadunam colaboradores
diversos. Considerando que as novelas e os romances produzidos sob o exílio, assim como
as revistas, tenham um caráter político, tais textos, em que pese o impacto que possam
causar no leitor em razão da linguagem ficcional e metafórica, possibilitam uma menor
capacidade de análise das questões políticas candentes que acontecem no país de origem
do escritor, pelo simples fato de não terem a dinâmica de contribuição intelectual, produção
e publicação que as revistas possuem.
É verdade que os romances, as novelas, a poesia e as revistas frutos do desterro são,
todos, narrativas do exílio, inevitavelmente impactados por essa condição política e que,
portanto, contribuem sobremaneira para a construção de textos testemunhais, nos quais a
experiência traumática pode ser direcionada para temas e questões referentes à solidão, ao
corpo e à memória, como apontou Paloma Vidal (2004). No entanto, o que destacamos,
aqui, é que as revistas de exílio podem ser encaradas como fonte/objeto historiográfico,
ainda mais substancioso para a análise desse conteúdo por veicular uma diversidade maior
de textos: literatura, crítica literária, ensaios, artigos de caráter acadêmico e imagens,
difundindo, dessa forma, as representações dos intelectuais colaboradores dos periódicos
acerca dos assuntos políticos de seus países.
Ademais, as revistas de caráter cultural e político, como Araucaria de Chile e
Encuentro de la Cultura Cubana, em comparação com os jornais, por exemplo, possuem
um tempo de elaboração maior e não estão submetidas ao imediatismo das notícias, o que
proporciona maior reflexão e criação de textos, em princípio, mais analíticos (CRESPO,
2010, p. 2). É também essa capacidade analítica, pulverizada e ampliada sob a forma de
artigos, ensaios, poemas, fragmentos de romances e crítica literária que permitem às
revistas culturais exílicas ou não ganhar, nesse sentido, uma pluralidade de olhares e
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perspectivas sobre eventos históricos, condição que um romance, por exemplo, não possui,
já que explicita uma forma ficcional específica de reflexão, a de seu autor.
As características caras às revistas de exilados políticos que buscamos analisar aqui,
ainda que de maneira incipiente, evidenciam as amplas possibilidades de investigação,
análise e descoberta para os estudiosos da condição exílica que se proponham a encarar,
metodologicamente, esses impressos não apenas como fonte, mas, sobretudo, objetos de
pesquisa da História. Urge que novas reflexões acerca das revistas de exilados ganhem
terreno na historiografia e enriqueçam os debates sobre o exílio intelectual.
Considerações finais
À guisa de conclusão, podemos, portanto, compreender as revistas exílicas a partir
de três características essenciais: como bens culturais de resistência política, como espaços
de socialização de intelectuais que visam diminuir a sensação de isolamento provocada pelo
exílio e, por fim, como meios de circulação de ideias e debates acerca de assuntos diversos.
Araucaria de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana atuaram no sentido de organizar-se
enquanto oposição política às ditaduras de Augusto Pinochet e de Fidel Castro,
respectivamente, mas serviram, também, como formas de expressão das artes visuais e da
literatura chilena e cubana, bem como discorreram sobre assuntos políticos variados,
embora todos eles estivessem marcados pela condição do exílio.
O que nos moveu na escrita deste artigo não foi esgotar a discussão a respeito da
produção intelectual no exílio por meio das revistas, mas, sim, contribuir para um debate que
se encontra pouco consistente nesse aspecto. Ao trabalharmos com as revistas Araucaria
de Chile e Encuentro de la Cultura Cubana, procuramos mostrar que, embora criadas em
contextos políticos distintos e pautadas por editorialismos programáticos pouco consonantes
Araucaria marcadamente de esquerda e Encuentro com um viés político moderado de
esquerda -, ambas, como revistas de intelectuais exilados, tenderam a apresentar
similitudes no que concerne à articulação de suas críticas aos governos ditatoriais.
Fundamentalmente, o que as uniu foi o interesse precípuo na (re)construção da democracia
no Chile e em Cuba. Estabelecemos esses dois impressos, portanto, como paradigmas, de
modo a extrair deles características gerais das revistas exílicas.
Nossos argumentos foram construídos no sentido de evidenciar as ricas
possibilidades de interpretação e estudo historiográfico sobre a experiência marcante do
exílio por meio das revistas: o sofrimento e a ruptura com os padrões culturais do ambiente
de origem que ele provoca, mas, também, entendido enquanto possibilidade de criação
intelectual, de formação de redes intelectuais, de denúncia da violência política estatal,
Raphael Coelho Neto
Thiago Henrique Oliveira Prates
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praticada em seus países de origem e, por fim, como possibilidade, também, de construção
de um discurso alternativo ao oficial. Muito da história intelectual da América Latina surgiu
da condição exílica e, não resta dúvida, que as revistas não foram resultados desse
processo, como, principalmente, deram vazão a debates fecundos travados pelos
intelectuais latino-americanos.
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