UM AUTÓGRAFO E A TRADIÇÃO APÓGRAFA DE JORGE DA CÂMARA
DOI:
https://doi.org/10.5016/msc.v30i0.1922Palavras-chave:
Literatura Portuguesa, Jorge de CâmaraResumo
É sabido que o século XVII ibérico se caracterizou por um ambiente literário de partilha informal de textos, sendo poucos os autores que se preocupavam em reunir e publicar as suas obras. Já Carolina Michaëlis de Vasconcelos se queixava de um certo “desleixo na coleccionação” desses autores, que dispersavam “os seus poemas, familiarmente, enviando-os […] a amigos e damas”, muitas vezes “sem os marcarem claramente com o seu nome e sem os transladarem primeiro para um grande Livro Autógrafo […]. Resultaram infinitas variantes. E atribuições erróneas”[1]. A preferência por um tipo de transmissão textual assente em cópias avulsas e cancioneiros de mão pode explicar-se, antes de mais, pelo caráter eminentemente circunstancial, satírico ou burlesco da lírica destes poetas, para quem a circulação oral e manuscrita cumpria uma série de exigências sociais[2], além de constituir um meio de difusão alternativo aos vários controlos exercidos pela censura[3]. A natureza clandestina de boa parte da lírica barroca portuguesa, bem como a prevalência de uma conceção de originalidade anterior às noções românticas de génio ou propriedade intelectual, terá assim contribuído para que pouquíssimas cópias de autor circulassem com uma assinatura identificando-as como tal. Esse facto, aliado aos sucessivos desastres bibliográficos, de origem natural ou histórica, que ditaram o desaparecimento de muitas das nossas compilações manuscritas[4], poderá ajudar a explicar uma circunstância indiretamente intuída na observação de Michaëlis, mas ainda pouco explorada pelos filólogos: a raridade de testemunhos desta altura que possam ser reconhecidos como autógrafos e a especificidade desses documentos, por comparação com manuscritos de séculos posteriores. Por isso, a descoberta de um autógrafo assinado pelo poeta seiscentista Jorge da Câmara reveste-se de amplo interesse, não só para a edição do corpus textual do autor, mas também para o estudo dos hológrafos seiscentistas. Este artigo dá a conhecer o novo manuscrito, enquadrando-o numa perspetiva histórica e procurando relacioná-lo com a transmissão apógrafa da obra camarina
[1] Vasconcelos, 1980: 11-12. Em muitos destes casos, “uma remodelação alheia ao autor acaba também por adquirir a relevância de texto literário, às vezes tão merecedor dos mais rigorosos cuidados ecdóticos do que o próprio ‘original’” (Lanciani, 1986: 280).
[2] “Ciegos, estudiantes, soldados, frailes, organistas, secretarios, juristas, médicos, profesores, nobleza alta y baja, damas y hasta alguna ilustre fregona compusieron alguna vez versos para cumplir, por vocación o por obligación, con esa exigencia social que consistía en hacer poemas” (Blecua, 1983: 207).
[3] Para lá das censuras oficiais, havia ainda uma série de pressões que “actuavam por critérios próprios dependentes das conjunturas políticas e sociais do momento. […] Por outro lado, os intrincados e pesados trâmites burocráticos a que estavam sujeitos os manuscritos atrasavam as licenças de publicação, ou funcionavam mesmo como meio de intimidação, dando azo a que muitos dos manuscritos ficassem inéditos durante longos anos” (Rodrigues, 1980: 38).
[4] Como bem lembra Maria Luísa Malato, a História de Portugal tem sido pródiga em cataclismos bibliográficos: “o estertor da Inquisição, o terramoto de 1755, a expulsão dos Jesuítas, a saída da Corte para o Rio de Janeiro, as invasões napoleónicas, as perseguições ante e durante a guerra civil, ou a extinção por improvisado decreto das ordens religiosas” (Borralho, 2004: 70).